domingo, 21 de dezembro de 2008

ARES DA SERRA

VII - O PRESÉPIO DO DOUTOR CALEJA
(…aqui havia uma fraga…)

por
António Augusto Fernandes

O vinte e quatro de Dezembro amanhecera límpido, sem amostra de nuvem que maculasse o espelho azul do céu. A geada rebrilhava intensamente nos telhados e na erva dos lameiros. As vozes das raparigas a caminho da fonte retiniam no ar translúcido com vibrações de cristal e o trroc- trroc dos socos ferrados de brocha larga sobre a lama congelada tinha ressonâncias de passos ecoando em catedral vazia. A névoa recalcada atulhava, lá em baixo, o vale da Ribeira dos Pereiros, como um mar de algodão onde apetecia rebolar-se a gente, alastrando desde a ladeira das Ribas até aos contrafortes da serra de Bornes. Mas, pela tarde, o mar de algodão foi-se evolando numa gaze fina de névoa a marinhar pela encosta da Fraga do Berrão. Num repente a luminosidade do dia amorteceu e o céu ficou zúbio, num anoitecer precoce que polvilhava tudo de tristeza.

– A névoa subiu à serra, Doutor. Senhas de neve! Temos aí neve da grossa, e não tarda! – dizia o Jaime, especado no traço da porta da Taberna de Baixo.
– Pori... – respondia o Zé Bernardo, estacando o passo … E, apontando o nariz batatudo para o céu cor de chumbo, rematava: − É bem capaz.
Isso queriam eles! porque, nevão caído, perdidos e achados era pelos montes, atrás dos coelhos engaranhados pelo frio ao toro das urzeiras ou tolhidos na corrida pela neve ainda fresca. E perdiam-se num silêncio de divagações cinegéticas…

Fosse por esse comum amor pela caça, fosse pela identidade de feitios, ambos de poucas palavras, ambos um tanto de candeias às avessas com a vida, ou até pelo vago parentesco, entre eles nascera uma cumplicidade quase fraterna. De tal maneira que o Jaime o convidava amiúde para cear lá em casa, sobretudo em vésperas de caçada, quando se tratava de escolher pólvora e chumbo e de meter nos cartuchos as buchas de papelão. Era também o Doutor quem o acompanhava quando ia de longada até à Terra Quente, em demanda do bom vinho, que a serra não o dava e o das redondezas, valha-o Deus! gelava nas pipas com o sincelo. E quando os tremenhos da vida o chamavam a algum lado, não hesitava em confiar o governo do soto ao Zé Bernardo: mercearia, ferragens, chitas, vinho incluído, que o Zé Bernardo… é como quem guarda almas – rematava o Jaime a sublinhar a confiança que depositava no seu lugar-tenente. E era! Se, por um acaso muito provável, a alma lhe pedia meio quartilhito, emborcava-o, sim senhor, mas depositava na gaveta dos trocos a paga. À noite, quando o dono tornava das suas voltas, o Zé Bernardo, que não sabia ler, apresentava um papel pardo de cartucho repleto de hieróglifos que só ele entendia, e desfiava o rol de todas as transacções havidas ao longo do dia.

Retomavam a conversa:
– Pelos vistos, já levas aí a consoada… − observava o Jaime.
– É verdade – tornava o outro, voltando a cabeça e fitando com desvelo a enorme troncha que trouxera da sua belguita do tamanho de uma sala, talhada no baldio, à Ribeira do Catrapeiro. A couve acogulava a cesta dependurada do cabo da sachola que trazia ao ombro e enchia-o daquele orgulho que só sabe sentir quem é proprietário pobre de dois palmos de terra que se trazem mais limpos e escarolados que o chão de casa.

– Ouve lá, ó Doutor, porque é que não trazes a couve e vens comê-la connosco na Portela? – convidava o Jaime, adivinhando-lhe o desconsolo de uma consoada repassada de solidão e cismas em frente das brasas, na furna negra da sua choupana.
– Nã… nestes dias, cada mocho a seu souto. – E rumava já em direcção ao barraco de pedra solta que negrejava, encostado a uma fraga descomunal.

