segunda-feira, 29 de junho de 2009

ROSTOS

VI

Aqui ficam, então, as fotografias que o António Jarrete fez o grande favor de pôr à nossa disposição. Digam lá que não são maravilhas?

Lugar: Eira frente à casa do tio Júlio Jarrete
1 - Tio Júlio Jarrete
2 - Sr. Padre Amílacar
3 - Tia Lurdes
4 - D. Lurdes de Mirandela
5 - Lurdes, filha de D. Lurdes e Sr. Carvalho
6 - Sr. Carvalho, marido da D. Lurdes
7 - Toninho, filho de D. Lurdes e Sr. Carvalho







Lugar: Fonte Grande
1 - Tio Belmiro (Grifo)
2 - Tio Júlio Jarrete







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Nota: daqui a dois dias apresentarei nova e boa surpresa: uma história escrita pelo Tonho do tio Arnaldo que, tenho a certeza, agradará a todos. Que outros sigam o seu exemplo e percam o medo (ou a vergonha, sei lá) de contarem as suas memórias, porque é da soma delas todas que poderemos compor um retrato fiel das gentes da nossa terra.

quinta-feira, 25 de junho de 2009

ECOS DO MEU SENTIR



V


TREINO A VALER, Pilatos e companhia Lda.

por
FILINTO MARTINS


Calor… moscas… ninhos… ovinhos… passarinhos… 1960…
Já rareava o folar… o recheio da tarde passava a ser outro – "horas de compensação". Os mais espertos tiveram a vantagem de um reforço especial em casa dos senhores professores – a Bernardete, o Pilatos, eu e outro companheiro para “jogar sueca”, varreu-se-me da memória. A sessão decorreu no corredor, sentados num banco onde nos íamos acomodando.

O senhor Carlos saiu aligeirado do seu quarto, que era à direita de quem entrava, saudando estes heróis. E que artistas! Acho que ele saiu com pena de ver aquelas criaturas indefesas, quais ovelhas badanas às mãos do tosquiador.

O treino costumava ser na escola, mas para nós, como os exames estavam à porta era preciso algo mais, para a grande final que se realizava em Bragança, sede de concelho.

Mal entrávamos em casa dos senhores professores e víamos, na mão da Dona Maria, um livro com uns morangos vermelhos, apetitosos, que ilustravam a capa, logo o Pilatos dizia, em surdina: "Ai que hoje é ditado e contas de reguadas…" agora era a sério, pois cada erro valia uma.

Da cozinha, que era mesmo ao lado, vinha muitas vezes um cheirinho e não raras vezes, seguia ao seu encontro uma ordem da Dona Maria. Enquanto ditava e nós escrevíamos, alguns eram mais lentos, o recado da professora para a criada: "Sara, esse arroz já deve estar cozido!" O Pilatos, que ia sempre atrasado, só não ia na idade e na malandrice, confundia o ditado com a ordem e perguntava:

- Senhora professora, arroz é com um z com um sê?
A Dona Maria, furiosa logo ripostava:
- O arroz é para a Sara!
O Pilatos, em voz baixa, resmungava: "Então escrevo batatas, eu até gosto mais!" No fim do ditado era um arraial de reguadas.

Dado que a porta não estava calafetada e os vidros não eram duplos, ouvia-se a tia Teresa chamar: "Ó Augusta…" e logo o Pilatos acrescentava: "Já comes!"

Noutras alturas, ao fundo desse corredor, à esquerda havia uma sala com uma alcofa, donde vinha um cheirinho a maçãs e fruta, que os manos primavam pela sua apresentação e conservação. À direita era o quarto da Dona Maria… amplo… arejado.

Uns meses antes o cenário, para mim, tinha sido outro.
Com os meus irmãos, a Lucinda e a Sofia fomos cantar-lhes os reis. Receberam-nos muito bem-dispostos. Junto à lareira estava um forno único na aldeia, que a mim me seduzia, porque era pequeno, redondo, diferente dos outros. A Dona Maria começou por servir-nos uns bolos que pareciam muito apetitosos. Como não podia deixar de ser, eu dei logo uma dentada num e resmunguei em voz baixa: “são farelos!” Os meus irmãos não se atreveram a dizer tal e lá iam tentando engolir, lembrando-me os perus da tia Emília ao engolirem as “porretas” das cebolas, até que num sorriso amplo e bondoso a Dona Maria exclamou: “só ele é que acertou”. Assim eu acertasse nas contas! A seguir é que nos serviu uns mimos, enquanto o senhor professor, mesmo com um ar mais sério, deu um rasgado sorriso, pois não era dado a muita exteriorização, mas o senhor Carlos procurava servir e ria-se a bom rir.

