sábado, 27 de setembro de 2008

António Rodrigo

Recordo-o como uma figura serena, ora sentado à mesa com os fregueses, ora atrás do balcão medindo metros de pano ou litros de arroz. Às vezes, quando o sol apetecia, punha-se à porta, naquelas grandes pedras graníticas que ainda hoje convidam ao lazer e à conversa.

Casado com a senhora Angélica Costa, o senhor António Rodrigo era o dono da “Taberna de Cima”, herdada de seu sogro, o senhor Belizário. O povo, que lhe chamava Trocho de nomeada, também lhe deu o epíteto de “Pai dos Pobres”. Nessas coisas o povo não se engana.

Naquele tempo, comprar fiado era condição de sobrevivência. As leiras de cada um davam as batatas e o feijão, alimento de todo o ano, cozinhados com uma lambedura de toucinho criteriosamente racionado desde a matança do cevado até à matança do ano seguinte. Os filhos eram muitos e dinheiro vivo só quando se vendiam as castanhas – quem as tinha – ou quando se recebia a paga de uma jeira em casa mais abastada. Nessas alturas, quem tinha o nome a encimar uma folha do “Deve” no livro do tio Trocho, apressava-se a ir saldar a conta ou a pedir para abater. Mas havia quem nunca o fizesse. Mesmo assim, continuava a aviar a todos com a mesma gentileza. Nem que fosse tabaco! – “Coitado, deixai lá, que tem o vício!” O hábito de tudo assentar para ter contas certas vinha-lhe do sogro. Nos livros de ambos tanto se regista a venda dos artigos como, por exemplo, a compra de uma porca a meias com alguém ou de uma mobília ao Adriano Oliveira, natural do Porto e tio e padrinho de quem assina este escrito, pela quantia de 3 550 000 Réis. Estava-se no ano de 1945 e, apesar de haver o Escudo desde 1911, os valores ainda se registavam em Réis. Não há revolução que vença o costume! Quem não souber as equivalências, divida por mil e obtém o resultado em escudos.

Tal como as outras – e chegou a haver três – a taberna de cima era um lugar onde havia de tudo para bastar às necessidades aldeãs. Pregos, relhas para a charrua, meias, bacalhau miúdo e graúdo, açúcar, pano a metro de cotim, chita e riscado que as costureiras, a tia Maria da Avó e a sr.ª Laura primeiro ou, mais modernamente, a Cândida e a senhora Julieta transformariam em calças, vestidos e camisas com que todos cobriam o corpo. O vinho não poderia faltar, servido a copo na própria taberna ou vendido ao garrafão para consumo caseiro quando secava a pipa comprada no Inverno. O tio Trocho abastecia-se de tudo em Bragança onde tinha fornecedores habituais, também eles na posse de livros de dívida, pois quem vende sem receber não pode comprar e pagar logo. Ia de comboio e, à volta, o filho Eurico esperava-o em Rossas com o carro de bois para carregar os fardos das mercadorias.

A certa altura, a Taberna de Cima acrescentou aos afazeres normais os deveres de posto público dos CTT. Era lá que, todos os dias, o tio Benjamim e a tia Elvira depositavam o saco do correio que iam levantar ao comboio a Rossas. Quem esperava notícias punha-se à coca de os ver passar e, em passo ligeiro, dirigia-se ao prado. Quem, normalmente, abria o saco era a senhora Angélica ou, nas férias escolares, a filha Maria Teresa que estudava para professora. Uma e outra iam chamando, à vez, os destinatários, em recriação serôdia de uma das mais belas cenas de Júlio Dinis na sua Morgadinha dos Canaviais. Eram quase todas cartas de longe, Brasil e França, algumas com o debrum colorido da “Via Aérea” e outras, emolduradas a preto carregado, anunciavam a tragédia. Nos anos assustados da guerra, muitos ansiavam pelos aerogramas de Angola, Guiné e Moçambique. Muitas pessoas ficavam para o fim, de carta na mão, à espera que mãe ou filha lhe decifrassem as letras que elas não sabiam ler. Outras procuravam familiares e vizinhos a quem a vida não obrigara a arredar da escola.

O serviço dos telefones era cumprido em quaisquer circunstâncias. Chovesse ou nevasse, fosse de dia ou de noite, a senhora Angélica lá ia dar o recado, a dizer que fulano telefonara e que voltava a telefonar dali a meia hora. Quando as forças lhe começaram a faltar era aos netos que incumbia de desempenhar a função. O telefone, inventado em boa hora, transformava-se muitas vezes em arrelia. Estou? Estou sim? Está lá? Ó diacho de telefone! E dava à manivela, zumba, zumba, às vezes até se cansar. Verificava a cavilha, mudava-a de posição. Zumba, zumba, zumba e nada. Quantas vezes nada, a não ser um barulho indecifrável sinal de avaria na linha. Deixe estar, tia Ingelca! Rendidas à evidência da ineficácia dos esforços, as pessoas guardavam os anseios de falar com a família até que o telefone voltasse a dar.

A par do soto, a família do Sr. António Rodrigo ainda tinha a fazenda e o gado para tratar. – Carai, que burros éramos! – desabafa o filho Eurico. Olha que íamos a lavrar com a cria e à vinda, para não cansar as vacas, trazíamos nós o jugo às costas! E no Inverno? À entrada do povo, que era tudo lodo, descalçávamos os sapatos para os não sujar, nem à casa. Que brutinhos, carai! Eu não sei se eram brutinhos, mas tenho a certeza que tamanho respeito pelos animais deveria envergonhar muitos ecologistas encartados.

Era o gado que mais lhes dava que fazer. Pai e filho não tinham mãos a medir: encerravam o gado às duas da manhã e às cinco já estavam a pé, prontos para o levarem para o pasto. Mesmo assim não deixavam de cumprir os seus deveres cristãos. O senhor padre Caminha, que sempre gostou de educar pelo exemplo, contava aos netos do tio Trocho que aos domingos, para poder ir à missa, o avô espetava uma vara no chão e embarrava-lhe o casaco em cima. Quando voltava ao sítio do pasto, o gado continuava lá todo, confiante de que aquele pau vestido era o seu pastor. Ajuda nestas lides só a tiveram já o filho Eurico se casara com a formosa Julieta da tia Glória. Esse pastor, bom homem não fora a mania de se esconder de quem lhe levava o almoço, esteve lá em casa durante vinte e três anos.

