Quando o tempo nos empurra já pela ladeira descendente da vida, insidiosamente vão-nos invadindo as memórias de uma infância que nem sabemos ao certo como foi, mas que se nos aparenta longínqua e feliz, aureolada de uma poalha dourada como a do amanhecer, em que se esbate a barreira entre o sonho e a realidade. E que importa isso? Foi infância e bonda!... Sabemos lá nós se o mais importante é a realidade vivida ou a realidade sonhada!
Por isso, não me acoimem de patranheiro, porque quem me contou esta conta bem sabia do que estava a falar…
Tudo isso o tempo levou. Levou o fontanário, levou o tanque, levou a poça, o negrilho mais o irmão freixo… como nos há-de levar a nós no dia que Deus nos marcou.
Pois era ali, no Prado, que morava a tia Ricardina, numa casita de granito, que ainda hoje lá se vê, degradada em palheiro.
Debruçada sobre o Prado, com uma lojeca por baixo e umas escadas esconsas levando ao piso de habitação, olhava por uma guarita a vida pacata que escorria pelo Largo.
Vivia só, a tia Ricardina. No cortelho, de há muito que não fossava reco de ceva e eram seu gado apenas meia dúzia de pitas muito pachorrentas e pensativas que debicavam o ciscalho abundante naquele espaço democrático do Prado ou, quando a fome atazanava, cirandavam com toda a sem-cerimónia pela cozinha em cata de migalha perdida, ciscando por ali onde muito bem calhava.
Sempre vestida de preto: larga blusa preta, ampla saia preta, à cigana, roçando pelo chão, lenço preto tapando-lhe as ruças esquivas. Era nestes preparos que deambulava pelas ruas da aldeia, como uma sombra, sempre a fazer meia, alheia a tudo e a todos, bichanando consigo mesma, rezas diziam uns que a julgavam beata, esconjuros diziam outros que a tinham na conta de bruxa. Sempre descalça, contrariando os hábitos do povo educado no uso das socas ou dos tamancos, arrastava os pés, vastos como espadelas, quase sem os levantar, como se navegasse, insensível ao pedriço dos caminhos. Suspender a marcha só se pisasse brocha grossa, daquelas com que o tio Grilo ferrava os socos de amieiro. E sempre a fazer na meia. Incansavelmente, perpetuamente, fazia meia com a pertinácia de Sísifo a rolar o seu calhau encosta acima, como se fazer meias lhe tivesse sido decretado pelo destino: acocorada nas escaditas que davam para a cozinha, a falar com vizinha que a interpelasse, em seu deambular pelas ruas da aldeia, de noite, às escuras... com a lã churra das badanas da serra, fabricava incessantemente daqueles grossos meotes que aconchegavam os artelhos de um cristão nos tremendos socos do inverno e que duravam de pais para filhos.
***
Festa de S. Maria Madalena, orago da terra.
Corria um Julho criador: o sol, amigo de bichos e renovos, mais acariciava que crestava. E o céu, esmaltado de um azul sem mácula, resplandecia para maior brilho da festa da Padroeira.
A missa fora cantada pelo P. Amílcar mais quatro colegas das paróquias confinantes, que reciprocamente se convidavam para estas ocasiões mais pingues, e o padre de Rebordãos trombeteara galhardamente o sermão da Santa em voz mais canora que a trombeta do Vale de Josafat, a não desmerecer dos cem mil réis que esportulava.
A cerimónia religiosa findava com a procissão:
À frente a cruz, alçada com prosápia pelo Santa Combinha e logo a fieira dos andores e pendões sob escolta das crianças enfarpeladas de Cruzados. As rapariguinhas com uma bata e um lenço, semelhando enfermeiras da Cruz Vermelha muito compostinhas, pasmavam na contemplação muda e recíproca das toilettes de festa. Os ganapos, com uma faixa cruzada sobre o peito onde ressaltava o vermelho-papoula da cruz das caravelas, apontavam o nariz ao céu, muito atentos à trajectória dos foguetes na mira de ir rebuscar as canas por hortas e batatais mal se desembaraçassem da cruzada na sacristia.
Vinha depois o rancho dos homens, de chapéu na mão, conversando muito familiarmente sobre searas e colheitas, enquanto alongavam o olhar pelos verdes da
Fonte-da-Vila, da
Ribeirinha, pelas searas louras da
Airoá, até a encosta da
Cabeça.
No calço, o bando das mulheres, mais contidas, bichanando o terço ou trauteando os hinos entoados pela banda de Pinela, garbosa em suas fardetas e atroando a quietude do princípio de tarde com quantos hinos e marchas constavam do repertório.
Seguia-se, a fechar o desfile, a figurinha gentil do P.e Amílcar, muito sumida debaixo do pálio. E, lá no alto, vagarosas sobre o esmalte azul, vogavam as fumarolas brancas deixadas pelo estouro dos foguetes.