É bom recordarmos, recordarmos… Quando abro uma gaveta das recordações, gosto de ver a assinatura do senhor Francisco Joaquim Fernandes Ribom, com aquela letra pequenina, certinha, em que as maiúsculas se destacam das minúsculas de forma clara e evidente (eu não sou perito em grafologia – fica o desafio…) e o registo civil é de Santa Comba de Rossas, sendo do mesmo o ajudante.

Somos feitos de memória e esquecimento, portanto desenvolvamos a memória afectiva, esquecendo as ofensas que foram por amor. Aqui recordo aquela data de 11 de Julho de 1960, quase meio século… Não "exijo" que os meus companheiros de carteira tenham esta memória positiva, mas esforcemo-nos por recordar o positivo e esquecer a página negativa. Aqui recordo como éramos em crianças… com pouco, éramos felizes…

Para aqueles que gostam: o nosso mestre escreveu Rebordainhos, sem acento e o Delegado Escolar apôs-lhe o “maldito acento” – prenúncio do acordo ortográfico!?


Hoje, tão longe no tempo, tenho que agradecer e admirar o profissionalismo destes irmãos que sabiam distinguir a escola, a rua, a casa onde sempre fui bem recebido e jamais alguém poderá dizer, que não levei umas boas reguadas por serem tão meus amigos. Até tive um prémio: reprovei um ano, porque era inteligente. Para que conste, segue cópia do meu exame de 2.º grau que tem a data de mil novecentos e sessenta. Faz no próximo dia 11 de Julho quarenta e nove anos.

Chegou o grande dia. Parecia que íamos para uma festa… Apanhámos o comboio em Rossas. Uma vez chegados a Bragança, lá fomos que nem cordeirinhos para a escola da Estacada, onde se realizavam os exames.

No largo fronteiriço, autênticos cachos de alunos bebiam as últimas recomendações dos seus mestres. Os nervos eram muitos, mas tudo ia correr bem. Provas de manhã e de tarde. Mesmo assim, ainda deu tempo para comprarmos com os olhos, lindos brinquedos nas montras das lojas, pois na aldeia só havia duas tabernas e rebuçados bons, só na festa da Padroeira.

À noite, cada um foi para o seu quarto que a família alugara, ou para casa de algum amigo ou familiar, porque no dia seguinte havia provas orais e os transportes não permitiam as tais comodidades. Eu fui para casa da senhora Aurora, na rua dos Batoques.

Que o diga a filha do Raul dos Vales, acho que se chamava Alzira…
Naqueles dias de invernia, nevoeiro de meter medo, lá chegava ela… Hoje seria uma heroína, naqueles tempos uma aluna como qualquer outra. Lá onde estiveres, Alzira, ao fim de quase meio século, permite-me que te elogie pela tua coragem, dedicação. Sinto orgulho de ter sido teu colega de escola. Hoje serias condecorada no dia dez de Junho. Não quero esquecer outra colega de Arufe, a Olívia e aqueles companheiros dos Pereiros, que não raras vezes faltavam porque não conseguiam passar na ribeira que transbordava.

Saíram os resultados… Todos aprovados. Cá fora esperavam-nos os professores todos orgulhosos, sorrindo para os colegas, diziam em voz baixa: “Eu sabia que os meus alunos estavam preparados!” Hoje, estariam lá os repórteres dos diferentes canais de televisão. “A Prova de Aferição” até foi fácil…

Chegámos à aldeia, como os cordeiros que regressam ao redil, numa tarde-noite de Verão. A prenda foi o calor do lar e as últimas horas de fato, mãos nos bolsos puxando as calças para mostrar os sapatos novos, que era preciso guardar para a festa que estava próxima.

terça-feira, 23 de junho de 2009

Retoma de uns rostos atrasados...

A minha irmã Augusta não me vai levar a mal que publique parte de um e-mail que me escreveu... Reza assim:

A blogosfera traz-nos realmente muitas surpresas. Imagina que um funcionário do IPB é filho do Rogério do tio Júlio. Exactamente! Hoje, porque tive de me deslocar à Escola de Educação, ele viu-me, esperou por mim e... surpresa!...
1º - relativamente à fotografia da malha onde está a Marquinhas e o Cinquenta, o Fernado Jarrete diz que aquela personagem que todos dizem parecer-se com os Alves, é... o tio Leque (opinião não corroborada pelo irmão Rogério). Mas o Fernando diz que afirma quase a pés juntos. E, agora que mo disseram, não é que a mim também se me parece? Indaga lá junto dos restantes, se não haverá essa possibilidade.

