quarta-feira, 30 de novembro de 2016

A BELEZA DA NEVE… OU QUASE UM MILAGRE

Por: ORLANDO MARTINS


                    "Vergonha não é parecer louco por ajudar e defender os animais.
                     Vergonha é ver a sofrer e não fazer nada!"

Eram quatro horas da tarde. O vento de noroeste que soprava da serra roxeava a ponta do nariz e os lóbulos e hélices das orelhas. Como brincadeira de alguma malvadez oferecíamos a nossa solução: - Queres que te aqueça as orelhas? – E esfregávamos com as mãos os apêndices em hipotermia até as lágrimas da vítima se começarem a soltar, bem como alguns palavrões…

Quando estas condições eram acompanhadas por umas nuvens baixas e negras, Nimbostatus, segundo os eruditos, ou nuvens que trazem neve segundo os velhos e o seu saber de experiência, podíamos quase anunciar, tal qual no Boletim Meteorológico dos nossos dias, que amanhã íamos ter neve de certeza.


- Até amanhã tiu Atilano…
- Até amanhã rapaze… e vai pró lume que hoje inda neva…
- Deus o queira, e a tia Cândida já está ao borralho?
- Tá a fazer o caldo, e depois caminha, que isto está bravo, a candeia da Alzira já alumia há quase uma hora e a Eduarda já fechou portas.

Estávamos já em Dezembro e, a estas horas da tarde, já toda a gente se apressava a acomodar os animais, recolher alguma lenha do sequeiro para o lume que iria aquecer um pouco a casa e tratava-se de começar a preparar a ceia.

Daquela hora em diante já poucas almas se atreveriam a sair à rua. Comeu-se o caldo entre paredes, contaram-se lendas e façanhas de outrora enquanto com as tenazes se aconchegava a cinza às brasas e se deixava apagar o último tição. Pedia-se a bênção e, como cordeiros, lá íamos para dentro dos cobertores.

A noite passou-se no mais santo dos sonhos, e a brisa fresca da manhã que invadiu a casa, pela abertura da porta da rua pelo meu pai que ia buscar mais lenha para acender a lareira, fez-nos acordar para um novo dia.

Estava tudo tão calmo… tão silencioso… tão esquisito, que fui espreitar à pedra da escaleira.
Estava tudo branquinho, um manto espesso de neve cobria a aldeia deserta, os montes ao longe não se distinguiam da paisagem, parecia que estávamos num limbo de pureza e paz…

- Nevou pai,… nevou…, acha que vai durar muito a derreter?
- Pela maneira como isto está ainda vai piorar, agasalha-te e vai lá p´ra dentro…
- Agora vou dar de comer às bacas, galinhas e coelhos e a tua mãe faz-vos já    qualquer coisa para comer. Raios partam este fumo, mas isto quando começar a arder já passa. 
Passados alguns minutos oiço o meu pai aos gritos a chamar pela minha mãe.

- Oh Maria, … Oh Maria…
- Raios partam o homem, o que é que queres?
- Tu ontem encerraste bem as galinhas e a pata com os dez parrecos pequenos?
- Ou penso que sim, num estão no galinheiro?
- Nem no galinheiro nem em parte alguma, se não foi uma raposa, estão todos mortos debaixo nevão. Não se aguentavam a noite inteira com tanto frio.

Após inúmeras e infrutíferas buscas, enquanto subíamos os degraus gelados da escaleira para entrar em casa, vislumbrámos um movimento debaixo de uma giesta coberta de neve no sequeiro encostado à escaleira.
- Tchiu… tenho cá uma fé que eles vieram para aqui. – Disse o meu pai.


Retirando cuidadosamente a neve e afastando alguns guiços em volta, apareceu a asa branca da pata que, durante a noite, tinha coberto e aconchegado, quase por completo, aqueles peluches amarelos que a tinham seguido como filhos obedientes sentindo que, debaixo dos braços e do coração dos progenitores, se sentiam salvos e seguros.

Infelizmente, estavam todos inanimados e as arestas de gelo, que se haviam formado, fechavam-lhe os olhos e os bicos, e a fofura da sua penugem amarela tinha-se tornado numa espécie de trapo de desperdícios.

- Oh Maria, vai lá cima arranja um cobertor, atiça o lume e espalha um pouco de brasas… depressa, vai lá mulher…

Não sei se verti alguma lágrima, mas uma coisa vos garanto, o meu coração chorava, e quando vi o meu pai tirar o casaco, apanhar aqueles corpos inanimados, cabeças descaídas e uma infância tão inocente desperdiçada, aconchegá-los ao peito e correr escaleira acima em direcção ao lume, uma réstia de esperança invadiu-me por completo.
                                               
Deitou os infelizes patinhos no cobertor junto à lareira, eu puxei uma tripeça e fitava os pobres animais inanimados, pensando se haveria na realidade milagres.

- Temos que esperar… e rezar… temos que esperar… - Dizia o meu pai.

