O CANTINHO DO SEVERA: parte 2
por
ANTÓNIO AUGUSTO FERNANDES
Ao que consta, que eu já não o conheci, bom sujeito, caladão e muito metido consigo mesmo, o Severa não era de grandes folias, mas era estimado pelos vizinhos. Morrera-lhe a mulher, morrera-lhe também a filha que tinha casado lá para os Pereiros, por isso vivia sozinho. A maior parte do tempo passava-o para os lados do Atalho, onde tinha umas territas aninhadas naquele córrego que chamam de Atalho porque era por ali que os dos Pereiros atalhavam direito à Quinta do Sepúlveda quando iam para Rossas ou a caminho da feira dos Chãos, sem terem de passar pela Vila.
Talhada no meio de touças e soutos, longe de tudo, quase no extremo do termo e no seio do silêncio que apazigua a alma, onde só se aventuravam os pastores mais dedicados ou algum caçador, mas abrigadinha do vento galego, com uma poceca de água de nascente, a fazendinha era a menina dos seus olhos. Ali se davam todos os mimos precisos para o governo de uma casa. Dali comiam o coelho, o melro, o texugo e ainda sobrava para o dono que ali passava o melhor dos seus dias.
Ora um dia, de repente, o Severa deixou de aparecer. Como vivia sozinho, a princípio ninguém deu pelo caso. Não aparecia pela taberna, nunca mais foi visto ao cimo das escadas a merendar o seu cibo de pão com queijo ou presunto.
Ao segundo dia, os vizinhos chamaram à porta, não fosse por lá ter dado alguma coisa ao homem. Era escusado, que a porta estava fechada por fora com o caravelho, que naqueles tempos sadios podia-se confiar nos vizinhos como em família chegada. Entraram. Lá dentro, ninguém. Tudo em ordem como se o homem tivesse acabado de sair a algum recado. Comunicaram para os Pereiros, para casa do Tato, o genro, viúvo também, e nada: − que o não via há um ror de tempo.
A primeira ideia foi ir procurá-lo para os lados do Atalho não lhe tivesse por lá dado coisa ruim. E lá avançou um grupo encabeçado pelo Tato, que entretanto chegara dos Pereiros. Na horta nenhum vestígio nem do Severa nem de luta ou tão pouco de pegada fresca: as couves e os feijões vicejavam indiferentes a dramas e apenas um pouco murchos porque a água começava a faltar-lhes. Voltaram para trás e iniciaram uma busca mais minuciosa. A partir das poulas de Penacan, entraram pelo souto dos Pereiros, embrenham-se pelo mato sombrio do Cabeço Cercado, desceram para os lados do Cano, até que a noite os obrigou a suspender a investigação. Voltaram no dia seguinte em grupo mais numeroso, sempre encabeçado pelo Tato que começava já a lamuriar-se: − Ai meu rico sogro, que era tão meu amigo!
Resolveram ir vasculhar mais minuciosamente o Souto dos Pereiros, onde o carvalhal era mais denso e mais difícil de devassar, mas o Tato insistia que não valia a pena voltar ao já vistoriado, e voltava ao lamento: − Ai meu rico sogro, que era tão meu amigo! E ia-os empurrando para os matagais de Vale-das-Vinhas.
O grupo estranhou a insistência perturbada do homem e entrou de ficar sorumbático, ainda por cima perseguido pela toadilha lamurienta do Tato: − Ai meu rico sogro, que era tão meu amigo!
− Ó homem, cala-te, c’os diabos, que até dás azar!
E começavam a ficar encanzinados com a ladainha, tanto mais que toda a gente sabia que eles andavam de candeias às avessas, quase nem se falavam, desde que o Severa começara a falar pelas tabernas em vender uma das melhores terras: o corpo já lhe pedia descanso… e tinha o que comer até ao fim dos seus dias. Ao Tato, que vivia na esperança de herdar, na qualidade de genro embora viúvo, não agradaram tais falações. E deixaram de se falar. Não se falavam, era lá com eles, cada um tem o feitio que tem e toca a sua vida para diante como muito bem entende e pode. − Agora vir com a cantilena de serem amigos, porra, bole com os nervos da gente!... − alvitrava um mais inconformado.
O outro acusou o toque:
− Lá por mal nos falarmos não quer dizer que não me amofine. E ele que era tão meu amigo!… E às vezes até me dava uma chouriça para levar de merenda…
Este pormenor da chouriça deixava-os intrigados. A que propósito, num momento de tanta aflição… Ouve-se cada uma!...
