Desde que se conhecia como gente que sempre os dias lhe tinham decorrido na solidão dos montes, nos lugares mais ermos do termo, onde nenhum outro pastor lhe disputava os pastios magros e a rabugem dos cabeços à frugalidade da sua cabrada, lá nos longes do Cabeço Cercado, de Penacan e do Fetal ou nas funduras lúgubres do Souto dos Pereiros.
Afeito ao berrar das cabras, ao ladrar dos rafeiros e ao pipilar do passaredo pelas ramagens das carvalhas, reconhecia-lhe o ouvido qualquer murmurejar, do rastejar de cobra ao adejar de asa que momentaneamente quebrasse o silêncio da sesta; distinguia sem custo o piar da folecra do da escrevedeira, se o balido era de animal mimalho ou tresmalhado. Mas quase se desabituara do falar da gente. As palavras saíam-lhe parcas e perras, as frases soltas e de fôlego curto. Era capaz de passar horas reclinado sobre um cotovelo ou encostado ao tronco de um carvalho, a mascar com vagares de ruminante um fio de erva e fitando com olho perdido o passear madraço das nuvens sobre o azul vazio do céu distante. As suas necessidades de comunicação esgotavam-se num afago ocasional à cabeçorra dos cães do gado ou no berro de um nome para uma cabra mais arisca. Nunca se lhe conhecera namoro e as tricas da aldeia passavam-lhe ao lado, distantes como os raros automóveis que, mal surgiam, desapareciam lá em baixo na breve recta de Rossas.
O calendário era uma construção muito sua: as horas calculava-as medindo a pés o comprimento da sombra que o seu cajado espetado na vertical projectava na erva barbeada das lampaças onde os coelhos pincharolavam em suas farândolas nocturnas; o ritmo das estações e as variações meteorológicas adivinhava-as pelo borbotar dos gomos dos castanheiros, pelo florir da urze, pelo arrepio do vento na face dos codessos, pela errância do sol nos descampados do céu, ora encostando-se, quando nascia, ao torso descomunal da Senhora da Serra, ora surdindo rente ao planalto de Miranda e, ao pôr-se, ia percorrendo, na lentidão dos meses, o cume denteado da serra dos Pereiros, desde Pombares, no Inverno, até à portela de Vilardouro, no pino do Verão. Estações do ano eram também o vento que lhe gretava os lábios de cieiro, se soprava da Sanábria, ou abafava a serra, vindo do suão; as zurbadas repentinas que lhe ensopavam o capote; a calmaria que lhe derreava as cabras e enlouquecia as moscas na sombra modorrenta das carvalheiras. Tudo isso era o grande livro onde lia e donde recolhia as suas memórias.
Nos seus fastos, a estes dados que o coirão lhe registava, apenas acrescentava a memória cristã das três ou quatro festas que a folhinha marca para qualquer filho de Deus na roda do ano.
As noites passava-as, solitário como um cenobita, aquartelado com as cabras numa cerca de tábuas toscas a que por lá chamam
cancelas, dormindo numa espécie de tenda de tábuas pregadas horizontalmente em escama de peixe sobre um estrado montado em cima de duas rodas de madeira maciça – o carreto. Por uma portinhola minúscula lá se enfiava como quem entra num cacifo tumular, desses que esburacam as paredes dos cemitérios. Esta minúscula cabana nómada era arrastada pela sua junta de bois mirandeses inteiros através de cerros e córregos, acudindo à fome das terras magras que era preciso estrumar com as caganitas para que, Julho sim, Julho não, dessem à seitoura umas escassas pousadas de centeio. E só nas grandes invernias vinha pernoitar na lojeca debaixo do sobrado da casa materna, onde se amontoava estrume cabonde a povoar de moscas toda a aldeia e a tombar redondo um cidadão de pituitárias medianamente sensíveis que se aventurasse pela rua do Outeiro.