Com certeza se lembram ainda daquela fraga do Prado que o povo se habituara a ver como um ex-libris da aldeia, postada no topo nascente do Prado e que o progresso estilhaçou como estilhaça sempre muitas outras coisas na sua caminhada!... Bem no centro da aldeia, ali resistira desde sempre como símbolo da fibra serrana, de antes quebrar que torcer. A fraga com o olmo e o freixo que morreram de velhos marcavam a singularidade do velho Largo do Prado. Modernizado o Largo do Prado, ficou apenas mais um largo, parelho doutro largo qualquer.
***
Era ali que morava o Zé Bernardo, naquela lojita de terra batida e telha vã, delimitada por três paredes adossadas à Fraga do Prado. Sem janelas, o dia só ali entrava pela porta ou alguma talisca deixada por telha arrancada pelo temporal e as paredes negrejavam mais que o caldeiro de cozer a vianda dos porcos.

Morava sozinho. A mitigar-lhe a solidão, em tempos, fizera-lhe companhia uma cabra, a famosa cabra do Doutor, que ele atrelava a si com uma guita quando ia por lá a ganhar a jeira. Enquanto ele derrancava o esqueleto agarrado ao cabo do enxadão, a cabra fazia pela vida tasquinhando a erva bravia que crescia na berma dos caminhos ou nas poulas dos baldios, presa pela guita ao toro de uma giesta. O animal, que era manso como o pão e tinha alma de gente, dormia a um canto sobre uma fachoca de palha e dava-lhe o leite do mata-bicho. E tão asseado era que até parece que nem apestava o raio do bicho que tinha artes de se aliviar enquanto andava por lá! Já velha e durázia, não teve coragem de a matar: vendeu-a a um peliqueiro de Carção pelo preço da pele.

E ali se mantinha num passadio frugal que envergonharia S. Pacómio, anacoreta no deserto. Da mãe, a tia Camila Carroucha herdara a sombra das paredes, o nariz batatudo e uma tez morena mais que a conta que lhe valera a alcunha de Carroucha. Agreste alcunha era essa: mas soava mais agreste ainda na bárbara pronúncia do tch galaico-português que na serra se mantivera desde os tempos em que daqueles cerros se rechaçara a mourama: Carroutcha. E de tal modo se lhe colou a alcunha que poucos na aldeia sabiam que o Zé Carroucho trazia da pia baptismal o nome cristão de José Bernardo. Até que um dia o Jaime da Taberna de Baixo o rebaptizou de Doutor Caleja, vá-se lá saber porquê. Talvez para lhe despir a bárbara alcunha de Carroucho, talvez por ter nascido na mais esconsa caleja da terra, lá para os lados do Covelo. O novo chamadouro pegou, sancionado pela fama de um médico de Macedo de Cavaleiros que dava pelo nome de Dr. Calejo. E assim passou a ser o Doutor Caleja para vizinhos e amigos. Com o andar dos tempos, por mor da brevidade, ficou apenas o Doutor.

Como quem nada tem nada perde, no tempo em que o Brasil ainda fazia dinheiro, o Doutor também arriscou uma saltada até à banda de lá. Mas, como cão sem coleira que não aceita dono, não se acadimou a medir tempo e litros de feijão preto atrás de um balcão na Tijuca. Mordiam-no saudades dos caminhos desimpedidos da serra, dos roquelhos que medravam nas touças pelo Outono, da lazarina com que ia avezando o seu coelhito pelos montes e, mal se pilhou com o dinheiro da passagem, veio retomar o senhorio da sua choça, mais sereno, mais ascético, mais despojado de ambições. Quando, à tardinha, se sentava num calhau em frente do tugúrio, esmoendo com os vagares de quem é dono de todo o tempo do mundo um cibo de bacalhau cru sobre o carolo de pão centeio e meia cebola, tinha o ar vagamente enfadado de Diógenes ou, sabe-se lá, de suserano dos vastos reinos que se estendiam do Prado até ao monte da Cabeça, onde ele conhecia todas as luras de raposa e todos os tourais onde os coelhos vinham bater o fandango em noites de luar.

