domingo, 28 de março de 2010

DITOS DO POVO






Às vezes sabe bem avivar a memória. Que diziam os nossos pais e avós do mês e do tempo quaresmal que vivemos?



De Março:




Se o cuco não vier
Entre Março e Abril
ou o cuco está morto
ou o fim do mundo para vir!

....................Março Marçagão,
....................de manhã cara de rosa,
....................à tarde cara de cão!


.......................Ou:
....................Março marçagão
....................manhã de inverno,
....................tarde de verão.

...Podar em Março é ser madraço.

......Temporã é a castanha que por Março arrebenta.

.........Quando em Março arrulha a perdiz, ano feliz.

............Quando vem Março ventoso, Abril sai chuvoso.

..............Quem em Março come sardinha, em Agosto lhe pica a espinha.

.................Março duvidoso, S. João farinhoso.

......................Em Março chega o pão ao Chargoaço.
........ou: ......Em Março iguala o dia com a noite e o pão com Chargoaço.

.........................O 25 de Março dá as merendas e tira as veladas.

Em Fevereiro entra o sol em qualquer ribeiro;
em Março tanto durmo como faço!



Da época pascal:



Ainda bem que, este ano, é em Abril porque, segundo meu pai:

Páscoa em Março, ou fome, ou grande mortaço!


Mas...

Ramos molhados, carros carregagados!

A mulher que se previna:

................Na semana de Ramos
................Lava teus panos
................Na da Paixão
................Lavarás ou não!



Há sempre lugar para uma lenga-lenga:

Domingo de armela
armei uma esparrela,

Domingo de Lázaro
matei um pássaro,

Domingo de Ramos
o depenamos,

Domingo de Páscoa
o papamos.


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Nota: este artigo está ilustrado com uma pintura de Giotto, um mestre da pintura e da arquitectura do fim da Idade Média (séc. XIII-XIV). Na pintura, Giotto distingue-se por dar às figuras sagradas o rosto e o aspecto dos homens comuns, humanizando a santidade e santificando a humanidade. É admirável no estilo e nos propósitos. Quem quiser conhecer mais este pintor pode procurar nesta galeria de arte. Se a curiosidade o tiver levado lá, não perca os frescos na igreja de S. Francisco em Assis.

terça-feira, 16 de março de 2010

A PENA DE BOCAGE



por

ANTÓNIO AUGUSTO FERNANDES


Era de facto intrigante! Que despautério o Bocage, em frente de uma folha de papel, a coçar a barbela com uma pluma de galinha enquanto olhava para o Sete-estrelo, como quem tenta lembrar a tabuada dos nove ou rabiscar uma frase bonita para dizer à namorada. Porque diabo não se agarrava ele a um lápis ou uma caneta com aparo de aço como era de usança em tais ocasiões? Até que o Sr. professor Ribom nos deslindou a alhada: era assim que antigamente se escrevia, com uma pena. Não de galinha, mas de pato, bem escolhida, bem afiada.
E Camões e outros quantos da sua igualha também se serviam de semelhante artefacto para passar ao papel as suas inspirações.

Aquilo caiu-me no goto e deixou-me com ideias. Estava-se mesmo a ver que, para se ser escritor de valia, era indispensável ter à disposição uma pena de pato bem afiada!

Nessa tarde, depois das aulas, lançámos mão à empresa. E digo lançámos porque o mano Zé, quando a coisa empinava para a asneira, não se fazia peco a ajudar.
Como pelas redondezas não havia patos e era arriscado ir até ao Covelo desinquietar os parrecos da tia Ana Costa, conjecturámos que pena de peru não deixaria de ter a mesma virtude. Ora de tal bicheza andava por ali à mão de semear: os perus da tia Isabel Caldeireira, vizinha e amiga, em bando, a engordar para as alheiras. Era vê-los a interromper o debicanço na ciscalhada dos sequeiros para lançarem um glu-glu gutural e enquanto armavam a sua cauda em leque com grande espavento para admiração das senhoras peruas E para nós é como quem diz: ora toma lá uma pena!