De longe a longe, era substituído pelo Amador, o irmão, e descia ao povoado. Nas suas raras surtidas para fora dos umbrais familiares lá deitava, lento e lerdo, até ao largo do Prado onde, aos domingos, se juntava a mocidade para medir forças nos jogos do fito, da pedra ou da relha e para o desenfado do copo domingueiro. Para tudo arregalava o olho, perpetuamente inflamado de conjuntivite, num grande pasmo iniciático de infante que começa a descobrir mundo; ou então, no adro, depois da missa, pousado no muro do adro como um fardo mal amanhado, as mãos espatuladas sobre os joelhos, quedava-se, muito parado, de sorriso lorpa e babado, na contemplação das moçoilas que, muito coradas, nas suas chitas de ver a Deus, espreitavam de esconso o adjunto e se despachavam lépidas a cortar o caldo verde, depois de cumprida a devoção. Mas como coisa inacessível as mirava, que ao Aidinhas, o cabreiro, de amorios nem era permitido sonhar.
Como patriarca dos tempos bíblicos, parente chegado de Abel, o pastor que Caim matou, presidia à liturgia dos momentos altos da sua comunidade animal. O primeiro chegava com a Primavera, quando a cabrada, alvoroçada pela brutidão animal do cio, lançava pela pacatez da serra um rebuliço feroz que lhe deixava os nervos eriçados. Vinha depois o nascimento dos berrelhos muito viscosos, muito trôpegos no desempenho das funções que a vida manda, içados nos gravetos das pernas finas, desembestados na procura cega mas certeira da teta materna. Eram tempos de fartura em que os pastos vicejavam com o
Abril das águas mil coadas por um mandil: medravam os
cabritinhos e ainda se enchiam vastos latões de leite fumegante que a irmã, a Perpétua, transformava em minúsculos queijinhos alvos que acudiam às encomendas do povo. O próprio Aidinhas se recreava desta abundância: à hora da merenda recostava a cabeça sobre um torrão e, apontando à cratera das fauces escancaradas os úberes tensos de uma cabra mais amojuda, matava fome e sede, com a placidez dos heróis homéricos. Em alturas de maior requinte gastronómico, com a navalha peliqueira vazava de seu miolo a calote de um pão centeeiro grande como uma roda de carro, enchia a concavidade com o leite fumegante e nele migava o miolo recolhido. “Que nem o senhor Bispo!” – resumia, no final, o Aidinhas, jubiloso no seu festim, limpando os beiços regalados à manga da jaqueta.
E vinha depois o momento supremamente triste da venda dos cabritinhos. Quando o pastor já se lhes afeiçoara e os conhecia pelo nome que, como padrinho, lhes dera, incorporando-os assim na sua grande família, lá aparecia um desses peliqueiros das bandas do Vimioso, de nariz hebraico, encardido na jaqueta de cotim e calças de pana, os dedos calosos desfolhando as sagradas notas que curam todas as maleitas e matam todos os apegos sentimentais. A dor quase animal da separação era, assim, mitigada pelas folhas verdes que lhe enfloravam as mãos encardidas e pela certeza de que da sua cabrada saíam os mais tenros e saporidos cabritinhos que na festa de S. Maria Madalena seriam celebrados pelos abades e romeiros de muitas léguas em redor e iriam alegrar a mesa dos pobres, que também são filhos de Deus, com o direito de, ao menos uma vez por ano, rilharem até ao tutano os ossos tenros do chibinho mamão.