Há, ainda, outra surpresa: a oferta de duas fotografias portentosas que publicarei a seu tempo. Obrigada Augusta e obrigada meu primo distante, neto do tio Júlio!

Entretanto, aqui fica a personagem de que falámos já tanto: é o tio Manuel Leque ou o tio Francisco Alves?

Fica aqui mais uma achega, enviada pelo Rui Freixedelo, neto do tio Eurico e da tia Julieta.

Eu quando mostrei à minha avó ela disse que era possível que fosse ele [o tio Francisco Alves, seu pai], mas tinha dúvidas devido à idade da sra. Marquinhas, que não deve andar longe dos 65, e da morte do meu avô que foi em Dezembro de 55 julgo... Ou seja foi há 53 anos aproximadamente. E por isso, ela pôs as suas duvidas, mas não sei mais. Não sei se isto ajuda muito, mas é só na tentativa de dar uma achega.

sábado, 20 de junho de 2009

ROSTOS

V

Prossigo a saga, mantendo-me fiel ao acervo dos senhores professores. Tornou-se evidente que grande parte das pessoas retratadas não encontram eco na nossa memória, mas parece-me importante continuar a publicar as imagens porque documentam aspectos físicos da nossa terra. E se são as gentes que humanizam o espaço, conhecer as transformações dos lugares há-de permitir-nos compreender melhor aqueles que os habitam. Nas fotografias, alguns espaços são evidentes, mas outros nem tanto. Procuremos, então, descobri-los. Pode ser?

É por descargo de consciência que numero as pessoas fotografadas. Pessoalmente reconheço, apenas, os senhores professores e o sr. Carlos. Algumas das crianças poderão, porém, ser os pais ou as mães de alguns de nós. As saudades que temos deles!

Que belo medeiro! Em que eira? A fisionomia de algumas mulheres lembra-me gente do Outeiro, mas não me atrevo a propor ninguém!

Eira - Outeiro? Do tio Manuel Frade, no Outeiro?
1 - Tio Marquês
6 - Tia Olímpia (Maneta)
7 - Sr. Professor
13 - Sr. D. Maria
15 - Tia Matilde (mulher do tio Marquês)
16 - Tia Lídia


Uma encenação, mas que vale como documento. Os mais novos poderão ver os malhos com que os nossos pais malhavam o pão. Confesso que me regalei ao ver a Sr. D. Maria de vassouro e o Sr. professor de espalhadoura...

Eira - do Cubelo? do tio Amadeu?
(casa à direita: da tia Isabel Pelada? do tio João Badalinho?)
1 - Sr. D. Maria?
3 - D. Graça?
12 - Sr. Professor


Eis como se prova que em Rebordaínhos até os burros jogam à bola!

quarta-feira, 17 de junho de 2009

Meditação

abundancia.JPG


..........Quem parte em Junho leva o olhar repleto de beleza
..........e leva consigo o perfume dos fenos.

..........Sobre aqueles que partem em Junho
..........cairá chuva de giestas
..........e o seu corpo fará sentido depois de transformado em flor.

..........Quem parte em Junho
..........não se despede,

..........acena para nós.

Jun. 2005

domingo, 14 de junho de 2009

ARES DA SERRA

XI - O SENHOR PROFESSOR
por

António Augusto Fernandes


Era uma instituição aquele senhor professor, Francisco Ribom de seu nome, natural de Carrapatas, já na Terra Quente. Ele era o Senhor Professor por antonomásia. E, como todas as instituições do tempo de Salazar, virtualmente eterno. Já fora professor de meu pai, acabei eu a quarta classe, desandei e ele por lá ficou ainda a desencardir muita cabecinha serrana com o alfabeto, a tabuada e a palmatória, o grande adjutório pedagógico.

Alto, enxuto de carnes, rosto sobre o comprido de faces secas e bem esquadriadas, testa estreita com três rugas de pessoa dada ao pensamento, farta cabeleira levemente ondulada e já um pouco grisalha, nariz fino e vibrátil, olho acinzentado. A sua figura tinha algo de austero e até de hierático. Trajava impreterivelmente fato de cor neutra, entre o cinza e o castanho, calçava botas de calfe, à Salazar e usava gravata, a única gravata que se usava em Rebordainhos. No Inverno, sobre o fato, um capote de três voltas com gola de raposa, esse que por aí nomeiam de alentejano, mas que sempre se viu por terras de Bragança. Com este seu ar distinto, aristocrático mesmo, era com naturalidade que impunha respeito aos parranas que calçavam botas de couro cru cardadas, meotes de lã churra e vestiam jaquetas de cotim por cima das camisas de popelina.