Caladão, muito cordato, apenas abria a boca para contar alguma larota de caçador em que nem ele mesmo acreditaria lá muito. E só aos domingos, de quando em quando, saía deste comedimento para apanhar a sua cardina catártica. E então, muito tartamudo, com a beiçola gorda e roxa de vinho descaída para o queixo, soltava palavrão de fazer corar um preto. Até que a mocidade, que por ali se juntava no jogo do fito e do calhau, condescendia em lhe despejar uma romeia de água fresca pelo toutiço abaixo para aclarar as ideias. Mas na segunda-feira, logo à-pormanhã, com grandes papos sob os olhos e a beiça gorda ainda arroxeada da carraspana mal curtida, retomava o passadio austero dos dias ronceiros: agarrava do enxadão e ia e dar mais uma jorna a quem lha requisitara. A Lídia do Jaime, que o estimava como a parente chegado, repreendia-o com brandura: − Ó Zé, tu porque é que te emborrachas assim e és tão malcriado? O Zé Carroucho, cândido como criança travessa repesa da traquinice, assumia em voz sumida e sem levantar os olhos: − Lá calha…
***
Pois a névoa da manhã dera em marinhar pela encosta da Serra dos Pereiros e a noite cerrara muito temporã sob um céu de chumbo. Aquelas galinhas de aldeia, que incansavelmente esgaravatam o ciscalho das ruas e eram de uma inegável sensibilidade meteorológica, tinham recolhido ao poleiro ainda mais cedo que de costume, enganadas pela treva cediça. A pardalada grulha e zaragateira, adivinhando a neve, acolhera-se também aos medeiros onde a palha, além do agasalho, oferecia ainda algum grão perdido nas malhas. E a gente chegara-se também ao afago da fogueira onde cozia o pote da consoada. Como aos picos da serra a electricidade não arribara ainda, nem luzinhas multicolores salpicavam a treva, nem o silêncio era quebrado pelas melopeias natalícias que adocicam a azáfama mercantilista das grandes urbes. Um silêncio denso e mole gasalhava o casario agachado na treva, repleto de quietude e mistério − era a epifania dos grandes nevões.

Vendido o último quartilho de azeite para temperar o bacalhau da consoada e o último litro de tinto para o empurrar, como não esperasse mais clientes, o Jaime entendeu por bem fechar o soto. Chamou o filho mais novo que por ali cirandava:
– Ó Zé, leva essa peixota de bacalhau ali ao Doutor, e… toca para casa, que está a arrefecer.

O miúdo atravessou o Prado fazendo rodopiar a peixota do bacalhau dependurado pelo rabicho. Com a familiaridade de visita assídua, empurrou a porta perra da cabana do Doutor e despachou o recado:

– Ó ti Zé, tome lá que manda o meu pai. – E atirou a encomenda para cima da mesita de pinho onde o Doutor refeiçoava.

Desincumbido do recado, desandava já, quando atentou no coto de vela que ardia ao fundo do cortelho. Aproximou-se a fariscar: ora, sim senhor! O Doutor Caleja também tinha armado o seu presépio!

E de facto, sob a bênção suave do coto de vela surripiado na sacristia depois de despir a opa de tirar a esmola, o veludo de quatro farrapos de musgo macio almofadava o tampo gorduroso da arca onde guardava o pão e o toucinho de adubar o caldo. Sobre a macieza do musgo, à direita, uma estampa de Nossa Senhora da Serra que o Doutor trouxera da última festa que a nove de Setembro se celebra logo ali, no píncaro da serra da Nogueira. Que mais dá que seja Nossa Senhora da Serra ou outra? É Nossa Senhora e bonda! À esquerda, como não constava que nos arredores se armasse romaria em honra de S. José, figurava outra pagela que informava: imagem do milagroso Santo Ambrósio que se venera na sua capela de Vale-da-Porca – outra das devoções aceites pelo Zé Bernardo. O bordão e as longas barbas tanto assentavam no Santo Ambrósio como no S. José … o carapuço de bispo é que não vinha a calhar, mas paciência! Quem faz o que pode… Ao centro, sobre um manhuço de palhas centeias, sob o olhar atento da Senhora da Serra e do Santo Ambrósio de Vale-da-Porca, repousava o pequeno crucifixo que o Doutor, muito pragmático, desenganchara do seu rosário.