A quem tanto labuta para sustentar os seus ninguém pode levar a mal que se torne cioso do que granjeou. Não era assim o tio António Trocho a quem a vida, se feria, não azedava. Se lhe roubavam lenha era com um Deixai lá, se roubou é porque precisava… que aplacava a indignação da família. Ninguém que demandasse Rebordaínhos ficava sem abrigo. No seu cabanal chegaram a juntar-se para cima de vinte homens a quem fornecia cobertores com que enganassem o frio das noites. Ó Ingelca, faze lá um pote de caldo a estes homes que não têm que comer! Alguns tornavam-se amigos. Outros iam-se embora e levavam o cobertor.

Deixai lá, é porque precisavam!

O senhor António legou aos herdeiros a gentileza, o bem servir e a amizade. Deles falaremos depois, na rubrica dedicada às actuais actividades económicas da freguesia.

Fátima Stocker

sexta-feira, 26 de setembro de 2008

Actividades Económicas
Abastecimento de combustivel

Introdução - Já era nossa intenção colocar no blog informação sobre as actividades económicas dos naturais e residentes na nossa Freguesia, desde que exercidas dentro do Concelho de Bragança.

Nas nossas férias na aldeia fizemos alguma recolha de informação e agora, na medida em que tivermos tempo disponível, iremos divulgá-la aqui. Contamos com a colaboração de todos, para que a informação seja aprimorada. Assim, se alguém detectar alguma informação incorrecta ou incompleta ou se tiver alguma sugestão a dar, por favor contacte-nos através da caixa de comentários ou pelo e-mail que se encontra na aba lateral.


Gerência de: Fernando José Pereira Machado
Foto enviada por Regina Céu Fernandes



Para quem circula no IP4, entre Macedo de Cavaleiros e Bragança, este é o único posto de combustível existente ao longo desses 40 Km. A sua localização está assinalada no mapa constante da aba lateral do Blog.


Colaboração da Augusta Mata (fotos) e Regina Céu Fernandes com o nome correcto do Sr. Feliz, como é conhecido e foto do mesmo

Pedido de colaboração à Junta e aos membros do Blog

As informações iniciais contidas no post da apresentação da Freguesia estavam desactualizadas, por isso, quando o tempo nos permite temos introduzido algumas informações novas e corrigido aquilo que constatámos que estava mal. Hoje demos o trabalho por concluído, mas muito apreciaríamos a colaboração da Junta de Freguesia - através da Milita - para verificar se existe informação errada, ou sugerir que acrescentemos alguma. Solicitamos o mesmo aos restantes membros do blog e aos nossos visitantes, nomeadamente, para a verificação da existência de erros e gralhas em que o meu teclado é perito.

Obrigado a todos

quarta-feira, 24 de setembro de 2008

"NTMAD - Noticias de Trás os Montes e Alto Douro

A Galiza aqui tão perto

por António Chaves

Há uma diminuição da procura de trabalhadores portugueses nas regiões fronteiriças, a par de uma queda da exportação de produtos portugueses para Espanha, que, em Março registou uma diminuição mensal de 7%. Os sectores mais sensíveis são os têxteis, vestuário e calçado que colocam neste mercado um quarto das suas exportações
.............
É a voz de Miguel Torga que nos evoca, ainda, este elo meio desfeito com a terra e com a vida, entre povos irmãos:

Desta terra sou feito.
Fragas são os meus ossos.
Húmus a minha carne.
Tenho rugas na alma
E correm-me nas veias
Rios impetuosos.
Dou poemas agrestes,
E fico também longe
No mapa da nação.
Longe e fora de mão...*

*Miguel Torga; Identificação; in: Poesia Completa; Publicações D. Quixote; Lisboa; 2000.

NTAD é o blog da Casa de Trás os Montes e Alto Douro em Lisboa, sugiro uma visita ao blog (a página demora um pouco a abrir) e onde poderá ler este texto e ver noticias de eventos quer em Lisboa quer noutros locais.

Se está em Lisboa e é sócio da casa aconselhamos ver o Programa do 103º. Aniversário.

O Blog de Rebordainhos já faz parte dos "sitios da Casa"

segunda-feira, 22 de setembro de 2008

Jornal Mensageiro - Comunidade fotográfica

As três fotos vencedoras da "foto da semana" do Mensageiro on line são da autoria de naturais de Rebordainhos, duas delas foram publicadas na edição impressa do referido jornal no passado sábado.
Parabéns aos dois.

foto; António Fernandes
fotos de Lurdes Pereira

carregue aqui para ver todas as fotos


Foto da Fonte do Espinheiro

Publicado no blog da ASCRR um post com uma foto da Fonte do Espinheiro

quinta-feira, 18 de setembro de 2008

Ecos do Meu Sentir





Esta foto foi enviada pelo autor do texto com a seguinte legenda:

"Pôr do Sol no Azibo lendo os contos de Torga"

por
FILINTO MARTINS

Recordar é viver…
… Eis o meu segredo. É muito simples: só se vê bem com o coração. O essencial é invisível aos olhos – Antoine de Saint-Exupéry.

A história não é feita daquilo que lembramos, mas daquilo que não queremos esquecer.

Como assinante n.º 499 do Mensageiro de Bragança, ao lê-lo, numa bela sexta-feira à tarde, vi a notícia: “Blogue de Rebordainhos”, (mas, por favor, sem acento… voltaremos mais tarde ao assunto.), do sofá corri para o computador. Que vejo: Augusta, Olímpia, Fátima e João, único que não conheço pessoalmente. Li… vi… senti…

O Bichinho do Blogue não me largava. Vi, com grande alegria que tinham seleccionado o Grupo “Galandum G.”, para música de fundo… vi… ouvi… senti… Dois elementos do conjunto foram meus alunos, que orientei e aconselhei, como psicólogo, a investir na música. “Força Meirinhos…”

Recentemente aparece a Lurdes, filha do Hermínio… e não será também da Luísa? Só mulheres de Rebordainhos… Logo me veio à mente a realidade, estamos numa nova época: Matriarcado. Afinal onde estão os homens de Rebordainhos? A época dos descobrimentos já vai longe, não há soldados para o nosso ex-ultramar (há chineses), a emigração não justifica, logo só pode ser aquela minha ideia, talvez peregrina… matriarcado. E tenho toda a razão, senão vejamos: quando uma mulher casa, exclamam: “Que noiva tão linda!...”; quando nasce uma criança, perguntam logo: “a mãe como está?”; e quando o homem morre, perguntam: “Quanto deixou para a viúva?...”