Por esta sua longevidade docente começava, como todas as instituições longevas, a aureolar-se de lenda: constava que, colocado ainda muito jovem em Rebordainhos, se afeiçoara de tal modo à terra que fizera com a Direcção Escolar o pacto de, em troca da sua permanência na aldeia, construir a expensas suas aquela escola que ainda hoje lá se vê no altinho da Portela. Si non è vero è ben trovato! Edifício simpático na sua alvura de pombal, voltado a nascente como um pombal, ao centro da fachada um patim coberto (já desaparecido) a que se acedia por três degraus, um pátio com duas cerejeiras bravas e um murete em toda a volta, onde hoje se fazem os magustos e sardinhadas conviviais da comunidade (e que os façam por muitos anos e bons!).

Todas as manhã, excepto aos domingos, ele e mana, a Senhora Dona Maria, saíam de casa, a antiga cadeia comunal junto ao Pelourinho, pontuais como ingleses. O sinal era dado pelo sino, como se de cerimónia litúrgica se tratasse. Nós, os da Portela, víamo-los apontar no início do Prado, junto à forja e quando curvavam para o pátio do sr. Amadeu, enfiávamo-nos de escambulhada na sala de aula, cada um no seu lugar. Ele a transpor o limiar, e nós a erguermo-nos como impulsionados por uma mola, hirtos como soldados em miniatura, estendendo o braço direito e clamando em coro marcial: bom dia, senhor professor! Tinha destas coisas bonitas a disciplina do Doutor Oliveira Salazar que nos contemplava lá de cima, do seu retrato encaixilhado! Ele dum lado, o General Craveiro Lopes do outro, eram como dois acólitos para o Cristo Crucificado que presidia ao acto docente.

Nas manhãs de forte geada ou nevão corríamos ali acima, ao giestal do tio Zé Foguete a arrebanhar duas fronças de giesta seca mais uns guiços e armávamos grande lumaréu no patim para acender a braseira, conquistando assim alguns créditos para a hora de enfrentar a palmatória que não se fazia rogada na altura de corrigir os ditados ou declamar a tabuada.

Era aliás para o carvão da braseira e para o giz que, logo no princípio do ano, éramos convidados a esportular a fortuna de dois mil e quinhentos réis (propina única, mas que nem todos tinham) e que, nas manhãs mais frias, nos davam direito a desengaranhar os dedos para conseguirmos segurar o lápis de ardósia.

Não, não era nada fácil ser-se garoto nessas terras e nesses tempos; fazer a quarta classe era para muitos uma verdadeira odisseia. E se eram bravos os invernos então! De uma vez, aí por 1953 ou 54, o nevão deixou-nos isolados do resto do mundo durante uma semana. Nem o burrico do tio Benjamim se atrevia a descer a Rossas em cata do correio! Valeu que o telefone tinha chegado por essa altura à Taberna de Cima, do tio António Trocho − o posto oficial dos correios − e muitas vezes até funcionava. Mas foi uma delícia essa semana de férias em que o pessoal jogou à bolada até dizer chega, fez bonecos de neve por todo o lado e arroussou o traseiro sobre giestas por quantas ladeiras nevadas a geada tornava escorregadias como vidro! Ficou nos fastos da freguesia tal nevão! E tal foi ele que, depois de uma noite de tormenta, pela manhã, tivemos que desentulhar a porta da tia Ermelinda para ela poder sair de casa. Meu pai ainda tentou cavar um túnel até à casa da tia Isabel Caldeireira, mas desistiu porque a abóbada lhe desabou sobre a calva.

Aos sábados era dia de faxina: corríamos ao dito giestal, mas desta feita para cortar ramos de giesta verde e flexível com que armávamos esplendorosas vassouras que nos permitiam entrar em negociações com as meninas da sala feminina, a da D. Maria: numa partilha muito democrática de tarefas, nós fazíamos-lhes as vassouras e elas varriam também a nossa sala, quando estavam para aí viradas.

É bem verdade que era ríspido e nada escasso em distribuir palmatoadas. De uma vez alguém levantou a atoarda: se esfregássemos as mãos com alho, as palmatoadas não doíam e, mais extraordinário ainda, o alho fazia rachar a palmatória! E num belo dia de Inverno, que era quando as palmatoadas mais doíam nas mãos enregeladas, a sala tresandava a alho como em dia de alheiras. Rica lembrança! E logo o senhor Professor que tinha faro mais apurado que perdigueiro de raça. Entrou na sala, estacou, fariscou os ares, enrugou a testa… e lá foram dois ou três que tinham abusado na receita tirar a prova dos noves:

Então dói ou não dói!? E, pelo rictus facial dos eleitos, parece que sim, que doía a valer. E a maldita da palmatória que nem uma fendazinha abriu!...

