terça-feira, 5 de maio de 2015

ARES DA SERRA

DUAS C’ROAS DE PREGOS

POR: ANTÓNIO AUGUSTO FERNANDES


Ela surgia por detrás do grande penedo que fechava o largo a nascente, alta e negra, Prado fora. De negro vestida, a saia comprida mais que a conta, quase até aos pés, como a das ciganas, o lenço negro atado no alto do cocoruto, com duas orelhas de gato espichadas para o céu. Passava pelo tanque de duas bicas onde corria a água que vinha lá de cima do Lombo d’à Igreja. Era a tia Fecisma; (só muito mais tarde descobri que o nome deveria ser Felicíssima), a avó do Orlando (Sr. Engenheiro, como tem passado?). A passos miúdos entrava na taberna e com voz dominiosa:

─ Rapaz, dá-me aí duas c’roas de pregos.

A pedir uma coroa ou duas de pregos só me lembrava do tio Francisco Chicheiro que, nos tempos livres que lhe deixava o exercício da profissão ─ e eram muitos ─ se dedicava às artes da marcenaria (e com jeito universalmente reconhecido, diga-se em abono da verdade; ─ é p’ra não andar sempre a comprar, dizia ele com um sentido de humor muito peculiar).

─ Ó tia Fecisma, os pregos são de estuque ou tabuais?
─ Não te faças burro, rapaz!

Eu bem queria não me fazer burro, mas não atinava com a encomenda, pois era a primeira vez que lhe aviava a requisição. Mas lá atinei, depois de com paciência (que não era o seu forte) me ter iniciado na compreensão da metáfora.

Pois é verdade: a tia Fecisma foi a primeira feminista que eu conheci a lutar pela igualdade de direitos das mulheres. E neste caso era o direito a fumar como um homem. E logo dos fortes. Fortes não se refere aos homens, claro, mas sim aos cigarros. “Pregos” era, pois, o nome de código da tia Fecisma para, numa sociedade machista, pedir cigarros dos fortes, também conhecidos por mata-ratos, que eram aqueles Kentucky que vinham em macinhos de 10, atados por uma cinta muito mal enjorcada, e eles, os cigarros, mal ajeitados também, que era para o fumador depois os enrolar a seu gosto. Esse gesto de enrolar o cigarro fazia parte do ritual do fumador a sério e antecipava-lhe, pelo manuseio do tabaco, o prazer das primeiras inalações.

Para os nascidos já sob o império dos dinheiros europeus, um escudo (ou duas coroas, ou dez tostões, tanto faz) equivaliam, em dinheiros europeus, a meio cêntimo e davam direito a um maço de dez cigarros mais dois, pois, magros como eram esses tempos, também se vendiam à unidade: a tostão cada um. Para os mais finos ou de mais posses havia ainda os Três Vintes, os Provisórios, os Definitivos… mas era com aqueles comprados à unidade que os adolescentes se estreavam nas primeiras chupadelas às escondidas. Porque isso de fumar na presença dos mais velhos só depois de despontar o bigode e não sem antes pedir licença.


Isto aqui fica para ensinança dos vindouros, já que vai escasseando a geração que ainda percebe de pregos, c’roas e tostões e bebia a água fresca da Fonte Grande nela mergulhando os beiços.

6 comentários:

Augusta disse...

Ó Tonho:
Que boas lembranças nos trazes. Também eu fui várias vezes comprar "pregos" para a tia "Fecisma". Tantas recordações temos dela e dos serões que passávamos. Às vezes, a garotada juntava-se na casa dela, enquanto os adultos estavam na nossa. Ela entretinha-nos com cantigas que só ela sabia (Ai semeei na minha horta...).
Tenho também a imagem dela com o caldeiro para dar a vianda aos porcos. E lá ia ela a caminho da casa d'além enquanto se ia queixando dda dor que lhe afligia uma das pernas.
Mais uma vez obrigada por mitigares as saudades de outros tempos.
Beijos

Fátima Pereira Stocker disse...

Tonho

Desta vez, a Augusta adiantou-se-me.
Como ela, agradeço a vividez da tua escrita e a gentileza com que partilha das tuas memórias.

A tia Felicíssima é daquelas figuras tão marcantes que não nos permitem que nos esqueçamos delas. Tu, como o Filinto antes, traçaram o retrato de uma mulher livre e senhora de si, tão distante da mulher submissa e apoucada que os manuais nos dão quando falam das mulheres rurais desse tempo.

Obrigada, também por isso.

Beijos

P.S. Procurei - em vão, como se constata - uma imagem daqueles cigarros avulso atados com uma cinta, mas não tive sorte nenhuma, por isso, tive de me contentar com o maço para os pregos da tia "Fecisma"

Anónimo disse...

Olá Tonho

Fico feliz por te "ouvir", e que bem que soas.
Eu cá vou andando, arrastando as asas ao tempo, e tu? Ouvi dizer que as maleitas destas carcaças também te afectam. Espero que estejas bem, fazes falta.

Um abraço
Orlando Martins

Olímpia disse...

É verdade, a tia Felicíssima era mesmo assim. Que bem a descreves, António!
Bem-hajas por destapares essas memórias que também são minhas.

Beijos

Olímpia

Anónimo disse...

Da minha avó lembro-me vagamente, tinha eu uns 9 ou dez anos, ela morreu tinha eu 11 anos, de me contar histórias sobre os "rubios", que eram fugitivos da guerra civil Espanhola pertencentes à Resistência - Comunistas - e para fugirem à perseguição pelos Nacionalistas procuravam guarida nas pequenas aldeias do Nordeste.
Contou-me ela que uma vez tiveram que esconder dois deles dentro de um forno de cozer pão até poderem prosseguir a sua demanda.

Saudades dela.
Orlando Martins

Filinto disse...

Ó Primacho,olha que eu levei com uma soca porque me mandava buscar os pregos e como eu não era flor que se cheire,um dia tirei o tabaco dum cigarro e meti-lhe cinza. Quando ela o acendeu levou com a cinza e exclamou: foste tu, f... e uma soca veio atrás.
Um abraço
Filinto