O pequeno, muito pasmado, ainda se dispunha a transigir com as outras inovações introduzidas na iconografia natalícia ao arrepio da tradição… mas esta do Menino Jesus deixava-o perplexo:
– Ó tio Zé… e... então o Menino Jesus? Isto assim não vale!
– Não tenho. – E quedou-se um momento de olhos postos nas largas labaredas da giesta que lambiam o bojo negro do pote da consoada. Depois, com ar de quem filosofa sobre a vida, com muita vida já vivida e muitas maleitas curtidas, sacando as palavras a custo, como quem as puxa nos alcatruzes do entendimento, acrescentou:
– Olha, Zé… tanto monta que o Menino esteja a nascer nas palhinhas ou já a morrer na cruz. Mal nascemos, já estamos de catrâmbias para a cova… E mal se morre já se está a nascer outra vez…

Calou-se, cansado de tão profunda tirada metafísica. Depois, de olhar parado nas brasas que remexia com um guiço, rematou:
– E diz lá ao teu pai que muito obrigado pelo bacalhau.

sábado, 20 de dezembro de 2008

É NATAL!


O Natal está à porta.
De seguida, mais um ano que termina e outro está quase a nascer.
Assim, e sem mais delongas, tenhamos a esperança de um ano melhor a todos os níveis.


Augusta Mata


PS: a esperança ainda não paga impostos, pois não?

A Flor



A FLOR

Virei costas, abalei mundo fora …
Cerrei olhos, chorando por amor,
Bati portas, feito surdo ao mundo,
Tal como errabundo de outrora…

Queria esquecer, sem recordar,
Numa amada vontade de dor,
Naquele anoitecer cinza de breu,
Com a vil esperança de regressar.
E assim, … livremente, lá fui eu…


Errei por pecaminoso caminho,
Nas longas, tristes noites que chorei,
Deleitado em frios pés descalços,
Nos percalços de rosas que pisei.

Fui sultão, gente, até pedagogo,
Naquele quente frio de carinho,
Com tudo o que dei e não pedia,
No vão arrasto do lúgubre lodo.
E assim livremente, eu vivia.

Também fui feliz, livre, e ouvi
Naquela vítrea luz do teu olhar,
O som no esgar da vida que fiz,
E a infeliz dor do que perdi.

Então, teimei renascer e voltar.
Do tempo que ficou, nesses cantos,
E assim, dedico-te mil encantos,
Para nesses tempos nunca ficar.

Assim pensei. …. mas…,

Acordei vagabundo sem amor,
Recordei,
brando e abandonado,
Naquele fundo de dó e de dor,
O Só,…, em que me
tinha tornado

Mesmo assim,……. de novo, beijei

A Flor.


Orlando Martins - 2008

domingo, 14 de dezembro de 2008

Neve na Serra de Nogueira

Mais uma vez a neve bateu às nossas portas durante a noite. Aqui em Bragança, apenas salpicou os carros estacionados nas ruas mas, lá em cima, nas serras de Nogueira e Montesinho, o branco foi rei mais uma vez. Impossível resistir! Depois de almoço, lá fomos nós para mais uma aventura na neve na Serra de Nogueira. Aqui deixo um cheirinho para quem, mais uma vez, não pode deliciar-se com este espectáculo. Aproveitem.

Augusta Mata

segunda-feira, 8 de dezembro de 2008

ECOS DO MEU SENTIR

III - DA CIDADE À SERRA
por

FILINTO MARTINS


Há dias fui ao “sótão da minha meninice…”.
Cheguei à Princesa do Tua numa manhã primaveril, não de comboio, mas como fidalgo de outros tempos. Entrei no Mercado, melhor, no edifício, pois as vendedoras eram apenas três, porém suficientes para comprar uma “raba” e uma couve… Fez-se luz: ao lado um sapateiro, como noutros tempos, tinha o calfe de umas botas na forma pregado com “cerzetas”, como outrora fazia o senhor Carlos.

Onde nasci? Suponho que em casa, no Covelo, e talvez a parteira tenha sido a tia Antónia… Tive sorte, fui registado vinte e dois dias depois da data do nascimento, com a assinatura do professor Francisco Joaquim Fernandes Ribom, que escreveu Rebordainhos sem acento (desculpa lá, Fátima) e rubricou as páginas da minha cédula, que guardo religiosamente, com a palavra Ribom a tinta azul, provavelmente daquela que nós mais tarde também usámos na escola. Tem sessenta anos a minha cédula (só as mulheres não dizem a idade). Ao folheá-la verifiquei que tive mesmo sorte, porque não fui daqueles que na mesma página tinham à esquerda a data do nascimento e à direita, na mesma página, morreu… (não fui de anjinho). Hoje, as cédulas omitem esse pormenor, sinal do progresso, do bem-estar, da esperança de vida, da diminuição da natalidade… menos zorros, mais prevenção.

