por: orlando santos martins
parte ii
Vamos a ele com unhas e dentes. – Respondeu
um rapaz de estatura mediana, cabelo louro, de olhos grandes e azulados, a quem
os colegas chamavam “malhadinhas”, mas cujo verdadeiro nome, como se viria a
revelar, era Sérgio.
Como um rebanho de
ovelhas, e um pouco mais faladores, seguiram o patrão António, a quem chamavam
“Amo”, para a primeira terra de centeio, que era a mais distante da povoação,
uma vez que o amo António desejava que, conforme a segada avançasse, se fossem
aproximando de casa, gestão de energias, dizia ele.
Ó Jeremias, trazes o pipo do vinho? – Perguntou
o capataz.
Claro! – Respondeu este – O Telmo e o Jorge trazem
dois garrafões de vinho, já o “ceifas”, – alcunha do Luís – traz o cântaro para
a água.
A água é para aguçar as fouces.
– Gracejou uma voz despercebida no grupo, mas todos eles sorriram, fixando o olhar
atento no amo para descortinar a sua reacção.
A auréola alaranjada que agora cobria os montes, fundindo o horizonte e
o céu de um azul cinza num suave degradé,
transformara-se, na chegada à serra, num foco brilhante e centrado, vindo de
leste, que radiava fios horizontais de luz ofuscando os olhares mais adormecidos.
Chegados aos
confins do termo, a Malhada-Velha, este proporcionava uma ilusão de paisagem
aérea com uma imensidão de montes a leste, destacados pela fraga da ladeira, e uma
imensidão de montanhas a oeste, como ondas revoltas de um mar sem fim.
Uma obscuridade a
norte oferecida pela floresta que nos convidava por um carreiro ladeado de
urzes, giestas, abetos, pinheiros e outros arbustos, à casa da floresta e, mais
lá ao longe, à capela de Nossa Senhora da Serra (ou das Neves) e a sul
espraiava-se a serra de Bornes interrompida pela imponente fraga da Anta.
As duas primeiras leiras a ceifar eram as da Malhada-Velha, a de cima e
a de baixo, duas courelas rectangulares com aproximadamente 250 por 100 metros e dariam aqui
o início à segada.
Ó Humberto, oriente aqui a rapaziada,
enquanto eu e mais dois vamos ali ao leiroto de S. Tomé, que é pequeno, e já
voltamos. – Ordenou o amo António.
Está bem – Respondeu o capataz que, logo de
seguida, com uma voz mais forte como que a transmitir ânimo aos mais
desalentados pela fadiga da já longa temporada, gritou: Vamos a isto pessoal que a noite ainda vem longe.
Pois vem, e eu já jantava. – Gracejou o
“malhadinhas”.
Anda lá, e manda essa preguiça ladeira
abaixo. - Acicatou o Telmo.
E assim começaram a
primeira jorna para o novo amo.
****
O fumo saía denso pela chaminé de ferro, encimada por uma cobertura de
chapa, que mais parecia um boné militar em forma rectangular, diferindo dos
ovais dos guardas florestais, formando, mais acima, novelos de algodão doce que
pairavam lentamente à bolina da leve brisa que se fazia sentir, antes de se
integrarem e desaparecerem no inebriante azul celeste.
Na lareira,
enormes troncos de carvalho, ladeados de urzes e giestas, começavam a lançar
devoradoras chamas amareladas, inquietas e relutantes no caminho a seguir.
Ó Ana, chega aqui. Acho que o lume já está a
ficar bom, já tem umas boas brasas. – Disse a Maria
Pois já, … já, … onde arranjaste os potes?
Olha, pedi um à Alzira e outro à Lúcia, elas
já nos vêm ajudar.
Se calhar púnhamo-nos já a descascar as
batatas. – Alvitrou a Maria. – A canhona já está temperada desde ontem. –
Concluiu ela.
Vamos nós avançando com as batatas; tiro por
aí umas sessenta?
Sim, acho que chegam, Ana.
Depois fazemos o refogado para a canhona,
que a sopa de caldo verde é rápida, e ao meio-dia temos o jantar pronto. Continuou a Maria.
A azáfama dentro daquela cozinha era enorme: contavam-se os garfos,
retirando os mais enferrujados e com dentes tortos, as facas, as malgas,
escolhendo aquelas que estavam menos esfareladas nos rebordos, as panelas de
asa, para levarem a sopa e os alguidares para a canhona e batatas.
Bom dia, Maria! Bom dia, Ana! Já
estais adiantadas. – Cumprimentou a Lúcia, enquanto entrava. – Está um pouco de
fumo aqui na cozinha, não está?
A pequena nuvem
de fumo, misturada com o vapor salgado dos potes, que realmente pairava na
cozinha, era bem visível, principalmente para quem vinha do exterior, embora
esta se tivesse tornado já num incómodo para os olhos lacrimejantes da Maria e
da Ana, cujo campo de visão parecia envolto num fino véu de seda.
A Chaminé não está a tirar o
fumo lá muito bem, não. – Apercebeu-se a Ana ao olhar em seu redor.
Estava um caldeiro
preto pendurado ao lume que continha cascas de batatas, restos de couves e
algumas batatas mais pequenas, a que chamavam porqueiras. A Maria apercebeu-se
que já fervia há algum tempo e retirou-o do cadeado.
A comida dos porcos já está pronta, vou
juntar-lhe um pouco de farelos e vou dar-lhes de comer, para ficarmos
descansadas com isto. – Informou a Maria toda atarefada. – Vós continuai a
cortar as batatas e a preparar as couves.
Vai lá, vai lá. – Respondeu a Lúcia. -
Queres que dê de comer às pitas e aos coelhos?
