EPÍLOGO EM PENACANE
Não sou ingénua – sei que destruíram o altar de Nabia para nos dar uma lição: ou nos submetíamos ou seríamos destruídos. Pior: poderíamos ser vendidos como escravos!
Parecia que a terra se tinha aberto e lhe saíam das entranhas. Eram enxames deles, semelhantes a escaravelhos em pé, de tão protegidos que vinham atrás dos seus longos escudos. Formavam fileiras intermináveis mas moviam-se como se de um só corpo se tratasse. Apareciam de todos os lados e adentravam pela nossa terra, galgando a distância num assalto organizado, obediente e eficaz.
Decidimos invocar o auxílio dos deuses, enviando os feiticeiros à sagrada fraga do berrão e pedimos-lhes que se não esquecessem de passar pela anta, pois tão notável sepultura deveria guardar o corpo de algum guerreiro valente ou poderoso sacerdote. Enquanto isso, com os parcos meios de que dispúnhamos, organizaríamos a defesa do nosso povoado.
De início tentámos uma defesa frontal, mas, como as nossas lanças e dardos se mostrassem inúteis perante a carapaça dos escudos deles, mudámos de táctica. Usámos a nosso favor o facto de estarmos em ponto alto, o que nos permitia arremessar pedregulhos que os faziam tombar, atrapalhando-lhes a marcha. Compensámos a desvantagem numérica pela organização em pequenos grupos emboscados que atacavam de surpresa, pelos flancos, e se escondiam velozes para atacarem de seguida noutro lugar. Assim nos aguentámos até que o Sol se escondeu. A noite não tardaria e os feiticeiros já deviam ter regressado. Mediante a resposta que trouxessem dos deuses, assim organizaríamos os dias seguintes.
Os feiticeiros, porém, não tinham regressado. Mesmo assim, montámos vigias e aquilo que observámos deixou-nos mais preocupados: o breu nocturno era quebrado pelos fogachos das fogueiras que os invasores acendiam para se aquecerem e prepararem as refeições. Luziam por todos os vales em redor. Estávamos cercados!
Era tão grande a inquietação que nem as crianças conseguiam dormir. Deambulávamos ao acaso por dentro da cerca, tentando entreter o tempo até que amanhecesse e retomássemos o combate. Subitamente, o silêncio da noite foi rasgado por enorme vozearia vinda do lado de onde nasce o Sol e todos subimos às muralhas para perceber o que se passava.
Oh! visão horrenda! Oh! filhos das trevas, que abominação tão grande cometestes! Sobre um enorme cadafalso iluminado pela luz de muitos fachos, erguestes cruzes bem altas. Presos a elas, atados de pés e mãos, agonizavam os nossos feiticeiros. Num crime de soberba sem limites, ornastes-lhes todo o corpo com os sagrados ramos do teixo!
Quase todos consideraram esta visão como um sinal dos deuses para que aceitássemos pacificamente a chegada do novo povo. Não me incluo entre esses, mas tive que me sujeitar como os demais.
Fizeram tudo rápida e ordenadamente como só eles sabem. Obrigaram-nos a abandonar o nosso povoado e a descer para esta terra mais abaixo, proibindo-nos de a cercar de muralhas. Comparando com aquilo que, contam, fizeram a outros (gabam-se especialmente dos lusitanos), connosco nem foram muito cruéis: permitiram que ficássemos por aqui e “deram-nos” terras, embora tenham vendido os mais aguerridos como escravos. Os que agora somos velhos, no entanto, guardámos para sempre a mágoa imensa de termos perdido o nosso modo de vida. E foi por isso que, quando nos perguntaram que nome dávamos àquele chão onde tinham erguido o patíbulo, lhes respondemos que era o cabeço dos cães(1). Iludidos pela semelhança com a sua palavra “pinna(2)” e, crendo que ali tivesse existido alguma fraga onde os cães se juntassem para uivar à Lua, aceitaram que assim ficasse: Penacane(3). Mas os cães do nome são eles, por causa do mal que lá cometeram!
Quem vos fala, para que de tudo saibais, é esta velha Zela, da comunidade dos Reburrinus(4).

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(1)Cão, em latim, diz-se "cane"
(2) Pinna: rochedo, fraga
(3)Cito a entrada “Pena” do "Dicionário Onomástico Etimológico da Língua Portuguesa", de José Pedro Machado:
“Em alguns casos, pena, e seus compostos e derivados, pode representar o céltico penn, pen, «cabeça», «cabeço», «extremidade» (…).
Foi daqui que deduzi a possível confusão com pinna.
(4)De todos, este é o maior atrevimento que cometo. Quase nada sabemos dos nomes dos lugares dos Zelas: que Curunda é a sua sede e pouco mais. Reburrinus é nome próprio masculino e seduz-me muito a sua semelhança com o nosso Rebordaínhos, que em português arcaico vemos grafado "Rebordinos", "Rebordino" ou "Rebordayo". Reburrus, Riburra e Burrali são outros nomes próprios dos Zelas.
Não deixa de ser interessante uma outra perspectiva que poderá ter a ver com semelhanças fonéticas. Leia-se o verbete “Burro” no Vocabulário Portuguez e Latino de Bluteau (clicar na imagem para ampliar: "Diz Festo Grammatico, que os Antigos dizião Burrus em lugar de Rusus [Ruço], Ruivo, Burrum dicebant Antiqui quod nunc dicimus Rusum (...)