Ora, como dizia António Aleixo:

Não sou esperto nem bruto
Nem bem, nem mal-educado,
Sou simplesmente o produto
Do meio em que fui educado…

Nos tempos que correm, surgem teorias e mais teorias sobre a Educação sexual, para a saúde, afectos… Teria a minha pessoa quatro ou cinco anos, Freud tinha razão, quando a tia Antónia, avó do Tonho e do Zé, dizia em voz alta para a minha mãe, duas vizinhas muito amigas: “Ó Olímpia, esborralhou-se a casa do Aníbal Fuseiro”. Já não me recordo com quem estava a brincar, nem é importante, sei apenas que corremos a bom correr até à Chave, a fim de ver em que estado tinha ficado a casa. Que decepção! Aquela estava intacta. Mais tarde compreendi que não era a casa, mas a barriga da filha, a tia Estefânia que tinha dado à luz a Teresa. Uma palavra encerrava todo o enigma – esborralhar – o Tonho pode-nos explicar a evolução semântica do verbo… o borralho é bem quentinho, quanto mais o ventre materno.

A tia Antónia, que eu saiba, não tinha tido nenhuma pós-graduação em sexualidade, por isso não disse: “deu à luz” (ainda não havia electricidade em Rebordainhos); muito menos “pariu” (não sabia latim e só se usava para os animais). Sabedoria popular… Cada vez que morre um velho, é como se uma biblioteca inteira pegasse fogo.

Hoje em dia, felizmente, já não há medas de centeio em Rebordainhos, mas que tornavam as nossas eiras vivas, e não só, durante semanas a fio, lá isso tornavam. Pois aquelas, quando a barriga era grande também se esborralhavam. Nisso era perito o mestre-de-cerimónias, o Santa Combinha, quando de óculos de plástico ocupava o lugar-tenente na malhadeira do Chiote e do Alfredo Guerra… Que saudades das manhãs frias de Agosto ao ouvir-se gritar “à eira que está o bacalhau na caldeira”…

No entanto, embora os Janeiros não sejam ainda por aí além, a primeira ambulância que transportou uma parturiente de regresso a Rebordainhos, foi a burra grande da tia Ana Costa, trazendo pachorramente desde o navalho a Maria que cingia ao colo a filha Augusta, vermelha, gorducha, saudável, para gáudio da avó Felicíssima. (Cuidado com a colocação do adjectivo “grande”). Só muito mais tarde a aldeia pôde ver a camioneta do Carlos Chiote – Hannomague- , que ainda deve constar do caderno de apontamentos do Nelzeira, senão mesmo a matrícula, pois bastava ver ao longe um camião e logo dizia: “aquela é uma Volvo, a matrícula é que ainda não sei”. Também não necessitou de fazer orientação vocacional, nem testes, para descobrir a profissão – tractorista do melhor que havia.

Quando descobrimos as respostas, mudam todas as perguntas.

quarta-feira, 17 de setembro de 2008

Filinto

O Filinto Martins é o filho mais novo do Sr. Adriano Guerra e da Sr.ª Olímpia. A partir de agora será, também, colaborador do "Rebordainhos".

É com enorme prazer (sem Freud pelo meio) que vou anunciando tais adesões, pelo tanto de qualidade que acrescentam a este espaço e porque tão bem sabem falar por nós e de nós.

Por todos os motivos, seja muito bem-vindo, Filinto!



Hoje é dia de lhe desejar as boas-vindas. Amanhã publicarei o primeiro texto da autoria do Filinto.

Fátima Stocker

terça-feira, 16 de setembro de 2008

Ares da Serra

IV - AS METÁFORAS DO AIDINHAS

por
António Augusto Fernandes


Desde que se conhecia como gente que sempre os dias lhe tinham decorrido na solidão dos montes, nos lugares mais ermos do termo, onde nenhum outro pastor lhe disputava os pastios magros e a rabugem dos cabeços à frugalidade da sua cabrada, lá nos longes do Cabeço Cercado, de Penacan e do Fetal ou nas funduras lúgubres do Souto dos Pereiros.

Afeito ao berrar das cabras, ao ladrar dos rafeiros e ao pipilar do passaredo pelas ramagens das carvalhas, reconhecia-lhe o ouvido qualquer murmurejar, do rastejar de cobra ao adejar de asa que momentaneamente quebrasse o silêncio da sesta; distinguia sem custo o piar da folecra do da escrevedeira, se o balido era de animal mimalho ou tresmalhado. Mas quase se desabituara do falar da gente. As palavras saíam-lhe parcas e perras, as frases soltas e de fôlego curto. Era capaz de passar horas reclinado sobre um cotovelo ou encostado ao tronco de um carvalho, a mascar com vagares de ruminante um fio de erva e fitando com olho perdido o passear madraço das nuvens sobre o azul vazio do céu distante. As suas necessidades de comunicação esgotavam-se num afago ocasional à cabeçorra dos cães do gado ou no berro de um nome para uma cabra mais arisca. Nunca se lhe conhecera namoro e as tricas da aldeia passavam-lhe ao lado, distantes como os raros automóveis que, mal surgiam, desapareciam lá em baixo na breve recta de Rossas.