É o tomas! Quando tentávamos tomar conta da oferta, o raio dos bichos, em vez de colaborarem no empreendimento literário, desatavam em corrimaças doidas e barulhentas. Foi um trabalha dos diabos caçar um voluntário disposto a sacrificar uma mísera pena do rabo. À barulheira da criação acudiu a vizinha e dona dos bichos, que, com alterosa gritaria descompôs “o raio dos raparigos que só lhes dá para o mal”. À barulheira da criação e à gritaria da tia Isabel acudiu a mãe Lídia − “o que é, ó Isabel?!” − e foi por um triz que não nos habilitámos a uns tabefes. Mas quanto à pena… já cá canta!

Passámos à fase seguinte. Com a mais afiada das facas de cozinha, a de segar o caldo verde, cortámos a ponta da pena em bisel. Não deu! A faca estava muito romba. Fomos à pedra de amolar, que estava debaixo da varanda, dar-lhe fio. Segunda tentativa abortada. Os rabiscos numa folha de papel saíram mais largos e incertos que o carreirão de Arufe.

Quando estávamos a pique de desistir, ocorreu-me mais uma ideia brilhante. Sem a partilhar com o mano, às escondidas, fui-me à gaveta da cómoda onde o pai guardava a navalha da barba. Estava fora de questão que esta falhasse. Tentei a primeira vez: a navalha não çancou, antes, escorregou pelo canudo envernizado da pena. Uma segunda tentativa mais apurada, carregando com mais força. Plim! uma meia lua de aço fino com milímetro de diâmetro acabava de saltar da lâmina. Bonito serviço! Bem podia limpar as mãos à parede e desistir definitivamente da pena literata e da minha carreira nas letras.

Lá remeti a mal-aventurada navalha para a sua gaveta na esperança de que o percalço passasse despercebido.
Só que dia doze era a feira Bragança a que o pai não podia faltar para os negócios do soto. Quando vai para fazer a barba…

Bom. Apesar daquele seu feitio arrebatadiço, até àquele dia nunca ele me tinha tocado nem com a ponta dos dedos. E também ainda não foi dessa feita que me estreei. Mas, perante a fera catadura e a mão enorme erguida no ar, o meu susto não foi menor que o dos nautas perante o Adamastor na travessia do Cabo das Tormentas. Durante uns dias até perdi o apetite.

Balanço final: − primeiro − cinquenta mil réis para conserto dos danos na navalhinha, o que, para a altura, já era dinheiro; − segundo − por não ter alcançado a sua indispensável pena de pato convenientemente afiada, este escriba nunca chegou a escrever uns Lusíadas de jeito. Nem sequer uns sonetos como os do Bocage… Para grande perda das letras pátrias, diga-se de passagem.

segunda-feira, 8 de março de 2010

SERRA DAS VELHAS

Se ainda não chegou, o prazo da Serra das Velhas estará para chegar, na esperança de que se cumpra a tradição.


A cerimónia da Serra das Velhas que, entre nós, surge associada à do Casamento das Novas, é mais uma prova daquilo que foi dito sobre o significado profundo do Entrudo: encerra-se o ano velho (manifesto na queima do entrudo e no serrar das velhas) e celebra-se a entrada do novo ano que se deseja fértil (casamento das novas). As datas, tão distantes do calendário civil, marcam o compasso da Natureza que, tendo morrido durante o Inverno, ressuscita na Primavera, oferecendo-nos uma terra reverdescida que anuncia abundância. As raízes destas cerimónias devem ser tão antigas como as primeiras sociedades agrárias que, aqui no nosso cantinho português, datarão do quinto/ quarto milénio antes de Cristo. Do cimo da Serra, a nossa anta vela, desde então, para que o ritual se cumpra.

Dado que no ano passado escrevi sobre o Casamento das Novas, este ano escreverei sobre a Serra das Velhas. Velha, lembremo-nos, é toda a mulher que tem netos.

Os rapazes juntam-se e, munidos de embudes, de caldeiras ou caldeiros (fingindo que são de madeira ou de cortiça) e de uma grande serra, percorrem o povo todo (esta cerimónia é acompanhada pelos raparigos). À porta de cada mulher a serrar, gritam:

– Vamos serrar a Senhora...?
– Vamos!
– Para o que é que há-de servir o corpo dela?
– P'ra umas varas para o carro (ou cabos de navalha; engarelas; estadulhos; portas; caixilhos da janela...)

