sábado, 17 de dezembro de 2016

DESEJO DE NATAL

– Acorda, que o Menino Jesus já veio. Anda, levanta-te para veres o que deixou para ti!
Para trás ficara a ceia – de bacalhau com pencas e rabas, tudo muito bem regado com fios de azeite, encostado ao lume para descoalhar. Depois, filhós e rabanadas a brilhar…
A geada debruara o vidro da janela da cozinha e o gato Bernardo, que já entrara pela gateira, aninhava-se ao meu colo. Chegara a vez de olhar os ovos que a galinha chocava, aninhada no cesto debaixo do escano: encostados à luz da candeia deixavam perceber o crescimento do embrião e a senhora, mãe, ia-nos explicando tudo. Faltava pouco para os pintainhos nascerem e a senhora deixaria que cada uma de nós escolhesse um para ser o “seu”, para assumirmos com ele a responsabilidade de colhermos as urtigas, amassarmos os farelos e dar-lhe de comer enquanto ele não fosse capaz.
Nessa noite não haveria velada, pois cada família estava em sua casa. Rezado o terço, lembrava-nos que puséssemos os sapatinhos encostados ao lume e mandava-nos dormir.
E era com uma voz sussurrada, como se não quisesse assustar o Menino Jesus, que a senhora nos despertava em chegando a meia-noite:
– Acorda, que o Menino Jesus já veio. Anda, levanta-te para veres o que deixou para ti!
E nós levantávamo-nos, excitadas com a expectativa da surpresa. Eu dava-lhe a mão – não sabia andar sem a sua mão arrochada à minha – e, depois de atravessarmos a salinha, entrávamos na cozinha que parecia mais iluminada do que o prado no Verão.
De dentro do sapatinho tirávamos um rebuçado, uma laranja, ou qualquer outra pequena coisa e ficávamos felizes. Os nossos risos enchiam a casa e era esse o presente que o Menino Jesus lhe dava a si e ao pai. O brilho do vosso olhar era o agradecimento mais terno que Ele escutava nessa noite. Também eu o via e guardava-o.

Mãe, venha despertar-me outra vez!




quarta-feira, 7 de dezembro de 2016

GILBERTO


Nem sei que diga, tamanha é a tristeza. O Gilberto despediu-se hoje de nós e vai a sepultar amanhã à tarde em Rebordaínhos. Ontem tinha feito anos. 

Parece que custa mais a acreditar quando as pessoas são bem humoradas como ele, tendo sempre na ponta da língua uma graça para bem-dispor a todos. 

Recordo os inúmeros momentos, na nossa casa de Lisboa que ele frequentava por causa das muitas cirurgias a que teve de se submeter devido aos ferimentos sofridos em Moçambique;  momentos hilariantes apesar dos motivos ("Senhor Manuel, ainda tem pão de ontem?" perguntou ao padeiro. "Sim", respondeu este. "Bem feito, que o não vendeu todo!", rematou ele a conversa, recordando que, na véspera, o sr. Manuel lhe não vendera pão, alegando que o tinha reservado).

Recordo, sobretudo, e com enorme gratidão, que ele e a Dorinda  proporcionaram à minha tia Helena e aos meus pais um fim de vida em família e na sua terra. Deus lhe(s) pague.

À tia Delfina, à Dorinda, ao Hélder, ao Hugo e ao Edgar, as minhas mais sinceras condolências.
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A fotografia é de Junho de 2005: estávamos a festejar os anos do João, o meu marido.
Faz hoje 11 anos que o Zé Mateus, meu cunhado, faleceu.
Zé e João, dois bons amigos do Gilberto a quem Deus também já levou.
Quanto a mim, parece que estava a adivinhar, quando me pus a escrever sobre a Canteira.

segunda-feira, 5 de dezembro de 2016

CANTEIRA


O caminho terá pouco mais que 1m de largo, mas agora, com o uso escasso, limita-se à dimensão das pegadas humanas. É a canada da canteira, talvez a mais pequena das canadas que atravessam o povo, ou das que dele saem. Se fosse rua de uma cidade, diríamos que desemboca numa praça ampla (a eira dos Pereiras/Fernandes, a poente) e num largo (para onde se voltam as casas do sr. Bernardino, da sra. Delfina, o palheiro do sr. Adriano e as traseiras do sr. Carlos “Chiote”, a nascente). É sítio sempre húmido e absedo, porque encravado entre muros.
É da nascente que dá o nome à canada que me apetece falar: a fonte da canteira. Que é fonte nós sabemos – afinal, da ferida aberta naquela fraga brota uma água fresquíssima onde enchíamos os cântaros para dessedentar os animais. Mas, porquê «canteira»?
Efabulando:
Se canteira é “pedreira donde se corta pedra para construções” (Dicionário de Moraes, fins do séc. XVIII), seria toda aquela zona uma enorme pedreira onde os fundadores da nossa terra se abasteceram para construir as suas moradas? As enormes pedras, erguidas como menires à entrada da eira, poderão ter saído dali e fazem jus ao nome…
E se canteira for “pedra que se põe nos cantos ou esquinas das paredes. Lapis angularis”, conforme ensina Bluteau (início do séc. XVIII)? Atendendo à primeira parte da entrada: terão saído daquele lugar as magníficas cantarias que formam os cunhais das nossas casas?
Prefiro ater-me à segunda parte do verbete de Bluteau: Lapis angularis –  pedra angular, a pedra que encerra a construção do arco e o sustenta . A pedra extraída do lugar da nascente é grande, destinada, por certo, a um edifício que o povo visse, comummente, como merecedor de desvelo maior: a igreja, único edifício que, na nossa terra, ostenta um arco, um belíssimo e amplo arco romano todo ele feito de cantaria.
Será que, quando olhamos para a pedra angular, sobre a qual se ergue o selo heráldico do bispo de Miranda a assegurar que a nossa paróquia lhe pertence, conseguimos identificar a proveniência de tão delicada cantaria?
O arco delimita a entrada no altar-mor, o espaço mais sagrado das igrejas, aquele onde se encontra Cristo consagrado; Cristo, a pedra que os construtores rejeitaram e se tornou pedra angular. Será da canteira a pedra que, na nossa igreja, simboliza Jesus?
Da fenda aberta na rocha brotou água.
No deserto, durante o êxodo do Egipto, foi ordenado a Moisés: Ferirás a rocha e dela sairá água, e o povo beberá. (Livro do Êxodo, 17, 6)
Que Moisés terá fendido as nossas fragas para que delas brotassem as águas? Que construtor terá decidido não rejeitar a rocha e a levou para o templo daquele que é fonte de vida?

Tudo quanto deixo escrito não passará de devaneio. Mas quis partilhá-lo convosco.