Eu tinha quase a certeza de que, embora muito me esforçasse por lhe ler no rosto um qualquer e difuso lirismo ou um grande misticismo de comunhão com as forças cósmicas, por detrás daquelas feições, talhadas à podoa em pau de carvalho, nada mais havia que uma crassa vitalidade animal. Mas enganava-me: a sua própria linguagem, muito sucinta, tinha por eternos pontos de referência a água e as pedras, as carvalhas e os bodes, o chão e as nuvens – essas coisas concretas de que os platónicos desdenham, mas que balizam os saberes de quem se sabe profundamente enraizado na terra que pisa, madre de todas as coisas. Era, assim, que sustido por esse saber sabia compor um cumprimento com um quanto baste de urbanidade e temperado com uns pozitos de poesia, ao cruzar-se com a filha mais novita do João Fouce, a Fátima, que viera de férias:
− Então a menina veio visitar os paizinhos?... Faz bem… faz bem! O chedre sempre torna à sua urzeira!
Ademais tinha o Aidinhas uns longes de filósofo estóico, dos que acreditam no valor do esforço e da contenção, ainda que não soubesse enunciar o
abstine et sustine que os loquazes discípulos de Zenão alanzoavam nas suas lições do Pórtico nem partilhasse da severidade de Catão. Acontecia que, por uma tradição familiar herdada da mãe, a tia Marquesa, o Aidinhas se considerava mordomo vitalício do S. Silvério, aquele santo pequenino e muito compostinho que tinha altar à mão direita de quem entra e que lá na terra era padroeiro protector contra as trovoadas, com mais virtude ainda que Santa Bárbara. Ou de
motu proprio ou por inspiração celeste, tinha o mordomo a enorme convicção de que a sega dos fenos só se podia empeçar depois da festa do santo que a folhinha marcava a vinte de Junho, caso contrário a coisa podia dar para o torto. Ora, nesse ano, o tio Manuel Frade que era um taralhão sem ordem nem tempo, antecipou-se em dois ou três dias ao estipulado pelo calendário, pelo santo ou pelo seu mordomo (o que para o caso tanto faz!) e ao Aidinhas não lhe descansou a consciência enquanto não chegou à fala com o energúmeno, não fosse da transgressão advir grande dano para todos os fregueses: − Ouve lá, ó Manuel, então tu já segaste o feno, alma do dianho?... Isso era pressa de andaço!? Põe-te a pau!...É o que t’eu digo… olha que o S. Silvério é fodido!...
Festa de S. Maria Madalena, orago da terra. Houvera missa cantada por seis coroados, com sermão bem gorjeado pelo abade de Rebordãos, e procissão pelos caminhos escadeados do povo, com anjinhos e andores e hinos santos entressachados de marchas heróicas trauteadas pela banda de Pinela. Depois do almoço bem embutido e bem regado, lá vinha o Aidinhas, mais ancho que D. Juan Tenório. De mãos empochadas nas profundezas das pantalonas de cotim novo, ainda cheio de goma, de botas ensebadas a preceito, de jaqueta vestida às direitas e não apenas dependurada do ombro esquerdo, como costumava quando, pelos montes, lançava a lapada certeira a cabra transgressora. Em tais preparos demandava o Aidinhas, em passada larga e ufana, quase marcial, o bailarico que já zoava para as bandas da eira da Cabecinha.
− Então, Alfredo, para onde é a ida? − Era o Orlando do Piloto a tisicá-lo. De bigodinho ralo à Clark Gable, o moço, que era facecioso e requestado das donzelas, estudava para engenheiro lá para as capitais e não resistia a dois dedos de treta.
‑ Às fêmeas – atirava ele, em sorriso maroto de gabarolice inocente.
‑ Ah! valente Alfredo! Assim é que é… E essa vida como vai?
O Aidinhas alheava-se da questão, mais interessado noutros assuntos:
‑ E tu dás-te bem com os ares da capital? Aquilo é que há-de ser por lá femeaço de encher o olho, hã!? – e arregalava o olho inflamado da conjuntivite crónica.
‑ É verdade, Alfredo – tornava o outro. E a tua cabrada dá ou não dá?
‑ Vai dando... É o que t’eu digo!... – continuava ele na retranca; e quedava-se, de boca aberta em risinhos de semicolcheias e olhos fitos, no jeito muito seu de um súbito interesse, meio desfrutador, meio curioso, pelo seu interlocutor.