O Nelzeira e o Calhilhas ainda lhe arranjaram um hipotético namoro em Rossas com moçoila inacessível que o deixou em delírio: eles próprios escreviam as cartas de amor que iam lá depositar e que o burro lazarento do Benjamim, o carteiro encartado da freguesia, trazia depois para a taberna do tio António Trocho, onde aqueles que tinham namoro ou familiares por fora iam em cata de notícias. E, claro era o próprio Nelzeira que em voz flauteada lhas ia declamando: Meu Querido Alfredo.... (era este o nome cristão do Aidinhas). E logo este intróito lhe arrancava um suspiro das entranhas − G'anda mulher!...
Sou uma mulher livre e solteira... − continuava o outro. Neste ponto já o sentimentalismo descambava para o acanhalhado e urrava aos saltos: − Ganda mulher... Ai ca puta!...E cada nova asserção epistolar ia sendo sublinhada pelas efusões líricas do Alfredo enamorado.

Mas essa crise sentimental passou-lhe como sezões breves e só para lá da meia idade, já um pouco corcovado, com um sorriso alvar petrificado no rosto, de olhos vermelhos, queimados de sóis e ventos, lhe deu para arrastar a asa à Marquinhas, uma solteirinha de olhar meigo e de face trigueirinha, onde o sorriso murcho desenhava ainda duas barroquinhas desalentadas, na consciência de uma donzelia já muito serôdia para aturar macho ou criar rebento. Era com esse mesmo sorriso muito cansado de esperas e desenganos que ela lhe ouvia os amavios canhestros e, entre trocista e enlevada, lhe rematava:
‑ Ó Alfredo, isto de casamento, já só com a morte!

O calendário era uma construção muito sua: as horas calculava-as medindo a pés o comprimento da sombra que o seu cajado espetado na vertical projectava na erva barbeada das lampaças onde os coelhos pincharolavam em suas farândolas nocturnas; o ritmo das estações e as variações meteorológicas adivinhava-as pelo borbotar dos gomos dos castanheiros, pelo florir da urze, pelo arrepio do vento na face dos codessos, pela errância do sol nos descampados do céu, ora encostando-se, quando nascia, ao torso descomunal da Senhora da Serra, ora surdindo rente ao planalto de Miranda e, ao pôr-se, ia percorrendo, na lentidão dos meses, o cume denteado da serra dos Pereiros, desde Pombares, no Inverno, até à portela de Vilardouro, no pino do Verão. Estações do ano eram também o vento que lhe gretava os lábios de cieiro, se soprava da Sanábria, ou abafava a serra, vindo do suão; as zurbadas repentinas que lhe ensopavam o capote; a calmaria que lhe derreava as cabras e enlouquecia as moscas na sombra modorrenta das carvalheiras. Tudo isso era o grande livro onde lia e donde recolhia as suas memórias.

Nos seus fastos, a estes dados que o coirão lhe registava, apenas acrescentava a memória cristã das três ou quatro festas que a folhinha marca para qualquer filho de Deus na roda do ano.

As noites passava-as, solitário como um cenobita, aquartelado com as cabras numa cerca de tábuas toscas a que por lá chamam cancelas, dormindo numa espécie de tenda de tábuas pregadas horizontalmente em escama de peixe sobre um estrado montado em cima de duas rodas de madeira maciça – o carreto. Por uma portinhola minúscula lá se enfiava como quem entra num cacifo tumular, desses que esburacam as paredes dos cemitérios. Esta minúscula cabana nómada era arrastada pela sua junta de bois mirandeses inteiros através de cerros e córregos, acudindo à fome das terras magras que era preciso estrumar com as caganitas para que, Julho sim, Julho não, dessem à seitoura umas escassas pousadas de centeio. E só nas grandes invernias vinha pernoitar na lojeca debaixo do sobrado da casa materna, onde se amontoava estrume cabonde a povoar de moscas toda a aldeia e a tombar redondo um cidadão de pituitárias medianamente sensíveis que se aventurasse pela rua do Outeiro.
De longe a longe, era substituído pelo Amador, o irmão, e descia ao povoado. Nas suas raras surtidas para fora dos umbrais familiares lá deitava, lento e lerdo, até ao largo do Prado onde, aos domingos, se juntava a mocidade para medir forças nos jogos do fito, da pedra ou da relha e para o desenfado do copo domingueiro. Para tudo arregalava o olho, perpetuamente inflamado de conjuntivite, num grande pasmo iniciático de infante que começa a descobrir mundo; ou então, no adro, depois da missa, pousado no muro do adro como um fardo mal amanhado, as mãos espatuladas sobre os joelhos, quedava-se, muito parado, de sorriso lorpa e babado, na contemplação das moçoilas que, muito coradas, nas suas chitas de ver a Deus, espreitavam de esconso o adjunto e se despachavam lépidas a cortar o caldo verde, depois de cumprida a devoção. Mas como coisa inacessível as mirava, que ao Aidinhas, o cabreiro, de amorios nem era permitido sonhar.

Como patriarca dos tempos bíblicos, parente chegado de Abel, o pastor que Caim matou, presidia à liturgia dos momentos altos da sua comunidade animal. O primeiro chegava com a Primavera, quando a cabrada, alvoroçada pela brutidão animal do cio, lançava pela pacatez da serra um rebuliço feroz que lhe deixava os nervos eriçados. Vinha depois o nascimento dos berrelhos muito viscosos, muito trôpegos no desempenho das funções que a vida manda, içados nos gravetos das pernas finas, desembestados na procura cega mas certeira da teta materna. Eram tempos de fartura em que os pastos vicejavam com o Abril das águas mil coadas por um mandil: medravam os cabritinhos e ainda se enchiam vastos latões de leite fumegante que a irmã, a Perpétua, transformava em minúsculos queijinhos alvos que acudiam às encomendas do povo. O próprio Aidinhas se recreava desta abundância: à hora da merenda recostava a cabeça sobre um torrão e, apontando à cratera das fauces escancaradas os úberes tensos de uma cabra mais amojuda, matava fome e sede, com a placidez dos heróis homéricos. Em alturas de maior requinte gastronómico, com a navalha peliqueira vazava de seu miolo a calote de um pão centeeiro grande como uma roda de carro, enchia a concavidade com o leite fumegante e nele migava o miolo recolhido. “Que nem o senhor Bispo!” – resumia, no final, o Aidinhas, jubiloso no seu festim, limpando os beiços regalados à manga da jaqueta.