Enquanto deambulava por Mirandela, cidade linda, com uma área de lazer que dá gosto, ouvi tocar os sinos de três igrejas, de forma monótona e repetitiva, mas com leve atraso uns dos outros, como o povo Português.

Segui viagem, vendo aqui e além uma ponte, um troço da antiga linha do caminho-de-ferro, porém não vislumbrei qualquer cantoneiro. Antigamente, quais estátuas, embelezavam a paisagem de Rossas até Bragança e ajudavam os condutores, nomeadamente o professor Ribom, que tocava em toda e qualquer curva que aparecesse, acenando para se ir à vontade e assim descansarem da sua monotonia. Este, para entrar na garagem, necessitava da ajuda do irmão, senhor Carlos, que lhe fazia um risco no chão para ele poder entrar. Excepto uma vez, em que passou ao lado do risco e o carro ficou sem pintura dum lado. Logo a Dona Maria acudiu: “não faz mal”. A que o senhor professor ripostou: “Ó Carlos, se tinha seguido o risco não batia”. Fazia agora falta o cantoneiro, pois nesta altura já não ia ao lado o Tio Jaime, que foi o seu mestre, por diversas vezes, para uma simples viagem a Bragança. Eu, no banco de trás, enquanto o Tio Jaime aconselhava o mestre: “mais à esquerda, mais à direita”, tremia, e a Dona Maria acrescentava: “Temos muito tempo, até vamos muito bem”. O senhor Carlos, bem cochichava: “Ah! Se fosse eu a conduzir”.

Ao atravessar Rossas, na passagem da linha de outrora, olhei para a estação, mas não vi o senhor Pinto, com a sua bandeira vermelha enrolada num pau, o “subiote”… aquele boné que ele só colocava para a passagem da automotora, constituíam apetrechos que para mim tinham muita importância na altura … Para que é serviriam? Pois atrás do guichet quando se comprava o bilhete, o último que comprei custou 101$50, para a longa viagem até ao Porto, ele nunca tinha boné?

Cheguei finalmente a Rebordainhos e logo verifiquei que afinal a casa do Tio Aníbal Fuseiro não se esborralhara por completo… não atropelei nenhum galináceo, tendo encontrado apenas o Alfredo, mais conhecido por Aidinhas, encostado à parede da casa da tia Joana do Outeiro, por quem o tio Benjamim, homem profundamente religioso, encomendou um padre-nosso pela alma dos parrecos da tia Joana, que tinham morrido, dado que já não havia mais por quem rezar. No curto trajecto que faltava não foi preciso travar, porque já não havia galinhas, nem os parrecos da tia Perpétua, que outrora eram música em qualquer poça de água, mesmo numa simples pegada de uma vaca.

Não ouvi qualquer chiar de carro de bois, como em tempos… O Alfredo gostava de apertar as “tarrachas” a fim de os vizinhos ouvirem bem e irem buscar as sacas das castanhas que aqui e além, de pé, esperavam pelo tractor ou jipe que as transportasse.

Regressei ao Porto, ao parque do Museu de Serralves, onde dias antes pude ver a realidade de outros tempos e ocorreu-me: “agora são os jovens das aldeias que têm que ir às cidades, para observar in loco, as vacas e as ovelhas”. Já que não fiz a viagem como o Jacinto e o Zé Fernandes, pude contemplar o silêncio, a paz, o sossego, o ar puro da serra de Nogueira. Que se passa? Afinal há mais vacas e vitelos ao lado da Avenida da Boavista que em Rebordainhos! Civilização?

Olhei para as escadas da casa da minha irmã e não vi, como sempre via, o meu pai apoiado a um cajado e descer, mal via o carro. Enquanto subia, para meu espanto, ouvi um toque de sino, só um e logo o Bino me elucidou: “é o relógio da Igreja”. Mas não se vê o relógio…

Fui até Bragança, tinha os meus dezoito anos, pimpão, sapato preto engraxado, calça com vinco, talvez com alguma brilhantina… parei na Sé. “O meu amigo pode dizer-me que horas são?” Resposta pronta de estudante: “olhe para o relógio da Sé!” Retorquiu-me o transmontano, que provavelmente viera à feira dos 12: “Se eu soubesse ler não lhas perguntava… eu até tenho relógio!”