A palmatória era, naqueles tempos, o grande adjutório pedagógico. E o senhor professor não era nada peco a usá-la. Mas um belo dia aquela bolachinha de madeira com cinco furos e uma haste desapareceu. A nossa alma alegrou-se. Vinha aí a nova pedagogia de abolição dos castigos corporais e parece que um ou outro Inspector mais adepto da nova escola começava a implicar com a santa luzia, como o sr. Professor lhe chamava. Puro engano. Em seu lugar apareceu uma régua luzidia, de sessenta centímetros de comprimento por um centímetro de espessura, encomendada à arte do tio Hermenegildo carpinteiro. Esta sempre dava para ir disfarçando a função punitiva com uma parca utilização a traçar segmentos de recta no quadro. Como se não bastasse para desgraças, a certa altura o Luís Moleiro teve a triste ideia de trazer da Ribeira dos Pereiros uma longa e direitíssima vara de avelaneira. A intenção do doador era que servisse de ponteiro no quadro e nos mapas, mas a experiência ensinou-nos que a sua virtude primeira era a de nos esgaçar as orelhas à distância. E pior ainda quando algum de nós era posto à frente das hostes em pé, de vara em riste. Como trazíamos sempre algumas contas em atraso com alguém, ai de quem fizesse menção de abrir a boca, a vara zunia sobre o transgressor. Para salvaguarda da justiça cósmica que preside aos destinos humanos, deixe-se registado que foi o Moleiro, o da ideia, o primeiro a experimentar-lhe os efeitos salutares.

Devo reconhecer que as minhas mãos não foram das mais castigadas, talvez por já lá ter aparecido a saber ler, desemburrado, em Macedo de Cavaleiros, por uma tal D. Clarinha, à volta dos meus cinco anos. Mas tal resguardo não obstou a que, já em preparativos para o exame da quarta classe (que para muitos constituía a primeira visita a Bragança), em certo ditado onde aparecia a palavra paralelepípedo, tendo eu prantado paralelípedo, pagasse com duas valentes palmatoada a sílaba escamoteada.

Se na leitura e aritmética me ia safando, a minha desgraça eram as linhas e ramais dos caminhos-de-ferro mais a geografia das Colónias: não havia maneira de empinar estupidamente aquelas coisas alheias à nossa experiência. E foi sobretudo em tais matérias que a S. Luzia me aqueceu as mãos. Isto soa como um horror escatológico para as pedagogias emolientes de hoje, mas, em boa verdade, não me fizeram mal nenhum, estas e outras, só me espevitaram as memórias, como dizia o povo, e não é por elas que guardo qualquer rancor ao bom do Mestre.

Mas, se a vida não era fácil para a ganapada sujeita a tal regime, também não era pêra doce para ele, tendo pela frente para cima de vinte raparigos semi-selvagens e distribuídos pelas quatro classes. Faziam-se cópias, garatujavam-se as quatro operações na lousa de ardósia, declamava-se a tabuada em altos berros, tudo em simultâneo e numa balbúrdia gloriosa. Silêncio só na sacrossanta hora do ditado dos grandes, os da quarta que preparavam o sua ida a exame, que isso de passagens administrativas era heresia ainda por inventar.

Em lousas de ardósia se escrevia com pauzinhos também de pedra (numa grande fidelidade ao étimo latino − lápis − pedra em latim, que deu origem ao nossos lápis), que o papel estava para lá das nossas posses e guardava-se para o grande Caderno Diário, onde deixávamos à vez a nossa dedada para a posteridade. E o trabalhão que não foi convencer-nos a não limpar os gatafunhos da lousa com uma cuspidela e um esfreganço do canhão da jaqueta! Havia que trazer na sacola um farrapinho humedecido dentro de uma caixinha de graxa… Mas quem é que na aldeia engraxava fosse o que fosse!?

Por esses tempos emergia lentamente o fenómeno que havia de substituir a matéria-prima das alfaias caseiras, a madeira, o barro e a folha-de-flandres. Surgia a era do plástico! O primeiro toque, para nós mais palpável, dessa revolução foi um cinto de vidro sintético (assim chamávamos ao plástico transparente) que o Tonho do tio Alípio Pequeno recebeu de um tio emigrado no Canadá. Andava ufano o rapaz e no recreio sacava-o das presilhas para podermos admirá-lo, palpá-lo, mirá-lo contra o sol. E todos nós lhe propúnhamos negócios mirabolantes em que, para além nos nossos cintos miseráveis de cabedal, entravam nozes e rebuçados e canivetes e o diabo a quatro. Não havia negócio possível para a maravilha inaudita!