E vinha depois o momento supremamente triste da venda dos cabritinhos. Quando o pastor já se lhes afeiçoara e os conhecia pelo nome que, como padrinho, lhes dera, incorporando-os assim na sua grande família, lá aparecia um desses peliqueiros das bandas do Vimioso, de nariz hebraico, encardido na jaqueta de cotim e calças de pana, os dedos calosos desfolhando as sagradas notas que curam todas as maleitas e matam todos os apegos sentimentais. A dor quase animal da separação era, assim, mitigada pelas folhas verdes que lhe enfloravam as mãos encardidas e pela certeza de que da sua cabrada saíam os mais tenros e saporidos cabritinhos que na festa de S. Maria Madalena seriam celebrados pelos abades e romeiros de muitas léguas em redor e iriam alegrar a mesa dos pobres, que também são filhos de Deus, com o direito de, ao menos uma vez por ano, rilharem até ao tutano os ossos tenros do chibinho mamão.

Eu tinha quase a certeza de que, embora muito me esforçasse por lhe ler no rosto um qualquer e difuso lirismo ou um grande misticismo de comunhão com as forças cósmicas, por detrás daquelas feições, talhadas à podoa em pau de carvalho, nada mais havia que uma crassa vitalidade animal. Mas enganava-me: a sua própria linguagem, muito sucinta, tinha por eternos pontos de referência a água e as pedras, as carvalhas e os bodes, o chão e as nuvens – essas coisas concretas de que os platónicos desdenham, mas que balizam os saberes de quem se sabe profundamente enraizado na terra que pisa, madre de todas as coisas. Era, assim, que sustido por esse saber sabia compor um cumprimento com um quanto baste de urbanidade e temperado com uns pozitos de poesia, ao cruzar-se com a filha mais novita do João Fouce, a Fátima, que viera de férias:
− Então a menina veio visitar os paizinhos?... Faz bem… faz bem! O chedre sempre torna à sua urzeira!

Ademais tinha o Aidinhas uns longes de filósofo estóico, dos que acreditam no valor do esforço e da contenção, ainda que não soubesse enunciar o abstine et sustine que os loquazes discípulos de Zenão alanzoavam nas suas lições do Pórtico nem partilhasse da severidade de Catão. Acontecia que, por uma tradição familiar herdada da mãe, a tia Marquesa, o Aidinhas se considerava mordomo vitalício do S. Silvério, aquele santo pequenino e muito compostinho que tinha altar à mão direita de quem entra e que lá na terra era padroeiro protector contra as trovoadas, com mais virtude ainda que Santa Bárbara. Ou de motu proprio ou por inspiração celeste, tinha o mordomo a enorme convicção de que a sega dos fenos só se podia empeçar depois da festa do santo que a folhinha marcava a vinte de Junho, caso contrário a coisa podia dar para o torto. Ora, nesse ano, o tio Manuel Frade que era um taralhão sem ordem nem tempo, antecipou-se em dois ou três dias ao estipulado pelo calendário, pelo santo ou pelo seu mordomo (o que para o caso tanto faz!) e ao Aidinhas não lhe descansou a consciência enquanto não chegou à fala com o energúmeno, não fosse da transgressão advir grande dano para todos os fregueses: − Ouve lá, ó Manuel, então tu já segaste o feno, alma do dianho?... Isso era pressa de andaço!? Põe-te a pau!...É o que t’eu digo… olha que o S. Silvério é fodido!...

Festa de S. Maria Madalena, orago da terra. Houvera missa cantada por seis coroados, com sermão bem gorjeado pelo abade de Rebordãos, e procissão pelos caminhos escadeados do povo, com anjinhos e andores e hinos santos entressachados de marchas heróicas trauteadas pela banda de Pinela. Depois do almoço bem embutido e bem regado, lá vinha o Aidinhas, mais ancho que D. Juan Tenório. De mãos empochadas nas profundezas das pantalonas de cotim novo, ainda cheio de goma, de botas ensebadas a preceito, de jaqueta vestida às direitas e não apenas dependurada do ombro esquerdo, como costumava quando, pelos montes, lançava a lapada certeira a cabra transgressora. Em tais preparos demandava o Aidinhas, em passada larga e ufana, quase marcial, o bailarico que já zoava para as bandas da eira da Cabecinha.

− Então, Alfredo, para onde é a ida? − Era o Orlando do Piloto a tisicá-lo. De bigodinho ralo à Clark Gable, o moço, que era facecioso e requestado das donzelas, estudava para engenheiro lá para as capitais e não resistia a dois dedos de treta.
‑ Às fêmeas – atirava ele, em sorriso maroto de gabarolice inocente.
‑ Ah! valente Alfredo! Assim é que é… E essa vida como vai?
O Aidinhas alheava-se da questão, mais interessado noutros assuntos:
‑ E tu dás-te bem com os ares da capital? Aquilo é que há-de ser por lá femeaço de encher o olho, hã!? – e arregalava o olho inflamado da conjuntivite crónica.
‑ É verdade, Alfredo – tornava o outro. E a tua cabrada dá ou não dá?
‑ Vai dando... É o que t’eu digo!... – continuava ele na retranca; e quedava-se, de boca aberta em risinhos de semicolcheias e olhos fitos, no jeito muito seu de um súbito interesse, meio desfrutador, meio curioso, pelo seu interlocutor.
‑ Ao preço a que tu vendes os queijos e os cabritos... isso é uma mina, não?
O Alfredo que nem ao padre se confessava, mascou duas ou três vezes em seco, olhou a biqueira das botas, olhou com ligeiro desdém o bigodinho hollywoodesco do engenheirito e lá se desatou:
− Ó home, é o que t’eu digo, não vai mal!... podia ser pior. – E parou em seu discurso como quem já houvesse falado em demasia ou deitasse contas à vida. – Então, quando é que sais doutor?
‑ Qualquer dia. Mas a cabritada vende-se bem... – lançava-lhe o outro, em provocação.
‑ Pois é! É o que t’eu digo (este era o grande bordão afirmativo do Aidinhas, mesmo que ainda nada tivesse dito ou nada estivesse para dizer). ‑ É o que t’eu digo, home. ‑ Estacava, indeciso. Depois, num arranco, como quem se desnuda: ‑ É o que t’eu digo, home. Nada mau. De serra a serra são cem contos!... É um francês!...

