segunda-feira, 21 de julho de 2014

PENA UM, PENA DOIS, PENA TRÊS...

Nota prévia: previne-se os leitores de que o conteúdo deste artigo poderá não passar de um monte de lérias.


A galinha de aa papona
põe os ovos a abanar:
pena um
pena dois
pena três
pena quatro
pena cinco
pena seis
pena sete
pena ocho
Lembrais-vos deste jogo da nossa infância em que um garoto, com um cipó na mão, ia tocando os pés dos restantes jogadores? O pé em que acertasse o “pena ocho” era recolhido e o jogo terminava com a derrota do jogador que ficasse com um pé por recolher (ou os dois). Eu, para acrescentar a conta das penas, digo que tenho pena de não poder traduzir pela escrita a cadência em que eram ditas as palavras.
Tem-me dado bem que fazer este joguinho infantil e já gastei um ror de horas a pensar nele. Cismava com o “pena ocho”: que faria ali aquele número castelhano no meio de uma conta tão portuguesa? Cismava sobre quem poderia ser a “papona”? Cismava com o significado de “pena” e cismava também com a escrita, mas nisso já vós reparastes. Aqui vos deixo algumas reflexões, para que cismeis comigo.
 1 – “Real de a ocho”(1) é uma moeda de prata mandada cunhar por Filipe II (o nosso primeiro), assim designada por valer oito reais. Tornou-se uma moeda tão importante e de tão ampla circulação que, no nosso tempo, só o dólar se lhe pode comparar.
Filipe II, para poder tornar-se rei de Portugal, acenou com riquezas e prebendas a quem se pusesse por ele, de tal maneira que terá dito sobre Portugal: “lo herdé, lo compré y lo conquisté". As consequências sabemo-las bem: os sonhos de grandeza dos nossos grandes, que se venderam, rapidamente se esfumaram, porque, com o rei longe, perderam o estatuto e a possibilidade de o recuperar.
2 – Imaginemos então:
A criança com o cipó representaria Filipe II a prometer os reales (“põe os ovos a abanar”, isto é: vai acenando com riquezas) mas os de “a ocho” só calham a alguns;
Sendo Filipe II o agente, então, a “papona” seria Castela: papona por ser insaciável a sua fome de territórios (além da Espanha, metade da Itália, os Países Baixos, a América… e depois, Portugal com seu império). Também é possível entender a criança da varinha como sendo um dos embaixadores que, após a morte de D. Sebastião, tudo negociaram em Portugal em nome de Filipe II. Nesse caso, a papona será o próprio Filipe II, tornando a nomeada ainda mais acintosa, porque no feminino;
Mas a criança, em vez de “reales”, distribui “penas” e é aqui que bate o ponto! Se pensarmos em pena como “pedra” ou como “dó”, perceberemos o profundo significado anti-espanhol desta brincadeira infantil: o rei de Espanha, aos portugueses, só atira pedras (ou/e faz sofrer), sendo raros aqueles a quem toca um pouco de riqueza (ocho) e, também para esses, a riqueza é promessa vã, porque é “pena " e não real de a ocho.
3 – Temos então que, para mim, este joguinho aparentemente inocente é um libelo contra o domínio filipino e contra os portugueses que quiseram ver nele a galinha dos ovos de ouro. Rebordaínhos não poderia desmerecer dos pergaminhos nacionais...  
Isto não passa de um alvitre e gostaria muito de conhecer outras propostas de interpretação.
4 – Hesitei muito na escrita da primeira linha e optei por aquilo que lestes: “A galinha de aa papona”, assim, à maneira medieval. Por regra, uma vogal dobrada(2) era uma vogal que se pronunciava aberta. Com a evolução da língua deu-se a contracção e no caso do duplo “a” passou a escrever-se “à”. Mas eu escrevia “de à papona” e não gostava porque, no caso, aquele “à” parecia-me que significava proximidade (como em “bairro de à Chave”). Tentei nova contracção, com o “de” anterior, mas ficou pior: “da papona” não permite pronunciar o “a” aberto e nós dizemos, de facto, “d’à papona”. Como me desgostasse de todas as formas modernas, acolhi-me à versão medieval que é, afinal, aquela que os nossos pais ainda falaram.

A todos desejo muito boas férias. Passado manhã já estarei em Rebordaínhos.
 ____
(1) Se reparardes bem, os exemplares dos reales de a ocho que vos apresento já incluem as quinas portuguesas.
(2) Veja-se, a título de exemplo, esta passagem de Fernão Lopes: Em outro dia tornou NunAllvarez per alli aa tarde, e achouha corregida muito aa sua voomtade (…) in Crónica de D. João I, Parte I cap. XXXVI).
Aproveito Fernão Lopes e o mesmo capítulo para vos dar conta de uma expressão que só nós, creio, continuamos a usar: “ir contra” ou “falar contra” alguém com o significado de ir ou falar em direcção a algo ou alguém: (…) sahiu Nuno Allvarz a folgar pella praya afumdo, comtra a egreja de samta Eirea(…)

2 comentários:

Elvira Carvalho disse...

Muito interessante.
Nunca conheci semelhante jogo, nem sabia que existia.
Deixo os votos de óptimas férias.
Um abraço

Américo Pereira disse...

Olá Fátima, bonita brincadeira com
que nos presenteou desta vez. Eu
não tenho qualquer opinião sobre
a mesma mas recordo-me muito bem da candonga e agora contada por si
ainda tem mais graça. A Fátima tem
um dom especial para tudo o que
apresenta aqui e é assim com este
estilo que cativa os seguidores
deste blog. Bjs
Américo