Num outro dia, outra maravilha. O Sr. Professor entrou na sala menos severo, quase afável. Mandou-nos sentar e, sem mais explicações, mergulhou uma folha numa bacia com água. Com ares misteriosos de mago, disse para esperarmos cinco minutos. Foram os cinco minutos mais silenciosos da temporada. Com mil cautelas retirou a folha da água, escorreu-a, foi encostá-la a um vidro da janela do fundo, alisando-a cuidadosamente com o lenço. Aguardou que secasse; depois, lentamente, foi despegando uma película translúcida e, como por magia, no vidro ficou estampada a gravura colorida dos Lusitos da Mocidade Portuguesa a saudarem a bandeira nacional. E tal foi o nosso embasbacamento, que à hora do almoço, o Ferreira, que era curioso, não resistiu a experimentar a consistência da pintura com a unha. Resultado: um rasgãozito de dois milímetros no canto inferior esquerdo. Quando o Professor entrou para as aulas da tarde, que também ele andava embevecido com o fenómeno, foi mirá-lo de perto. E olha se lhe escapava o rasgãozito! Foi uma das mais feias tareias que nos foi dado ver.

Embora por vezes exorbitasse na abundância das reguadas (quando o víamos branco, os lábios finos como lâminas e as aletas do nariz fremindo, já sabíamos que vinha aí tempestade!) hoje estou em crer que ao rigor de tal regime, que não apenas ao nosso brilhantismo intelectual, se deve ter deixado atrás de si uma das aldeias mais alfabetizadas de Portugal e a escola de Rebordainhos a pôr o ramo entre as mais produtivas do concelho. Isso a que hoje se chama sucesso escolar e se fabrica com sucessivos abaixamentos da bitola de exigência.

Já naquele tempo ele ensaiava uns tenteios do ensino experimental, trazendo o quotidiano para a sala de aula: uma plantazita, uma folha de árvore, postais… E um dia, para nos falar de cerâmica e para nosso deslumbramento, apareceu com uma chavenazita chinesa miniatural do seu serviço de chá a que chamou de porcelana de casca de ovo. E era de facto fina que nem casca de ovo, para desdouro das nossas toscas malgas de Massarelos em que migávamos o caldo!

As gentes da aldeia estimavam-no e ele, embora com alguma distância, tratava-as sem sobranceria, com natural urbanidade e gostava da terra como se nela tivesse nascido. À sua queda para arquitecto que se ficou a dever o traço da única fonte artística da aldeia em pedra lavrada, no pequeno largo do Pelourinho, a olhar para o adro, com uma certa graça levemente neoclássica. Ainda hoje lá está, como sempre sem verter uma pinga de água e não sei se alguma vez terá tido outra finalidade que não fosse a decorativa.

Os tempos que a ensinança lhe deixava livres passava-os ele na sua quintinha, logo ali à saída d’À-Chave, em Vale-d’Espada (nome lindo, a evocar cavalarias medievais!...) onde mais tarde viria a construir moradia e onde ensaiava experimentações na área da botânica, num pomar limpo e arrumado que nem sala de estar. Nunca ali entrei que não fosse acometido do receio de trazer agarrada às brochas das botas alguma lama da que as vacas largavam em trânsito pelos caminhos da aldeia. De certa maneira esse pomar representava para a minha mente infantil um esquisso do Paraíso Terreal. E não tanto pela inacessibilidade dos muros altos, mas sobretudo pela abundância e variedade das árvores fruteiras, pela esquadria em que elas se alinhavam e, sobretudo, por umas certas maçãs vermelhas enormes que lá reluziam e convidavam o garotio a uma lapada furtiva. A esse tempo, a fruta não abundava na serra, quer porque as árvores de fruto eram uma espécie de luxo sem valor mercantil, embora alindassem as estrema de muitas courelas, quer porque as geadas tardias frequentemente queimavam a fruta ainda na flor. Por isso, aquele esplendor pomífero deixava-me siderado a imaginar que fora com uma maçã daquelas que a nossa mãe Eva pusera às voltas a cabeça do mal-aventurado Pai Adão. Ainda hoje me formigam na consciência algumas que por lá apanhei às escondidas, naquela canada que lhe passava à ilharga a caminho da Galiana.