Aquele simples toque levou-me ainda mais longe. Recordo, com saudade, o toque das Trindades, para o Terço, para a Missa, deram sinais, a concelho, incêndio, “morreu um anjinho” e aquele toque para as aulas, que a Sara dava tão bem…

Ainda pequenote, brincando ao pingue, à bilharda, ao pião, ao fito, com uma junta de bois feita de “bulharacos”, enfim, ao “rou-rou” – internet e Play Station da nossa actualidade – lembro-me de uma promessa do meu pai: “se apanhares a água para os pedreiros fazerem a “massa” para o palheiro, mandamos fazer umas botas ao Sr. Carlos sapateiro”. Lembro-me perfeitamente de apanhar a água da fonte das Ribas de cima, fonte pequenina, que hoje deve estar seca, com uma “remeia”, calculo.

Trabalho feito, promessa cumprida, pois o meu pai era homem de palavra. Só havia uma coisa que eu detestava que ele me mandasse fazer – ir com as vacas para o lameiro. Lá ia, mas sempre contrariado, a não ser que fosse para as Bouças e lá andasse o Pilatos. Com ele aprendia-se muito… se aprendia, cá voltaremos.

A ânsia de conseguir tão almejado prémio ajudou-me a esquecer as brincadeiras e a arranjar força para apanhar água. Ter umas botas como “os homens grandes” e não uns socos que o tio Grilo, artesão da terra, tão bem fazia e em determinados jogos e lutas eram uma arma poderosa nas canelas do mais atrevido.

Chegou a ordem: «Vai ao senhor Carlos para te tirar as medidas». Suponho que não falei com ninguém, era segredo, para depois aparecer com umas botas novas junto dos meus amigos de brincadeiras, mãos nos bolsos (era possível que estivessem rotos) para poder puxar as calças e assim mostrar a obra de arte.

«Senhor Carlos, o meu pai mandou-me vir tirar as medidas para umas botas. Olhe que são para a festa!». Resposta pronta do senhor Carlos: «Já devias ter vindo, pois tenho que as levar a Bragança para coser e pôr a sola de molho… isso demora». Pegou numa folha de papel seguida de ordem: «põe aqui o pé». Com um lápis obteve o desenho perfeito dos meus delicados pés.

No nosso tempo, tínhamos uma admiração especial por algumas pessoas da terra – Pe Amílcar, Professores, Armindo (barbeiro), que dava em dez minutos dez anos de rejuvenescimento e o senhor Carlos, ilustre sapateiro da aldeia, sem concorrência no negócio, deambulava pelas ruas com maior frequência, na altura das matanças. Pressentia, qual galgo a lebre ao longe, o cevado morto que no banco era presa fácil – «boas cedas» … arrancava sem o mínimo queixume do defunto. Nestas deambulações acompanhava-o sempre o seu avental de cabedal, aqui e ali com as marcas da navalha afiada que errara o alvo e, no seu andar aligeirado, meneava as nádegas salientes, efeito do seu banquinho de trabalho. Aquele seu lábio descaído, pensávamos nós, seria de molhar a linha para que após o furo com a sovela, melhor deslizasse aquela, mas não, era de nascença. Era uma pessoa que metia respeito e medo aos mais novos, desde que vissem os seus apetrechos – sovela, turquês, ‘luvas’, martelo e aquela faca tão afiada… Chamávamos-lhe «senhor Carlos» e não «tio Carlos». Porque seria? Respeito? Profissão ou medo? Mas era um homem bom.

Com o aproximar do prémio faltava um pormenor: «Senhor Carlos, mas eu queria daquelas botas que chiam!»
«Ó rapaz, isso não é fácil. Tens que ir à tua mãe que te dê (deve ter dito deia) duas fatias grossas de presunto magro, bem magro, rapara bem, para meter no meio das solas. Vais ver como chiam!»

E lá foi o ignorante pedir as ditas fatias de presunto, que embora analfabeta, a minha mãe prontamente me disse: «seu brutinho, o sapateiro quer é comer o presunto!».
Inocência ou ignorância?

