“O meu
rapaz…” “O senhor António…” “ O piloto…”
por: FILINTO MARTINS
Dia
31 de Janeiro faz precisamente 3 anos que o “senhor António” se encontrou
novamente com a tia Felicíssima, tendo como prémio um dia lindo de sol como
despedida, pois ela não estava disponível para lhe fazer uma fogueira ou
aquecer as meias, como era seu hábito, quando o senhor António chegava a casa,
molhado e com frio. Unidos e amigos em vida, unidos na mesma campa.
Há 33 anos vencera ele a morte,
após uma delicada operação… “os meus
garotos precisam de mim…”,
confidenciou-me, precisamente no ano em que eu casei. Mas desta vez o tempo era
dele, o tempo que nunca teve para descansar, concedeu-lho o Senhor.
Voltemos anos atrás.
Fazendo horas para ir regar as
batatas e outros trabalhos, enxotando as moscas atrevidas, eis que meu pai diz
para o tio Manuel Frade:
- Olha, vem aí “o meu rapaz”.
Andar apressado, como era seu
hábito, atirou sem mais:
- Querem saber a melhor? “Cortaram
as batatas” ao João Santo.
- Estava um batatal lindo! –
ripostou o tio Manuel – ainda ontem lá passei.
Era um diálogo entre adultos,
pois nos meus cinco, seis anos não percebia nada, mas disse para comigo:
“hei-de ir ver”. E se melhor o pensei, mais depressa o fiz. Para meu espanto,
as batatas estavam viçosas, com flor e a rama toda… ninguém as tinha cortado.
(Para os esquecidos e mais novos, relembro que “cortar as batatas” significava
reprovar a colheita das mesmas. O agricultor teria que as vender enquanto as
aprovadas em classe A – B ou C seriam vendidas pelo estado que as pagava em
função da classe e as exportava.)
“O meu rapaz” sabia mais de
batatas que a maioria dos Agrónomos da época. Pelo menos fiquei esclarecido e
nunca mais esqueci o número do meu pai, como agricultor de “batata
certificada”. Era o número 28.
Muitos anos mais tarde, dizia-me
ele, na sua sabedoria de agricultor de longa experiência, sem canudo
universitário:
- Ó rapaz, os nossos governantes
estão a dar cabo da agricultura. Não saem dos gabinetes e as batatas já lhes
aparecem no prato e descascadas. Arruínam o petróleo da nossa terra. “Eu já cá
não estarei, mas alguns terão que voltar à terra ou emigrar”.
Não se enganou o Piloto.
Quando eu nasci já o António andava
na tropa. Só mais tarde, andava eu na Faculdade no Porto, pude ouvir muitas das
suas histórias, que gostava de relembrar. Apenas uma: “Estava no Porto e um
senhor de “trás da serra” pediu-me para lhe indicar uma rua. Quando íamos no
elétrico, junto ao rio Douro, ele exclamou: Ena,
o que aqui vai d’auga, rapaz. Isto é que dava jeito para regar as batatas lá da
terra. Ó homem, ficou tudo a olhar para nós e eu fiz de conta que nem o
conhecia.”
Demasiado desinteressado de si,
nem a carta de condução renovou. Sendo censurado por tal, dizia para quem o
queria ouvir: “para conduzir o carro das vacas não preciso de carta”. E se na
agricultura era um ás, o mesmo não se pode dizer relativamente à arte da
culinária. Estando a Maria adoentada, pediu ao António que fosse à cozinha
aquecer-lhe um chá, que estava feito. Com todo o carinho, foi e aqueceu-lhe a
água das alcaparras, que estavam no armário… provavelmente ainda foi melhor o
xarope.
A alcunha de “piloto” ficou a
devê-la ao primo Jaime, provavelmente devido à sua carta de condução. “Já que a
carta não serve para conduzir o carro, vais pilotar algum avião”.
Naqueles tempos a obediência aos
pais ou mais velhos era cega. Ouvi ao meu pai contar uma ida para o campo,
ainda com estrelas, mal se via o caminho, como reagiu “o meu rapaz”. Eu
disse-lhe, pois ia meio a dormir:
- Vai pró carro.
Passos andados, meu pai olhou
para o carro e não o viu. Queres ver que caiu? Ao longe ouviu um barulho
ofegante e chamou:
- António…
- Senhor – respondeu já longe.
- Onde vais?
- O pai mandou-me para casa.
- Não, homem.
A confusão carro e casa nem se
questionava, mesmo que o medo fosse tal.
“O meu rapaz” era assim,
obediente.
Provavelmente também não ouvia
bem, ou fez-se desentendido, pois desta ficou a lucrar. Com alguma frequência
acompanhava o Padre Filinto (deve ter sido daqui que herdei o nome) quando ia
celebrar missa aos Pereiros e outras aldeias, que se deslocava no seu cavalo.
Ter-lhe-á dito:
- Vai pelo cavalo.
Ele entendeu: “vai a cavalo”. Se
bem o entendeu melhor o fez. Veio para Rebordainhos no cavalo e o Padre veio a
pé, pois naqueles tempos não havia telemóveis, nem telefone. Provavelmente até
foi um passeio saudável para o Padre Filinto.
O Piloto era assim, obediente e
ainda não tinha carta de condução.
Contou-me a nossa mãe, se a
memória não me atraiçoa, que ele foi a uma festa e ela disse-lhe:
- António, o que se põe no prato
é para comer, não se deixa nada que é feio.
Comeu e bem comeu. Só que a um dado momento,
já ele não conseguia comer nem uma migalha, puseram-lhe no prato uma coxa de
galinha. Como resolver o problema, agradando a gregos e a troianos? Quando chegou
a casa deu a coxa à minha mãe e disse:
- Eu não podia comer mais,
puseram-me a coxa no prato e como a mãe me disse para não deixar nada, eu vi-os
todos distraídos e meti-a ao bolso.
Era assim o António, obediente e
educado.
Numa ida à taberna do tio Eurico
tomar uma bica, como era meu hábito nas idas à aldeia, nas férias do Verão, ele
confidenciou-me:
- Ó Filinto, o teu irmão António
não tem tempo, homem…
Não percebi a piada e
perguntei-lhe porque é que não tinha tempo.
- Ó rapaz, ele vai cedo regar as
batatas lá para Vila Seco e volta sempre num passo apressado. Há dias passou
aqui, vinha de encerrar os cordeiros e perguntei-lhe pelas batatas.
- Espera aí. Meteu-se uma pedra
numa bota lá em cima na serra e vem a magoar-me, tenho que a tirar.
- Estás a ver… o teu irmão é um
mouro de trabalho, nem tempo tem para tirar a pedra da bota.
Era assim o António, não tinha
tempo.
- António, o tempo agora é todo
teu. Descansa em paz.
Do teu irmão Filinto