As buscas continuaram ainda, cada vez mais desalentadas e acabaram por findar sem qualquer resultado.
Mas logo no dia seguinte, andava o Zé Tiago a fazer lenha numa touça que tinha para aqueles lados, quando o rafeirozito que o acompanhava por todo o lado lhe aparece a saltaricar em volta como quem traz recado. Não tardou a reparar que o bicho desinquieto tinha o focinho emporcalhado de viscosidades negras. Sentiu um aperto no estômago. Dar-se-ia o caso?...
− Busca, busca, Farrusco … − e o cachorro desandou por onde tinha vindo, seguido do dono.
Adentraram-se cão e dono pelo Souto dos Pereiros e não tardou muito, o animal parou a ladrar para um vulto informe mal encoberto por umas giestas. O intenso fedor a mortulho que alastrava em volta dizia o resto.
Àquele tempo, era regedor da terra o tio Ramos, o ferreiro da terra. Homem espadaúdo e de voz tonitruante, mas bom homem no fundo, tinha a sua forja na rua da Portela, ali a dois passos da Fonte Grande, e à porta, para temperar os aços, enorme pia de pedra cavada num monólito de granito. Grandes momentos pasmei à porta a contemplar o sopro hercúleo do fole enorme que levantava fagulhas até ao tecto ou a ver dobrar à força de marra as grossas fitas de ferro incandescente que depois eram aplicadas nas vastas rodas dos carros de bois, largando em densas baforadas o cheiro bom do freixo queimado.
Ora o tio Ramos, tendo ficado com a pulga atrás da orelha desde as cenas enfuscadas das buscas, não hesitou na decisão a tomar, quando o Zé Tiago lhe veio com a novidade. No dia seguinte, logo à pormanhã, correu a casa do Moreno e nomeou-o, mais um vizinho, cabos de ordens, como então era de uso e direito. Arrancaram os três para os Pereiros. Foram dar com o Tato a regar umas couves ao pé de casa e logo ali, sem mais aquelas, lhe deu voz de prisão.
O homem, apanhado de surpresa, começou a tartamudear sem que dissesse coisa com coisa, até que, amarelo que nem cidra, desatou em choro convulso e acabou por confessar a feia acção: sabia que o sogro, naquele dia, andava para o Atalho e fora ter com ele apenas para terem uma conversa de homem para homem, ainda sem qualquer intenção maldosa. Só quando o apanhou desprevenido a beber debruçado sobre a nascentinha da horta é que uma coisa má lhe passou pela ideia e, levado pela paixão que o recozia por causa da venda das terras, desferiu-lhe à queima-roupa uma machadada no pescoço.
O Regedor e os seus homens entreolhavam-se estupefactos: − E então as buscas?... E ele continuou: que escondera o cadáver à pressa, no meio do mato, à espera de uma ocasião propícia para o fazer desaparecer. Entretanto, todas as noites se dava ao trabalho de o carregar às costas para os sítios onde já se tinham realizado as buscas, para assim despistar quem o procurava. Pensava mesmo que essa noite seria o momento azado para o devolver à terra, antes que lobos e corvos dessem conta do cadáver.
Por essa altura de tempos apertados, os transportes eram mais escassos e lerdos que nos tempos que correm, mas a justiça mais lépida. Como a essa hora já o misto tinha passado há muito tempo em Rossas, o tio Ramos não esteve com meias medidas: entregou uma caçadeira a cada um dos cabos de ordens e despachou-os de imediato para Bragança. − Que iam da parte do Ramos de Rebordainhos e o entregassem à Guarda. As armas não tinham licença, mas na esquadra ninguém lhes haveria de perguntar por ninharias atendendo ao caso e a quem os mandava ir! A butes, como então não era raro fazer-se, tomaram o caminho da Tergaça, Eiras fora, passaram em deslado de Viduedo e foram apanhar a estrada de Bragança junto ao Remisquedo, em vez de irem por Rossas, que sempre se poupava uma data quilómetros.
− Mas então não é, que chegados à esquadra − contava mais tarde o Moreno − o alma do diabo começou por negar tudo o que tinha confessado ao Regedor, nos Pereiros!
Como em Rebordainhos não havia telefone, nem luz, nem estrada − um cu de Judas! − deixaram o homem entregue à Guarda e, antes que anoitecesse, atiraram-se de novo ao caminho a contar ao tio Ramos as juras de inocência do Tato quando se viu diante do oficial de serviço.
(continua)