O cortejo iniciava-se pela
À-Chave − a entrada da poveca para quem vinha da civilização; subia ao
Covelo, passando rente à poça de rega onde chafurdava a chusma de patos e gansos da tia Ana Costa, que, alarmados pelo instrumental, desarvoravam em grasnidos mais bulhentos que os das banda, levantando voos rasantes sobre os andores e grande hilaridade entre os devotos. Seguia-se a rua coleante da
Portela: já pelos ares erravam os aromas dos assados de festa e um ou outro devoto suspendia a devoção, aspirando, de narinas aflantes, a brisa balsâmica; e, ao passar pela
Fonte Grande, meia fileira de petizes largava as hostes para ir mergulhar os beiços na água fria que tentava um santo. Baixava-se ao
Prado, beirando as tabernas donde alguns relapsos às suas obrigações religiosas espreitavam o cortejo pelas portas semicerradas. Passava rente ao bairro do
Outeiro, mas sem lá chegar, para não ter que voltar pelo mesmo caminho, à porta da casa amarela da tia Joana Padeira, derivava-se à esquerda… e pronto! estava-se de novo no adro.
E com isto eram horas de jantar! A criançada largava atabalhoadamente as suas batas e faixas de cruzados sobre o arcaz da sacristia, para grande arrelia das catequistas, a rapaziada do pálio e dos andores desembaraçava-se das opas vermelhas e, finalmente, os abades saíam da sacristia palrando animadamente, a caminho dos lavradores mais abonados, onde abancariam para a janta de festa.
***
A igreja já se despovoara, mas a tia Ricardina deixou-se ficar, muito salamurda, simulando entrega às suas devoções, mas espreitando pelo rabicho do olho se o campo estava livre. Quando se certificou de que todos tinham desandado ao encontro do bródio festivo, adiantou-se até ao altar-mor. Ajoelhou. Depois sentou-se sobre os calcanhares para melhor alçar os olhos para o Cristo do crucifixo grande que presidia às celebrações. E orou:
− Ó Senhor, eu estou sozinha no mundo e porque sou pobre e velha nunca me calha nem padre nem músico que jantem comigo. Por isso… vinha-vos convidar…
Chegada aqui, hesitou, meio repesa já do seu atrevimento. Aquilo era lá casa para onde se convidasse alguém! Ainda por cima, o Nosso Pai do Céu, rodeado de rendas e dourados, a Quem os senhores padres atiravam baforadas de incenso… E ia retirar o seu convite, alçando-se para se pôr ao fresco, meio envergonhada, quando lhe pareceu ouvir:
− Está bem, Ricardina…
Voltou-se e … podia lá ser!...
Dirigiu-se de novo para o portal dos fundos, um pouco alarmada com estas suas caturrices de velha, quando de novo uma voz mansa, muito ténue:
− Vai andando, que eu já lá vou ter.
***
Das galinhas sacrificara a que não andava a pôr! Tinha já deixado o estrugido feito antes de ir para missa, foi só lançar uma pouca de água no pote de dez malgas − que a pita era tão gorda que derreava um braço, esperar que levantasse fervura e acrescentar o arroz que, nesses tempos, em casa de pobre, era comida de festa. Sentou-se no escano e pôs-se à espera, que o Senhor não devia tardar aí.
Mas o Senhor não aparecia… Quem se especou no traço da porta a fariscar o perfume do seu arroz de galinha foi um pequenito dos ciganos Laregos, que nunca falhavam por esta altura. Rotinho, descalço, muito ranhoso, de candeolos acesos, lamuriva:
− Ó nha senhora, tou cheinho de fome… a senhora não me dava qualquer coisinha…
− Bem, não era de ti que estava à espera… mas paciência! O arroz sempre há-de dar para mais um.
Ainda o Lareguito não tinha dobrado o cotovelo da rua, já lá vinha o Sérgio.
Este Sérgio era um tolinho, manso como o pão, que vagueava por toda a província, garantiam mesmo que já tinha descido ao Porto, mas no dia de Santa Madalena era certo e sabido em Rebordainhos. Sempre de casaco e gravata, mas descalço, dava-lhe para apanhar quanto trapo ou papel velho topasse pelas ruas. Na véspera da festa, quando por todo o lado se ouviam pios, balidos, berros da bicheza imolada para o ágape festivo, ele percorria as ruas de braços no ar, em passadas nervosas, como um profeta antigo, increpando o povo para que não matasse a pitinha, não matasse o cordeirinho, o cabritinho, que eram criaturinhas de Deus! Que comessem peixe, que comessem bacalhau! (Estes, por estranhos à esfera da sua experiência, não gozavam do estatuto de criaturas de Deus). E as lágrimas esbagoavam-se-lhe pela cara abaixo.
Pois também o Sérgio petiscou do arroz da tia Ricardina.
− Santo Deus! E o Senhor sem aparecer… assim o arroz ia ficar sem jeito!
E ainda apareceu mais uma cigana, a mulher do Manelzinho, avantesma gigantesca que fazia três vezes o enfezado do marido. Esta não pedia para comer. Artilhada com tacho dos grandes, pedia para os lacruzinhos dos filhos, acampados no pátio da Escola, e também ela enfardelou e desandou, já servida.
A tia Ricardina começava já a impacientar-se, que o forte dela nem era a paciência. Arrancou para a Igreja com ganas já de descompor o Cristo pela sua falta de pontualidade, que o arroz não é coisa que se possa aguentar, aquilo ia ficar, com sua licença, uma grandessíssima porcaria…
− Ó Senhor, eu à espera… à espera… e o Senhor não apareceu. Assim o arroz vai ficar…
− Enganas-te, Ricardina. Enganas-te. Já lá fui três vezes… E, por sinal, das três vezes muito bem servido.
***
Garantem os mais cépticos, a quem contei a história tal como ma contaram, que tudo isto não passou de uma grande treta. Mas quem ma contou a mim, garanto eu, não era pessoa de endróminas. Assim Deus me salve!