Enquanto serram a mulher, fingindo serrar o caldeiro (ou a caldeira), os rapazes proclamam em altas vozes para os garotos presentes:

– Chorai, filhos da cadela,
...Que vos morreu a avó da Portela!

Na noite desse mesmo dia, dois rapazes tratarão de casar as novas. Agora, alguém que esclareça como se faz a escolha do noivo: são os rapazes todos ou são só aqueles dois que combinam entre si? E quando é que se tomam as decisões? No próprio dia, dias antes, ou na própria da hora? Fico à espera da resposta.
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Creio que calha bem falarmos, aqui, das atraganices do Entrudo que, lembro, prometi acrescentar.

Durante os três dias do Entrudo, casa em que se descuidassem com a porta aberta era casa marcada: cântaros de barro repletos de cinza e imundícies eram lançados lá para dentro, escaqueirando-se e espalhando a porcaria. Tempos antes, a rapaziada – é de festa de rapazes que se fala em se tratando do Entrudo – ia tomando nota do sítio onde houvesse um cântaro para roubar. Quantas vezes não era um filho da própria casa a fazê-lo!

Quanto mais proenta e bem apessoada fosse a rapariga, maior o assédio para lhe estrampalhar a figura. Nas palavras do Sr. Américo, as raparigas eram sacrificadas porque os rapazes perseguiam-nas com ovos, farinha, cinza, fuligem, graxa e ainda uma composição de cortiça queimada com azeite. Os rapazes não descansavam enquanto a não pusessem numa lástima. Diz-nos o Tonho do tio Arnaldo que, certo dia, ele, o Ferreira, o Zé Maria, o Jorge Pilatos, o Artur Carteiras e o Pintassilgo fizeram um cerco à casa do tio Alípio para lhe apanhar a filha Fátima que andava sempre bem vestida e penteada. Avisada, ela ainda se escondera, mas de nada lhe valeu e a brincadeira deixou-a num estado deplorável. Tenho a certeza de que a zanga por se ver enfuliçada e descomposta foi superada pelo riso que tal caricatura suscita!

Que tudo isto não passa de brincadeira – mas brincadeira de rapazes – está nesta história que vou contar. Certo Entrudo, os meus sobrinhos pequenos chegaram ao pé de minha mãe e pediram-lhe:

– Ó avó, dê-nos farinha!
– Para que a quereis?
– Para atirar às raparigas!
– Ai sim?! Então, tomai lá também os ovos!

Vendo o sucesso dos primos, as sobrinhas decidiram fazer o mesmo pedido, mas ouviram em resposta:

– Não, porque isso é só para os rapazes!

Pelos vistos, o folguedo até deu origem a nomeadas: “Farinhoto” foi nome que recebeu o Alexandre do tio Alípio, por ser tão amigo de enfarinhar e o padrinho foi o Alfredo da tia Celeste!

Os disfarces eram, quase, uma obrigação. Os risos que provocavam e as anedotas a que davam origem seriam pateados durante muito tempo, animando a quietação do Inverno. Ningém levava a mal! Conta o Tonho: Uma vez disfarcei-me de velhinha e, juntamente com dois ajudantes novos para me ampararem, fomos a casa da minha madrinha a tia Maria. Varri-lhe a cozinha toda com um vassouro de giesta, sem que ela me reconhecesse. No fim, puxou da carteira par me dar uma coroa dizendo: “Obrigada, minha senhora... ainda não estava muito suja, mas já fica varrida para amanhã...”