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Parecia que a terra se tinha aberto e lhe saíam das entranhas. Eram enxames deles, semelhantes a escaravelhos em pé, de tão protegidos que vinham atrás dos seus longos escudos. Formavam fileiras intermináveis mas moviam-se como se de um só corpo se tratasse. Apareciam de todos os lados e adentravam pela nossa terra, galgando a distância num assalto organizado, obediente e eficaz.
Decidimos invocar o auxílio dos deuses, enviando os feiticeiros à sagrada fraga do berrão e pedimos-lhes que se não esquecessem de passar pela anta, pois tão notável sepultura deveria guardar o corpo de algum guerreiro valente ou poderoso sacerdote. Enquanto isso, com os parcos meios de que dispúnhamos, organizaríamos a defesa do nosso povoado.

Os feiticeiros, porém, não tinham regressado. Mesmo assim, montámos vigias e aquilo que observámos deixou-nos mais preocupados: o breu nocturno era quebrado pelos fogachos das fogueiras que os invasores acendiam para se aquecerem e prepararem as refeições. Luziam por todos os vales em redor. Estávamos cercados!
Era tão grande a inquietação que nem as crianças conseguiam dormir. Deambulávamos ao acaso por dentro da cerca, tentando entreter o tempo até que amanhecesse e retomássemos o combate. Subitamente, o silêncio da noite foi rasgado por enorme vozearia vinda do lado de onde nasce o Sol e todos subimos às muralhas para perceber o que se passava.

Quase todos consideraram esta visão como um sinal dos deuses para que aceitássemos pacificamente a chegada do novo povo. Não me incluo entre esses, mas tive que me sujeitar como os demais.
Fizeram tudo rápida e ordenadamente como só eles sabem. Obrigaram-nos a abandonar o nosso povoado e a descer para esta terra mais abaixo, proibindo-nos de a cercar de muralhas. Comparando com aquilo que, contam, fizeram a outros (gabam-se especialmente dos lusitanos), connosco nem foram muito cruéis: permitiram que ficássemos por aqui e “deram-nos” terras, embora tenham vendido os mais aguerridos como escravos. Os que agora somos velhos, no entanto, guardámos para sempre a mágoa imensa de termos perdido o nosso modo de vida. E foi por isso que, quando nos perguntaram que nome dávamos àquele chão onde tinham erguido o patíbulo, lhes respondemos que era o cabeço dos cães(1). Iludidos pela semelhança com a sua palavra “pinna(2)” e, crendo que ali tivesse existido alguma fraga onde os cães se juntassem para uivar à Lua, aceitaram que assim ficasse: Penacane(3). Mas os cães do nome são eles, por causa do mal que lá cometeram!
Quem vos fala, para que de tudo saibais, é esta velha Zela, da comunidade dos Reburrinus(4).

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(1)Cão, em latim, diz-se "cane"
(2) Pinna: rochedo, fraga
(3)Cito a entrada “Pena” do "Dicionário Onomástico Etimológico da Língua Portuguesa", de José Pedro Machado:
“Em alguns casos, pena, e seus compostos e derivados, pode representar o céltico penn, pen, «cabeça», «cabeço», «extremidade» (…).
Foi daqui que deduzi a possível confusão com pinna.
(4)De todos, este é o maior atrevimento que cometo. Quase nada sabemos dos nomes dos lugares dos Zelas: que Curunda é a sua sede e pouco mais. Reburrinus é nome próprio masculino e seduz-me muito a sua semelhança com o nosso Rebordaínhos, que em português arcaico vemos grafado "Rebordinos", "Rebordino" ou "Rebordayo". Reburrus, Riburra e Burrali são outros nomes próprios dos Zelas.
Não deixa de ser interessante uma outra perspectiva que poderá ter a ver com semelhanças fonéticas. Leia-se o verbete “Burro” no Vocabulário Portuguez e Latino de Bluteau (clicar na imagem para ampliar: "Diz Festo Grammatico, que os Antigos dizião Burrus em lugar de Rusus [Ruço], Ruivo, Burrum dicebant Antiqui quod nunc dicimus Rusum (...)

Gostei de ler. Mais um "relato" do espirito duma Zela.
ResponderEliminarNa verdade embora não saibamos a verdade podia muito bem ter sido assim.
Um abraço
Fátima
ResponderEliminarO que eu aprendo contigo!
De "Zela", honestamente só conhecia o Toyota.
Belíssimo trabalho! Obrigada por dispores desta forma os teus conhecimentos, mostrando-nos como é importante sabermos de onde viémos, para melhor sabermos para onde ir.
Agora depois destes três posts, fiquei bem mais rica.
Beijinho
Eduarda
Penacane, fica em direçâo Rebordainhos Covas.
ResponderEliminarA fraga da Anta,sita-se aproximadamente a 1km das fragas do
Berrão.
Elvira
ResponderEliminarEduarda
Obrigada!
Beijos
Anónimo
ResponderEliminarNão percebi. Acha que eu não sei onde ficam os sítios, é isso? Se é isso, está bem enganado.
Olá Fátima , perdida entre muito trabalho ,ia também perdendo esta bela lição de História que nos chega da "lonjura dos tempos " . A preservação de tudo o que se prende com o nosso passado longínquo é igualmente uma das minhas preocupações . Foi bom ter podido ler tudo de "carreirinha " e penetrar na vida desses nossos antepassados . Bem haja....
ResponderEliminarBeijinhos
Fátima,
ResponderEliminarE que bem que tu inventaste estas lendas. Gostei muito de ler! Parabéns!!!
Beijos
Lurdes
Quina
ResponderEliminarLurdes
Bem-hajam.
Desculpem-me a demora na resposta, mas ando afogada em trabalho.
Beijos