Obrigada, Lúcia, Estão farelos ali no baixo,
para a galinhas, e põe-lhos nas malgas velhas que estão no galinheiro. Para os
coelhos leva-lhe umas folhas de olmo que estão dentro de uma saca que fomos
ripar ontem.
Então o que queres que eu faça? – Perguntou
a Alzira que acabara de subir a escada e tinha ouvido parte da conversa.
Tu podias ir lavando a louça e metendo-a na
cesta para levarmos. Sabes, ganha muito pó e gordura aqui no lançadouro. –
Disse a Maria, apontando para a quantidade de pratos, talheres e malgas que
estavam espalhados na mesa da cozinha.
****
Rondava as dez horas e o sol, na sua grandeza, tinha abraçado todo o
espaço, derramando sobre a terra, quentes e luminosos raios de luz.
O António e os dois segadores tinham-se juntado ao restante grupo na
Malhada-Velha de baixo, que estava, também ela, com a ceifa quase terminada.
Após alguns instantes dirigiram-se, encosta abaixo, até à cova de Vila Seco,
deixando na sua passagem pequenas nuvens de pó acastanhado levantadas pelos
sapatos e socos que se arrastavam no carreiro da terra já bastante aquecida nessa
hora do dia.
Começaram na parte baixa da cova, onde o pão era mais ralo, mas mesmo
assim muito grado, como afirmava o António.
Após algumas braçadas, a seara ia-se tornando mais densa, os molhos iam
ficando para trás no restolho, como cordeiros a pastar, e pequenos tufos de
ervas daninhas e alguns fetos apareciam mais frequentemente enrolados nas espigas,
proporcionando uma bicromia, verde e amarela, deveras contrastante.
Ó Jeremias, traz-me aí o gadanho que aqui há
muita erva. – Pediu o Sérgio “malhadinhas”.
Está bem, “malhadinhas”, mas
eu, daqui a um bocado, também vou precisar.
O António acrescentou: – Jeremias, aproveite e leve o vinho para aquela
poça de água, vai refrescar até à hora de almoço.
Está bem. – Respondeu ele.
Ponha-lhe, por cima, umas
folhas daqueles fetos junto à poça, que ainda vai refrescar mais. – Concluiu.
Regressando à correnteza ziguezagueante do corte entre centeio e
restolho, os segadores distribuíam-se numa linha de frente, tal como uma
falange de legião romana, de forma a abranger toda a largura da propriedade.
Nas orlas, não era raro alguns dos segadores lançarem com as foices
ríspidas catanadas, amputando enormes braços de silvas que se espraiavam dos
silvedos sobranceiros à seara.
Com a manhã já avançada, e o sol dardejando raios cada vez mais
quentes, o suor daqueles homens ia caindo gota a gota naquela seca e fértil
terra que antes, prenha de vida, alimentara todo o ciclo de crescimento da
seara até à maturação do seu fruto.
Os chapéus eram levantados e o lenço, enrolado no pulso, limpava o
resto do suor destilado na testa e no pescoço.
Para esquecer a aproximação de algum cansaço o capataz Humberto lançou
o repto da canção da manhã, que normalmente era cantada ao desafio.
Vamos lá rapazes, vamos a ela.
– Disse o capataz. - Ó Nuno, tu que és o “cantigas”, começa com a moda! – Pouco
tempo depois, já todos acertavam com a primeira canção do dia.
O António, que só de ano a ano, e por esta altura, ouvia estas modas,
deixou-se ficar paralisado. O nó na garganta, que o enlevava e lhe marejava os
olhos, envolveu-lhe o seu passado e presente, numa alegria nostálgica, como se
de uma oração celeste se tratasse. E assim ficou em silêncio, orando com a
terra mãe, enquanto ouvia o “cantigas” dar a voz que todos os outros retomavam,
cadenciando o trabalho:
Ai, indo eu ó por ‘i abaixo, em
busca dos meus amores
Ai encontrei um laranjal
cravadinho de flores.
Ai, eu deitei-me à sombra dele, que
não me queimasse o Sol
Ai, acordei de madrugada, ao
cantar do rouxinol
Ai, rouxinol que tão bem cantas,
onde foste a aprender?
Ai, ao palácio da rainha, onde o
rei estava a escrever.
Ai, o rei estava na varanda e a
rainha no quintal,
Ai. atiravam-se um ao outro com
pedrinhas de cristal.
Ai, um atira, o outro atira, não
se puderam acertar
Ai, estavam colhendo laranjas num
formoso laranjal.
Ai, a do fundo era a vintém e a
do meio, a real,
Ai a do cimo d’alto preço que ninguém ‘le podia
chegar.
A sua infância tinha decorrido entre o trabalho do campo e os sonhos
que alguns, “de preço tão alto ninguém podia chegar”.
Desceu os olhos húmidos em direcção ao chão e viu a palma das suas mãos
abertas em prece com dedos curvos e calejados como dois leques difusos sustentando
o peso de um sonho que apontava o seu caminho.
Tinha sido há muitos anos e ainda se lembrava daquela revolta em que
enfrentara o seu pai e tomara a decisão do seu destino: agarraria a liberdade
do seu próprio ser.
“Não, não vou mais trabalhar para si, pai, tenho dezoito anos e, quer
queira ou não, agora vou para a tropa e depois logo se vê…” – Foram as palavras
que me contou, quando, num raro momento a sós e de alguma clarividência no
inexorável caminho para um destino apático, lento e de distanciamento constante
onde o terrível vazio nos vai comendo como a esponjas ao sol ardente. – Também
ele se revoltara.
[Continua]