A terça de Entrudo era o dia mais animado e, à tarde, o povo reunia-se para assistir a uma pantomina. Diz o senhor Américo que qualquer acontecimento com graça servia de motivo para ser representado nosdias de carnaval. Em geral toda agente admitia a brincadeira mas houve um caso que tomou proporções dramáticas. Recordo o meu primo Toninho(emigrou para o Brasil), filho do tio Benjamim, que dançava em casa com uma dobadoura. Isto veio para a cena e com sucesso correu o povo, até que o Toninho apareceu e daí o espectáculo virou em grande pancadaria. O Tonho lembra-se de um cortejo (certamente de meados dos anos 70 porque alude à contratação do futebolista Cubillas pelo FCP), mas diz que o habitual era fazerem-se peças de teatro, destacando uma, representada à porta da Casa do Povo, cujo tema era a ida à tropa, entre um capitão e um soldado da família Vascos. Dessa peça, diz-nos a Céu, ficou célebre uma frase: "Bem-haja o tiu soldarado, que boubou por onde é q'ou boubo". Confesso que, se não fosse a explicação da Céu, não teria percebido patavina desta frase que deve ter tido muita graça para ter ficado na memória de quem a ouviu. Para quem ficou tão atrapalhado como eu, aqui fica a descodificação: O soldado pediu um copo de água a uma senhora e quis beber pelo mesmo copo por onde ela bebia. A senhora ficou contente pelo facto de ele não ser "esquisito" e, batendo palmas, quis dizer: Bem haja o tio soldado que bebeu por onde eu bebo".

Diz, também, o Sr. Américo (o que é uma novidade para mim, mas ele é que deve saber bem) que havia caretos no Entrudo! Quanto aos caretos nos dias de carnaval havia sim e às vezes mais que um. Os protagonistas mais conhecidos eram o tio Aniceto, o tio Virgílio (o Pássaro) e ainda o Zé Carroucho. A tia Purificação (emigrada para o Brasil) dominava as brincadeiras com um grande rol de marafonas. A tia Carroucha, uma das animadoras, aparecia com a sua concorrência. Lembro-me da quadra de sua autoria:

.........................Não cortes a flor ao feto
.........................
Nem a raiz à serralha
.........................
Que é o sustento das moças
.........................
Enquanto não se sega a palha.


Além da Casa do Povo, as peças podiam ser representadas no Prado ou na Casa da Aula. Do elenco fazia parte toda a mocidade. Os desfiles contavam com dançarinos vestidos a preceito: calças pretas e camisa branca. Um lenço enfiado numa caixa de fósforos fazia de gravata. As meninas iam sempre lindas (maquilhadas, quase sempre, pela tia Etelvina), de saia rodada e garrida, lenços de diversas cores na cabeça e blusa raiada ou às bolas, coisas que despertassem a atenção dos muitos presentes, radiantes com as anedotas e cantares. Os cortejos integravam cantigas e o Tonho mandou duas que foram cantadas algumas vezes. A primeira conhecia-a como jogo de roda, mas a segunda, que servia de despedida, desconhecia-a em absoluto. A métrica, a rima e o vocabulário fazem-me suspeitar da origem delas, por não parecerem nascidas do povo (e é tão estranha aquela má gramática do quarto verso da primeira cantiga…). São estas, as cantigas:

...............Viva Rebordainhos, terra de beleza
...............Aldeia do Norte com tanta riqueza
...............Marcha de alegria nos traz o desejo
...............De nós festejar este lindo cortejo

...............Até nos nossos cantares,
...............Ao longe tudo espanta
...............Parece querer imitar
...............Com seu murmurar
...............As canções que a gente canta

...............Com o meu par bem enfeitado
...............Andamos de braço dado
...............Pelas ruas a marchar..
...............Ai! sendo assim desta maneira
...............Levarei a vida inteira
...............A rir e a cantar!!!

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...............Rebordainhos terra branquinha
...............Ao pé da serra a brilhar
...............És uma bela donzela és uma alma a rezar

...............Ao pé da fonte brilhante
...............Com seu manto de ternura
...............Olhas os pais confiante
...............E para os pobres com ternura

...............Trazemos todos a saudação
...............A este povo que é nosso irmão
...............Aqui viemos com fé em Deus
...............Senhores e Senhoras dizemos-lhe adeus!
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Nota explicativa: embora me tenha sido enviada para exemplificar os teatros de entrudo, a fotografia que ilustra a última parte deste artigo mostra um teatro que se realizou para celebrar o dia da casa do povo (em data que não pude precisar). As actividades desse dia realizaram-se a pedido do tio Jaime (e do sr. Herculano?). Além do teatro que a fotografia captou num instantâneo que o documenta, fizeram-se, também, danças folclóricas cuja fotografia já tinha sido publicada por nós.