O tempo andava lentamente, os segundos tornavam-se minutos e os minutos tornavam-se horas.
Para minha surpresa, um dos petizes moribundos, ao fim de algum tempo, abriu lentamente os olhos, as suas pernitas começaram a mexer…

- Pai… Pai… este ainda está vivo…
- Vamos esperar mais um bocado… temos que ter fé…

Lentamente um, depois outro e outro foram renascendo e uma felicidade enorme invadiu aquela casa. Apenas dois tiveram sorte diferente.

Se não foi um milagre, foi amor…
E o amor não é um milagre?


11 comentários:

Fátima Pereira Stocker disse...

Orlando

Vi-me lá, na vossa cozinha, ouvi o teu pai sussurrar e vi que os seus lábios estavam contraídos de preocupação mas, ao mesmo tempo, deixavam perceber o sorriso meigo que nunca abandonava.

Aqueceste-me a tarde, porque o amor é um milagre.
Deus te pague.

Elvira Carvalho disse...

Um texto maravilhoso. Que me emocionou. Efetivamente o amor é um milagre.

Um abraço

Augusta disse...

Orlando:

Com a clareza da descrição que fazes consegui sentir o cheiro das batatas com sal e do caldo de coubes ao lume. E até os olhos me picaram com o raio do fumo que fazia.
Abençoado o teu pai por este e outros atos de amor, e abençoado tu porque partilhas.
Beijo

Anónimo disse...

Os patos e as patas têm um ar inteligente e engraçado. Em cada ano que passa, quando os meses da neve e do frio e estão a chegar, os patos bravos levantam voo e partem para ares mais quentes, desenhando disciplinadamente no céu graciosas formações em V, o que lhes permite uma viagem mais rápida e segura.
Há quem diga que, passados mais de dois mil anos, já não há mais nada a dizer sobre o Natal, mas esta pequena história de Orlando Martins, não é outra coisa senão um belo conto de Natal, ou seja, o milagre do amor e da vida!

Unknown disse...

Cunhado gostei da estória mas ja estavas a pensar no refogado que irias saborear lá para vila seco

Anónimo disse...

A todos um muito obrigado pelas palavras que também me dão alguma coragem de continuar.

À Fátima, pela publicação e não é preciso agradecer;

À D. Elvira ternas ternas palavras;

À Agusta por relembrarmos os nossos;

Ao Sr. Anónimo, pelas palavras finais que me comoveram, e já agora penso ser a mesma pessoa que, noutra publicação, dissertámos sobre um relativismo existencial, onde, sem ofensa, fui mencionar a problemática da "Anticitera". Estou correto?

Ao meu cunhado, pela boca que mandou, vou-lhe cravar mais uma bica...

A todos garanto:

VALE A PENA AMAR

Orlando Martins

Anónimo disse...

Exmo. Senhor Orlando Martins,

Não me lembro da dissertação da "Anticítara", mas é verdade que falámos há dias, neste mesmo blogue, sobre relativismo.

Cumprimentos!

Anónimo disse...

Exmo Sr. Anónimo,

Foi de facto consigo que de facto sobre relativismos, a propósito da teoria de Copérnico, eu falei alegoricamente num "Astrário" - "Anticitara", na qual o emoldurava no amor de Cleópatra por Marco António.

Apenas lhe digo que gosto de aprender e sou curioso relativamente a estes casos.

Um abraço, a mim, pode comentar sempre, seja qual for a sua opinião.

Cumprimentos.

Orlando Martins

Olímpia disse...

Orlando,
quando o tempo começava a enfarruscar e os flocos de neve surgiam a dançar, era para toda a garotada uma alegria.
Era também nessas noites sem fim que os nossos pais gozavam a fraternidade com novidades a discutir e memórias para lembrar.
Era a altura em que se comiam as maçãs assadas no borralho e nós ficávamos a conhecer os nossos antepassados.
A história que contas, repleta de ternura, demonstra que a melhor sala de aula do mundo está aos pés duma pessoa mais velha, que a esperança é a última a morrer e que o amor é incondicional.

Obrigada pela partilha.

Beijos

Olímpi

Anónimo disse...

Amigo Orlando:

Bem me queria parecer que havia por aí muita coisa ainda escondida com que podias consolar-nos a alma, regalar-nos os olhos e matar saudades do antiquíssimo húmus donde brotam as nossas raízes.
Linda história e tão bem contada! Como diz a Augusta, até o fumo nos picou os olhos... ou seria da história do patinhos que o tio António Piloto salvou? Ou dos que não se salvaram? Pequenas grandes coisas que falam de grandes gestos e nos tocam no mais fundo.
Continua e escreve mais destas, que todos te ficamos muito gratos
Abraços

Tonho da tia Lídia

Anónimo disse...

Amigo Tonho,

Por vezes tenho receio em escrever sabendo as minhas pobres limitações literárias mas, olha... cá vai disto. A Fátima tem uma mais traquina que um dia destes vais ler se tiveres pachorra.

De qualquer maneira é sempre gratificante para mim saber que ainda andamos por cá e posso de vez em quando "falar" contigo.
Não me esqueci se passar em Viseu ligo-te.

Um grande abraço e um muito obrigado.

Orlando Martins