Que lá, na etérea região onde se premeiam os justos, o Pai de todos o recompense da boa sementeira lançada nas terras ásperas de Rebordainhos.


domingo, 7 de junho de 2009

ROSTOS

IV


O Tonho do tio Arnaldo (Braz) fez o favor de mandar esta fotografia. Para compensar, diz ele, daquelas onde quase não reconhecemos ninguém. Anteriormente já tinha enviado outras. Acrescento duas dessas aqui e, acredito, muitos gostarão de se reconhecer nelas.

(Carregar nas imagens para ampliar)

Café do sr. Víctor Martins (Labaredas)

1:Ramiro (da tia Isabel Pelada)
2: António Gomes da tia Julieta do Gomes)
3: Alfredo (da tia Celeste)
4: Jorge Pereira (Pilatos)
5: António Braz
6: Fernando (do tio Carlos sapateiro)
7: Guilhermino Fernandes (Sortes)
8: António Belisário
9: Eurico (do tio Sebastião)
10: Duarte (do tio Carlos sapateiro)
11: Joaquim (Kung Fu, filho do tio Moreno, irmão do Serrinha)
12:
13: Jorge (da tia Alzira)
14: Alcino Pereira (do sr. Silvério)



"Para comprarmos este equipamento tivemos que justar uma terra para segar o centeio, o que fizemos durante a noite, com a maior parte de nós sem saber por que parte se lhe pegava à seitoura", conta o Tonho do tio Arnaldo.

1: Manuel Ferreira (do tio Aniceto)
2: Tonho (da tia Lídia)
3: Manuel Caminha( Nelzeira)
4: Ernesto da tia Virgínia
5: Evaristo (do tio João Fouce)
6: Pedro (do tio João Fouce)
7: Zé Maria (do tio César)
8: Tonho (do tio Arnaldo)
9: Gilberto (da tia Delfina)
10: Tarcísio (do tio Sebastião)
11: Henrique (do tio Arnaldo)

Não numerei as personagens desta fotografia por me parecer de difícil leitura. O Tonho, se se lembra de quem lá figura, há-de fazer o favor de nos dizer. A mim agrada-me muito, por mostrar a arquitectura das medas, tão bela como a das pirâmides de Gizé. À eira, nunca me lembro de lhe chamar um nome - é, somente, a eira do tio João Fouce, do tio António Piloto e do tio Francisco Chicheiro onde, desde que me lembro, na Páscoa, jogávamos ao cântaro e dançávamos os jogos de roda. A malha é, provavelmente, a da tia Aninhas (Rafael) que, depois de desfazer a sua eira, passou a malhar nesta.

Em primeiro plano, sobre o medeiro com a espalhadoura: Tio João Fouce
Do seu lado direito: Silvério Pereira (do tio Benjamim)

terça-feira, 2 de junho de 2009

EM JEITO DE HOMENAGEM

À SENHOR DONA MARIA

por
Albertina Mateus


Diziam-nos que era “posteira”. O irmão, esse sim, tinha as qualificações adequadas para a função. Por isso é que ela era a “Sr. D. Maria” e ele o “Senhor Professor”. Nada de confusões... Um(a) e outro marcaram, contudo, a vida pessoal e colectiva de uma comunidade inteira durante, pelo menos, duas gerações.

A história recente de Rebordainhos confunde-se, em boa parte, com a dos irmãos Ribom. Eram três – os dois professores já citados mais o Sr. Carlos, personagem mais acessível e popular que apoiava a vida profissional dos irmãos cuidando das terras e do agregado familiar. Solteiros os três, haviam de revelar-se, cada um à sua maneira, nucleares no desenvolvimento cultural da comunidade de Rebordainhos.

Sinto-me na obrigação de deixar registada uma pequena homenagem à mulher que me marcou pelas suas qualidades humanas e profissionais, que foi responsável por eu ter seguido a profissão docente e que, com a consciência profissional que hoje detenho, continuo a admirar profundamente – a Sr. D. Maria.

Como comecei por referir, sempre ouvi dizer que a Sr. D. Maria era posteira. Porque ensinava num posto. Esta era uma outra designação do cargo de regentes escolares criados pelo Estado Novo. Contrariamente ao que se possa pensar, esta medida tomada pelo Regime não visava a alfabetização do povo rural. Constituía-se, isso sim, como um mecanismo de inculcação ideológica, de neutralização das ambições de mobilidade social, de apaziguamento dos espíritos mais inconformistas visando a aceitação da ordem social e política existentes. E procurou diferenciar-se das doutrinas educativas da 1ª República introduzindo alterações estruturais que definem, de per se, os objectivos prosseguidos, de que destaco: o fim da coeducação – rapazes para um lado, raparigas para o outro –, a abolição das Escolas Primárias Superiores responsáveis pela formação de professores, e a redução da escolaridade obrigatória para três anos.