Definitivamente, o Aidinhas tinha-o arrumado! Um bocado aturdido, o Pilotito magicava com os seus botões se o Aidinhas estaria a mangar com ele, ou se, à força da solidão continuada pelos carrapitos da serra, já treslia, ou até, sabe-se lá, se andaria a ler Alberto Caeiro às escondidas.

Dias depois, propunha ele ao pessoal o enigma do Aidinhas, escorregadio, sucinto e profundo como o da Esfinge. E teve que ser o avô, o tio Adriano Guerra, homem de muitos adágios e de muita pachorra arranjada por lá, na espera do coelho e da perdiz, a acicatá-lo: “Ó brutinho, então tu não vês...”

É que, bem vistas as coisas, além de filósofo, o Aidinhas também era poeta. E o avô Guerra lá foi explicando: “de serra a serra” não tinha nada a ver com as serranias por onde o Aidinhas perambulava atrás das cabras. Era, isso sim, uma medida de tempo e designava a roda do ano que ia da festa da Senhora da Serra, até à Senhora da Serra do ano seguinte. A Senhora da Serra, a romaria mais badalada num círculo de quinze léguas, calhava no sete de Setembro e rematava o ano agrícola. As colheitas do centeio e das batatas já estavam a recato, pagavam-se os fiados no soto do Trocho e do Jaime, liquidavam-se as rendas das leiras e a avença ao barbeiro, deitavam-se contas ao ano e à vida e, ou por devoção ou por desfastio, trepava-se ao coruto da serra de Nogueira onde Nossa Senhora aparecera a uma pastorinha muda e marcara com neve, numa manhã cálida de Agosto, o perímetro da capelinha que desejava ver construída. Construiu-se a capela e falou a muda e desde então não faltaram os peregrinos com direito a novena quando a devoção ou promessa a pagar assim o ditassem.

Vinha, portanto, o Aidinhas significar, em seu dizer pitoresco, que, no decurso do seu ano económico, realizava um encaixe líquido de cem contos de réis, o que, para as magras finanças aldeanas e o viver cainho de há quarenta anos, era capital considerável. Ou seja, segundo os seus cálculos nada tolos, correspondia ao que um francês – o emigrante em França, protótipo do novo-rico – agenciaria durante um ano a trabalhar na estranja.

Ora aí está. Fazendo-se de pé-tolo, o Aidinhas dava uma de intelectual. Bem! Ministro das Finanças não digo. Mas que o Aidinhas daria um razoável Secretário de Estado parece-me indiscutível. Mas, sobretudo, poeta. Poeta é que ele era! E, no uso da metáfora, precursor muito temporão do carteiro de Pablo Neruda. Predicados, como sabem, nada despiciendos nos prosaicos tempos que correm.



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As fotografias mostram o Sr. Alfredo e a Sr.ª Perpétua (sua irmã) e foram tiradas pela Fátima no Verão de 2008.

TININHA

A Tininha no seu casamento (com a Tia Teresa a seu lado)
(carregue em cima da imagem para ampliar)

Era pequena e esguia, de rosto muito expressivo, fino e rosado. Falava com os olhos.
Quando o tempo o permitia, era vê-la no alto das suas escadas, de riso franco e aberto, a provocar quem por ali passasse. Era, habitualmente, a protagonista das mais variadas e habilidosas traquinices que muito divertiam os vizinhos.
Quando chovia, colava o nariz à vidraça, espiava o dia lá fora e esperava que alguém lhe atiçasse a curiosidade. O resultado, eram sempre respostas rápidas e certeiras que conseguiam calar o mais dotado orador.
Sempre foi acarinhada, mimada e protegida por todos os vizinhos, pais, irmãos e habitantes da aldeia.
E, enquanto as raparigas do bairro faziam desta menina a sua boneca, o Orlando observava-a da janela da sala da casa de seus pais (mesmo em frete à dela), para hoje a recordar e lhe dedicar este poema cheio de humor e de muito carinho.
Esta menina traquina foi crescendo e transformou-se, durante muito tempo, na companhia preferida e apreciada pelos mais idosos (em especial pela minha mãe), aos quais dedicou atenção, disponibilidade e amor. Com ela, todos criámos fortes laços de amizade e, embora vá já nos seus trinta e tais, continua a ser a nossa Tininha.
Hoje, é mãe atenta e dedicada.
Por tudo isto, obrigada TININHA!
Olímpia


TININHA

I

Após meio-dia de labuta,
De fadigas geridas no tempo,
Já junto aos potes e com devoção,
Temperam-se forças de alento.

Até que o rebanho chegasse,
Sentados e depois da oração,
No repasto, tanto que bastasse,
De tempero para nova luta.

Entre eles uma bailarina,
Tão leda, fresca e matutina
Que radiava perfumes de flor.

Alpendorada na quadrícula,
Recortes d’ escada granítica,
Que descia e subia de cor.

II

Do seu meio metro de altura,
Dançava, cirandando na casa,
Qual pardalito de grão na asa,
Porque casa de pão é fartura,

Com saia de pétalas rodada,
Pregas de malmequer invertido,
Que ao corpo bem se ajustava,
Tal como se fosse um vestido.

Este malmequer de perna fina
Sapatos leves, avermelhados,
Fivelas luzentes e douradas,

Qual duende, ou só bailarina,
Saída de um conto de fadas,
Levitava por campos e prados.

III

Lá estava ela, lisonjeira,
Prontinha a pôr toalha e pão,
Esperando o pai, … a primeira
Cantava, e ajudava em vão.

Aguardando a ordem que demoram,
Ir ao “baixo” de copo vazio,
Acalmando assim o fastio,
De ledos desejos que afogam.

Cumprida a alçada do umbral,
Desce com um sorriso ambíguo,
Suspira, e olhando em redor,

Não haja um espreitar contíguo,
Abre a loja, com simples pudor
Desfiando o cordel de sisal.

IV

Encosta-se ao bojudo pipo
Em solenidade de banquete,
E como ritual erudito,
Roda o amigo torniquete.