Responda quem quiser, sei apenas que tive umas botas novas, por medida! Hoje, a civilização tem todos os modelos e mais alguns… cores e feitios à disposição de todos os pés mas, por medida, será para uma minoria…
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À excepção da primeira fotografia (enviada pela Céu) e da última (roubada daqui), as fotografias que ilustram o artigo são do próprio Filinto

quarta-feira, 3 de dezembro de 2008

Actividades Económicas



I - AGRICULTURA

A FAMÍLIA DA SENHORA MARGARIDA




Hoje retomo o tema das actividades económicas da aldeia. Foram bastantes as pessoas que aceitaram falar comigo e, acredito, sentem-se um pouco defraudados por não verem nada publicado. A todos peço desculpa, lembrando, em minha defesa, que não foi por descaso e, muito menos, por desamor.

Porque a nossa terra faz parte do mundo rural, parece-me justo que inicie esta série referindo quem se dedica exclusivamente à agricultura e dela tira o seu sustento. De entre esses, destaco aqueles que devem ser os maiores proprietários: os herdeiros do sr. João Pires, ou sr. João Santo, como se preferir e a família não levará a mal.

Tudo somado, trabalham uma área de cerca de 62 hectares. A senhora Margarida é a cabeça de casal e tem no Toninho, o filho mais velho, o seu braço direito. Com eles, a tempo inteiro, também trabalha o Manuel, mas a Luísa e o Carlos não falham, ele nas férias porque está longe, em França; ela nas folgas e nas férias porque está mais perto, em Macedo.

Como acontece com todos na nossa terra, os muitos hectares desta família espalham-se por todo o termo da aldeia, o que acrescenta trabalho e despesa à produção. De acordo com a tradição, a castanha, a batata e o centeio são a principal fonte de rendimento, embora os tempos tenham dado nova feição ao trabalho. Possuem dois tractores, segadeira de feno, arrancadora de batatas, enfardadeira e outras máquinas que, se não substituem inteiramente a força humana, aliviam-na muito. Sem estas máquinas e sem poder contar com ninguém porque, no povo, quase só restam os velhos, seria impossível trabalhar área tão grande. Compensa ter tantas despesas com máquinas? Respondem que não, mas também não vêem grandes alternativas.

– “Ó mãe, está na hora de ir deitar as vacas!”, diz o Toninho, do cimo da magnífica escadaria de granito da casa. O cabelo revolto denuncia a sesta que acabou de dormir, costume há muito perdido nas cidades, mas tão necessário àqueles para quem o dia começa antes de o Sol arribar no céu. A senhora Margarida debagava uns erbanços que tinha a secar, pois é nessas tarefas, ou a fazer renda ou meia, que as mulheres de Rebordaínhos “dormem” a sesta, mas como os erbanços podem esperar e as vacas têm que comer, lá foi ela levá-las ao lameiro. Mal comparado, estas vacas são rainhas: da loje para o lameiro e do lameiro para a loje, percorrem as ruas da aldeia como majestades sereníssimas. Comem e descansam! Anda que no tempo do sr. João não era assim, não, que tinham que bulir muito! Estas são jungidas para semear nabal e batatas e para agradar a terra - meia dúzia de vezes, e pronto, está o ano feito!

O trabalho é muito. O Manuel ainda vai ao café, mas a mãe e os outros filhos nunca se vêem desocupados. Os dedos de conversa trocam-se enquanto descarregam o tractor, ou pelo caminho quando levam a vianda aos porcos. Mas não falham aos vizinhos se os encontram a braços com trabalhos mais pesados.

A casa, herdada do pai, foi arranjada e alargada, parecendo um palácio com as suas paredes brancas e janelas emolduradas em cantaria lavrada. O interesse de cada um confunde-se com o interesse de todos e, talvez por isso, vão conseguindo amealhar o bastante para terem conforto e desafogo. Se o mundo andasse direito, tanto esforço seria compensado com bastante lucro, mas como o mundo anda mais torto do que aquelas ervas engatadeiras que engatam pelos paus acima e lançam umas guias enroladas como rabo de porco, quem ganha são os intermediários que vendem caro como o lume aquilo que compraram por dez réis de mel coado.

“No tempo do meu pai, diz o Toninho e a mãe confirma, vendíamos o quilo do pão a 50$00 e a saca de adubo custava 600$00. Agora, pagam-nos o pão a 16 cêntimos e a saca de adubo custa 20 €! As batatas foram vendidas, este ano, a 10 cêntimos..." Basta fazer as contas para se perceber a dimensão do desprezo que tem sido dado à nossa agricultura. Devido a tais circunstâncias, aqueles que permanecem na terra, a trabalham e dela retiram o sustento merecem ser louvados e reconhecidos.

Fátima Stocker