‑ Ao preço a que tu vendes os queijos e os cabritos... isso é uma mina, não?
O Alfredo que nem ao padre se confessava, mascou duas ou três vezes em seco, olhou a biqueira das botas, olhou com ligeiro desdém o bigodinho hollywoodesco do engenheirito e lá se desatou:
− Ó home, é o que t’eu digo, não vai mal!... podia ser pior. – E parou em seu discurso como quem já houvesse falado em demasia ou deitasse contas à vida. – Então, quando é que sais doutor?
‑ Qualquer dia. Mas a cabritada vende-se bem... – lançava-lhe o outro, em provocação.
‑ Pois é! É o que t’eu digo (este era o grande bordão afirmativo do Aidinhas, mesmo que ainda nada tivesse dito ou nada estivesse para dizer). ‑ É o que t’eu digo, home. ‑ Estacava, indeciso. Depois, num arranco, como quem se desnuda: ‑ É o que t’eu digo, home. Nada mau. De serra a serra são cem contos!... É um francês!...
Definitivamente, o Aidinhas tinha-o arrumado! Um bocado aturdido, o Pilotito magicava com os seus botões se o Aidinhas estaria a mangar com ele, ou se, à força da solidão continuada pelos carrapitos da serra, já treslia, ou até, sabe-se lá, se andaria a ler Alberto Caeiro às escondidas.
Dias depois, propunha ele ao pessoal o enigma do Aidinhas, escorregadio, sucinto e profundo como o da Esfinge. E teve que ser o avô, o tio Adriano Guerra, homem de muitos adágios e de muita pachorra arranjada por lá, na espera do coelho e da perdiz, a acicatá-lo: “Ó brutinho, então tu não vês...”
É que, bem vistas as coisas, além de filósofo, o Aidinhas também era poeta. E o avô Guerra lá foi explicando: “de serra a serra” não tinha nada a ver com as serranias por onde o Aidinhas perambulava atrás das cabras. Era, isso sim, uma medida de tempo e designava a roda do ano que ia da festa da Senhora da Serra, até à Senhora da Serra do ano seguinte. A Senhora da Serra, a romaria mais badalada num círculo de quinze léguas, calhava no sete de Setembro e rematava o ano agrícola. As colheitas do centeio e das batatas já estavam a recato, pagavam-se os fiados no soto do Trocho e do Jaime, liquidavam-se as rendas das leiras e a avença ao barbeiro, deitavam-se contas ao ano e à vida e, ou por devoção ou por desfastio, trepava-se ao coruto da serra de Nogueira onde Nossa Senhora aparecera a uma pastorinha muda e marcara com neve, numa manhã cálida de Agosto, o perímetro da capelinha que desejava ver construída. Construiu-se a capela e falou a muda e desde então não faltaram os peregrinos com direito a novena quando a devoção ou promessa a pagar assim o ditassem.
Vinha, portanto, o Aidinhas significar, em seu dizer pitoresco, que, no decurso do seu ano económico, realizava um encaixe líquido de cem contos de réis, o que, para as magras finanças aldeanas e o viver cainho de há quarenta anos, era capital considerável. Ou seja, segundo os seus cálculos nada tolos, correspondia ao que um francês – o emigrante em França, protótipo do novo-rico – agenciaria durante um ano a trabalhar na estranja.
Ora aí está. Fazendo-se de pé-tolo, o Aidinhas dava uma de intelectual. Bem! Ministro das Finanças não digo. Mas que o Aidinhas daria um razoável Secretário de Estado parece-me indiscutível. Mas, sobretudo, poeta. Poeta é que ele era! E, no uso da metáfora, precursor muito temporão do carteiro de Pablo Neruda. Predicados, como sabem, nada despiciendos nos prosaicos tempos que correm.