Para que ninguém vá desconfiar,
Respira fundo, e lança reza,
Com a solenidade que preza,
Apressa o tempo de atestar.

Prova-se o agradável vinho,
Tão fresquinho e miraculoso,
Que as róseas faces acarmina,

No paladar doce e saboroso
Degustado com tento e tino,
Enleva os sonhos da menina

V

Já com algum tempo decorrido,
E algumas canções ensaiadas,
Velha lenga de duas palavras,
Como trovas no tempo perdido.

Gritando para se fazer notar,
Dizendo assim cumprir o dever,
Cantando mais alto, como a dizer,
Pai, estou bem, estou a descansar.

Porque, quando ao copo abica,
Naquela sede que o implora,
Toma tino e vai-se embora

Com a saudade da doce pipa
Desejando outra nova volta,
Sem contar o tempo da demora

VI

Atesta novamente e prova,
Não vá o pai, quiçá, amadurar,
E com esta luz não se comprova
A altura certa de regressar.

Agora as escadas são a subir,
E daqueles dez degraus a descer,
Vinte ou trinta vai ter de cumprir
Nesta devoção de agradecer.

Vamos reatestar e repetir,
Está na altura do retorno,
Porque os degraus já são a dobrar.

Para que ninguém possa alvitrar,
Que esta ideia de só servir,
Sirva de moeda de suborno

VII

No lento regresso, com agrado,
Forçando a vontade de chegar,
Esquece miragens e enfado,
E ensaia os temas a cantar.

Senta-se no beiral da escada,
Dependurando suas pernitas,
Matutando a forma apropriada
De comportamento com visitas

Agora, não se sente altiva,
Mas perante tal insatisfação,
Desafia musas ao relembrar

Brejeiros sons, em versão popular,
Envergonhando qualquer aldeão,
Não fosse esta a versão nativa.

VIII

Assim, gastando o encarnado
Do lustre das suas sandálias
Perdem-se pétalas e dálias,
Mas sente o serviço prestado.

Cantarolando em transmontano
Naquele calor de brincadeiras,
Ergue-se de faces prazenteiras
Colocando o copo no pano.

Entregando só meio produto,
Pelos trinta trabalhos que cumpriu,
Destes tirando o usufruto,

E que ninguém desconfiou, ou viu,
Cantando, e além do que se diz,
Foi senhora, ainda que petiz.

Orlando Martins

domingo, 14 de setembro de 2008

Parabéns

Muitos parabéns ao Rui Freixedelo, filho da Maria Angélica (e neto do Sr. Eurico) e à Ana Luísa Proença, filha da Maria Augusta (e neta do tio António Piloto) e à Filipa Martins, filha da Denérida (e neta do meu tio Manuel) porque, merecidamente, entraram na universidade.

O Rui vai para a Faculdade de Engenharia da Universidade do Porto, tirar Engenharia Informática e Computação. A Ana entrou na Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa. A Filipa entrou para Farmácia no Instituto Politécnico de Bragança. A Filipa, cujos pais são de Parada, merece figurar aqui porque o avô materno é de Rebordaínhos.

Só me apetece cobri-los de beijos!

Fátima

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Há mais alguém para acrescentar à lista? Quem souber, por favor informe-nos.

quinta-feira, 11 de setembro de 2008

Jornal Mensageiro - Comunidade fotográfica

A foto enviada pelo Rui Freixedelo para concurso

Agora que passaram as férias, decidimos voltar a colocar no Blog informação sobre o concurso da foto da semana da comunidade fotográfica do Mensageiro (on-line). Não enviámos qualquer foto para o concurso que encerrou hoje, mas existia uma à votação que me pareceu familiar (e sobre um tema de que gosto: portas e janelas). Embora não saiba ao certo onde ela foi tirada, fiquei a saber que o autor é o Rui Freixedelo (2.ª contar do fim do lado esquerdo, classificada com 4 estrelas). As fotos vencedoras e que serão publicadas na edição impressa do próximo sábado, são as que se encontram na 1.ª fila. A do lado esquerdo parece-me bem classificada. Já a outra, no meu entender, não o merece! Aquelas de que gostei mais são as que se encontram na 3.ª fila.

Carregue aqui para visualizar as fotos da semana

Esta semana já enviei fotos para concurso.

Fotos enviadas para o blog

Fotos acabadas de receber do Brasil e enviadas pelo natural de Rebordaínhos "César Batista".
Estas fotos devem ter aproximadamente 30 anos.
O nosso obrigado ao seu proprietário pela sua cedência para publicação.
carregue na imagem para ampliar



carregue aqui para ver as fotos

terça-feira, 2 de setembro de 2008

Forais

Segundo Alexandre Herculano, os concelhos são entidades com individualidade e coesão próprias instituídos por uma carta de foral. Ao estudar os numerosos documentos da nossa história medieval, Herculano chega à conclusão que existem vários tipos de concelhos. Aqui interessa-nos o primeiro grupo deles: Rudimentaes – Imperfeitos – Completos que correspondem aos que foram criados desde antes da fundação da nacionalidade até ao séc. XIII. Embora datada do início do séc. XIV (1304), é aqui que devemos integrar a carta de povoamento confirmada por D. Dinis aos moradores de Arufe. É esta carta de povoamento uma carta de foral? Sim. Cito Herculano: Mas qual é o facto social que deve representar essa cohesão, essa individualidade? Quanto a nós deve ser a primeira das garantias (…) a existencia de alguma magistratura particular, quer no administrativo quer no judicial (…), sobretudo quando a essa magistratura andar ligado o princípio electivo. (1)

Continuando a seguir o grande historiador, podemos classificar o concelho de Arufe como Imperfeito o que significa que os seus moradores têm uns pozinhos de direitos a mais do que aqueles que vivem num concelho rudimental. Diz ele: O caracter que sobretudo os distingue dos precedentes [Rudimentaes] é, além de outras garantias maiores ou menores, a jurisdição local, exercida por um juiz particular, numas partes de eleição do povo, noutras de nomeação do senhor, mas em todo o caso com auctoridade circumscripta ao território do concelho. É já o principio capital do direito publico.(2) Às vezes basta uma simples frase para marcar a diferença. No caso em apreço, é aquela que destaco no corpo da carta doada aos povoadores da pobra (3) de Arufe que vem publicada abaixo.