Este pincelado pela política educativa do Estado Novo – necessariamente incompleto e pouco rigoroso – tem como único propósito o contextualizar da acção da pessoa que pretendo homenagear – a nossa professora primária. É que ela, incorporando embora a ideologia em vigor e cumprindo à risca aquilo que o sistema lhe pedia, ultrapassou, de longe, a mera enunciação do que a legislação previa para a função. E apesar de defender que a mulher devia ser, antes do mais, boa esposa e boa mãe, também sempre apoiou a alfabetização das crianças da aldeia, incutindo nelas o gosto pela aprendizagem, pelo conhecimento, apoiando-as nos seus anseios de irem mais longe.

Mas a Sr. D. Maria incorporava em si todos os requisitos de uma excelente profissional da educação. Ela era uma educadora, acima de tudo. Trabalhando em estreita articulação com as famílias, tinha consciência de que tinha de se ultrapassar, de substituir as mães enquanto elas trabalhavam arduamente no campo. E por isso a sua acção não se restringia aos muros da escola. Lembro-me, por exemplo, da sua luta contra o esbanjamento. A quem não guardou ela na gaveta da secretária o molho de lápis de pedra com que nós aparecíamos na aula após a sua aquisição, enquanto aguardava que nós gastássemos o que ela nos entregava até ao limite? “Os pais trabalham de sol a sol, meninas. O dinheiro custou-lhes muito a ganhar...”E quem não se lembra de ela, nas manhãs frias de inverno, mandar a Sarinha para a escola para acender a braseira para que os alunos vindos dos Vales, da Quinta, de Arufe e dos Pereiros se pudessem aquecer quando chegassem (antes de todos os outros, sempre!)?

Esta educação pelo exemplo serviu-me sempre de referência em toda a minha carreira docente. Mas a Sr. D. Maria também já era vanguardista na sua acção pedagógica junto dos alunos. Lembrei-me agora, por exemplo:

- Da utilização da diferenciação pedagógica. Não podia ser de outro modo. Tinha as quatro classes em simultâneo dentro da sala de aula... Enquanto tratava de uma classe ou aluno em particular, os outros tinham tarefas bem definidas que cumpriam zelosamente, através da distribuição de tarefas individualizadas;

- Do recurso frequente à tutoria. É um método que utilizei diariamente com resultados muito positivos. Basicamente, consiste em pôr um aluno como responsável por outro a quem esclarece as dúvidas e ajuda na organização. Lembram-se dos colegas mais velhos que verificavam e corrigiam os trabalhos de casa das classes dos mais jovens? E dos que ela punha a ajudar um colega com mais dificuldades?

- Do apoio pedagógico curricular extra horário que ela também utilizou, principalmente em vésperas de exame. Juntando rapazes e raparigas, lá íamos nós às sete horas da manhã para a escola, para aproveitar as duas horas que antecediam a chegada da generalidade dos colegas...;

- E o caderno diário? Lembram-se dele? Como a regra era a utilização da pedra, a Sr. D. Maria comprava folhas de papel almaço pautadas, quadriculadas e de desenho que ela cortava ao meio e depois formava cadernos alternando o tipo de papel. Cada dia era uma a responsável pela escrituração do caderno diário. Lá ficava o registo do ditado, da cópia, da redacção, das contas, dos problemas, e da ilustração de um dos textos escritos. Querem documento histórico mais relevante? Que é feito desses retalhos das nossas vidas? Será que ainda existem?



Saudade
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Pelos tempos que já foram. Admiração. Pelo vanguardismo de alguém que me serviu de referência. Gratidão. Por saber que muito do que sou hoje a ela o devo. Felicidade. Porque, seguindo o exemplo de alguém, me senti realizada. É que tenho a certeza que ambas fizemos coincidir os nossos projectos de vida com os nossos projectos profissionais.

segunda-feira, 1 de junho de 2009

NOVIDADE

Isto é uma novidade e uma estreia absoluta. A meu pedido, a minha irmã Albertina aceitou escrever um texto sobre a senhor dona Maria, tendo em conta que o Tonho me tinha enviado um outro sobre o senhor professor e me parecia que as coisas ficavam desequilibradas para o lado masculino. Amanhã publicarei o escrito da Tina; dias depois será a vez do do Tonho.

Agora, meus amigos, tenham paciência, mas vou-me atirar uns foguetes.