O documento, da chancelaria de D. Dinis, é interessantíssimo e vem incluído no Tomo IV das Memórias Arqueológico-Históricas do Distrito de Bragança do Abade de Baçal. Por favor, não desistam por verem uma escrita tão diferente da nossa. Lida em voz alta, será de mais fácil compreensão. Em todo o caso, estou disponível para qualquer esclarecimento. E começo já com um. Tem a ver com a data.

Em Agosto de 1422, D. João I decidiu que Portugal deveria adoptar a era de Cristo em vez da era de César (que já vigorava na maior parte dos reinos europeus desde o séc. VIII). Por causa disso, de uma assentada, suprimiram-se 38 anos ao calendário. Os historiadores, para obterem a data certa, têm que subtrair 38 anos a todas as datas anteriores a 1422.

Fátima Stocker

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Citações retiradas de Alexandre Herculano, História de Portugal, Livro VIII, Parte I (Edição dirigida por David Lopes):
(1) p. 90)
(2) p. 112
Mantive a grafia original para que se veja como era diferente a ortografia no séc. XIX.
(3) Pobra: povoação

Carta de foro dos povoadores de Arufe


«Dom Diniz pela graça de Deos Rey de Portugal e do Algarve. A quantos esta carta virem faço saber que os pobradores d’Arruffe me mostrarão huma carta de Ruy Martins meu pobrador em terra de Bragança da qual o theor de verbo a verbo tal he.

“Em nome de Deos amem. Conhoscam quantos esta carta virem e leer ouvirem como eu Roy Martins procurador de El Rey e seu alcayde em Bragança faço carta de foro para todo o sempre a vos doze pobradores da pobra que a nome Arruffe convem a saber: a vos Miguel Marcos e a vossa mulher Maria Affonso e a vos Fernão Marcos e a vossa mulher Moor Peres e a vos Joham Paes e a vossa molher Moor Peres e a vos Pêro Domingues e a vossa mulher Maria Peres e a vos Domingos Megueis e a vossa mulher Crara Domingues e a vos Maria Peres e a vos Estevão Peres e a vos Dom Payo e a vossa mulher Maria Peres e a vos Pêro Paes e a vossa mulher Viviana Peres e a vos João Miguees e a vos Mestre Domingues e a vossa mulher Comba Miguees e a vos Martim Gomes e a vossa mulher Comba Domingues de todo o herdamento que hy El Rey há na dita pobra e de direito deve a aver a roto e por romper e per u o milhor poderdes haver e com todas sas perteenças novas e velhas e per u acharem de direito que e d’el Rey salvo o que hy há o arcebispo; e dou a vos a dita pobra e a todos vossos successores com todos seus direitos e saas pertenças asy como já dito he e per u as milhor poderdes haver per tal preito e so tal condiçon que sejades doze pobradores e dedes ende a El Rey e a todos seus successores em cada hum anno compridouros todos aqueles que hy herdarem vinte soldos portuguezes convem a saber: os meyos por São Martinho e os meyos por Paschoa e estes dinheiros darem de cada cazal do pobrador da dita pobra e darem outrosy de cada cazal senhas outavas de cemteo por São Martinho e devedes a ir a serviço d’El Rey com vossas armas com vossos vezinhos se mester for; e se El Rey der essa terra a algum ric’omem leve de vos os ditos foros que em esta carta são contheudos e mais nom e nom este em vossa villa mais ca hum dia e comha per seus dinheiros se pela per i passar de passada e devedes dar voz e comha pelo foro de Bragança; e outorgo-vos que metade entre vos vossos juizes jurados e se vos alguem quizer demandar demande-vos per dante vossos juízes e em outra guiza non lhi respondades; e todo homem ou mulher que for maninho em essa villa possa mandar o seu a quem quizer a sa morte; e mais vos outorgo ainda a vos pobradores do dito lugar de Arruffe que nenhũa mulher viuva que non de luitoza morando no dito lugar de Arruffe e retenho pêra nosso senhor El Rey o padroado da igreja dessa pobra e das outras que se hy fizerem; e se alguem veer contra a pessoa dos juízes peite a El Rey o seu encouto e fique por seu emmigo; e aquel que nom quizer vir a seu mandado dos juizes ou a seu aprazamento peite quatro maravedis de qual moeda correr na terra e sejão duas partes para El Rey e a terça dos juizes; e eu Roy Martins sobre dito mando e outorgo que este foro façades e mais nom e eu vos devo a dar entrada per Ribeira do Rio Cuynhas; e vos nom devedes a vender nem doar, nem alhear, nem atestar, nem emprazar o dito herdamento a ordem nem a priol, nem a clérigo, nem a cavaleiro, nem donna, nem a escudeiro, nem a nenhũa pessoa relligiosa se nom aa tal pessoa que faça a nosso senhor El Rey e a todos seus successores em cada hum anno o sobredito foro bem e compridamente; e vos devedes amta oo dito herdamento deste São Martinho que vem da era de quarenta e dous annos a três annos cumpridos morando vos no dito lugar de Arruffe; e vos sobreditos pobradores morando no dito lugar de Arruffe asy como devedes sem malicia outorgo-vos que sejades escusados de todo foro real da qual cousa eu Roy Martins sobredito dei aos pobradores esta carta que elles tenhão.

Dante em Bragança vinte e nove de Mayo era [de] mil trezentos quarenta e dous annos.”

E eu vista a dita carta dou e outorgo por firme e por estavel pêra todo sempre as ditas couzas e cada humma dellas que na dita carta são contheudas; [e em] testemunho desta couza dei aos ditos pobradores esta minha carta.

Dante na Guarda doze dias de Abril. El Rey o mandou per Affonso Martins que he em logo de Chanceller. Vaasco Martins a fez era [de] mil trezentos quarenta e seis anos.»

segunda-feira, 1 de setembro de 2008

Fotografias de Arufe

Os dois textos sobre Arufe levaram-nos a acrescentar estas imagens do lugar