sexta-feira, 29 de maio de 2015

SEGADORES

por: orlando santos martins

parte ii
Vamos lá começar o dia! – Exclamou o capataz Humberto com um tom de leve autoridade que o seu posto e o companheirismo lhe permitiam.
Vamos a ele com unhas e dentes. – Respondeu um rapaz de estatura mediana, cabelo louro, de olhos grandes e azulados, a quem os colegas chamavam “malhadinhas”, mas cujo verdadeiro nome, como se viria a revelar, era Sérgio.
Como um rebanho de ovelhas, e um pouco mais faladores, seguiram o patrão António, a quem chamavam “Amo”, para a primeira terra de centeio, que era a mais distante da povoação, uma vez que o amo António desejava que, conforme a segada avançasse, se fossem aproximando de casa, gestão de energias, dizia ele.
Ó Jeremias, trazes o pipo do vinho? – Perguntou o capataz.
Claro! – Respondeu este – O Telmo e o Jorge trazem dois garrafões de vinho, já o “ceifas”, – alcunha do Luís – traz o cântaro para a água.
A água é para aguçar as fouces. – Gracejou uma voz despercebida no grupo, mas todos eles sorriram, fixando o olhar atento no amo para descortinar a sua reacção.
A auréola alaranjada que agora cobria os montes, fundindo o horizonte e o céu de um azul cinza num suave degradé, transformara-se, na chegada à serra, num foco brilhante e centrado, vindo de leste, que radiava fios horizontais de luz ofuscando os olhares mais adormecidos.
Chegados aos confins do termo, a Malhada-Velha, este proporcionava uma ilusão de paisagem aérea com uma imensidão de montes a leste, destacados pela fraga da ladeira, e uma imensidão de montanhas a oeste, como ondas revoltas de um mar sem fim.
Uma obscuridade a norte oferecida pela floresta que nos convidava por um carreiro ladeado de urzes, giestas, abetos, pinheiros e outros arbustos, à casa da floresta e, mais lá ao longe, à capela de Nossa Senhora da Serra (ou das Neves) e a sul espraiava-se a serra de Bornes interrompida pela imponente fraga da Anta.
As duas primeiras leiras a ceifar eram as da Malhada-Velha, a de cima e a de baixo, duas courelas rectangulares com aproximadamente 250 por 100 metros e dariam aqui o início à segada.
Ó Humberto, oriente aqui a rapaziada, enquanto eu e mais dois vamos ali ao leiroto de S. Tomé, que é pequeno, e já voltamos. – Ordenou o amo António.
Está bem – Respondeu o capataz que, logo de seguida, com uma voz mais forte como que a transmitir ânimo aos mais desalentados pela fadiga da já longa temporada, gritou: Vamos a isto pessoal que a noite ainda vem longe.
Pois vem, e eu já jantava. – Gracejou o “malhadinhas”.
Anda lá, e manda essa preguiça ladeira abaixo. - Acicatou o Telmo.
E assim começaram a primeira jorna para o novo amo.
****
O fumo saía denso pela chaminé de ferro, encimada por uma cobertura de chapa, que mais parecia um boné militar em forma rectangular, diferindo dos ovais dos guardas florestais, formando, mais acima, novelos de algodão doce que pairavam lentamente à bolina da leve brisa que se fazia sentir, antes de se integrarem e desaparecerem no inebriante azul celeste.
Na lareira, enormes troncos de carvalho, ladeados de urzes e giestas, começavam a lançar devoradoras chamas amareladas, inquietas e relutantes no caminho a seguir.
Ó Ana, chega aqui. Acho que o lume já está a ficar bom, já tem umas boas brasas. – Disse a Maria
Pois já, … já, … onde arranjaste os potes?
Olha, pedi um à Alzira e outro à Lúcia, elas já nos vêm ajudar.
Se calhar púnhamo-nos já a descascar as batatas. – Alvitrou a Maria. – A canhona já está temperada desde ontem. – Concluiu ela.
Vamos nós avançando com as batatas; tiro por aí umas sessenta?
Sim, acho que chegam, Ana.
Depois fazemos o refogado para a canhona, que a sopa de caldo verde é rápida, e ao meio-dia temos o jantar pronto. Continuou a Maria.
A azáfama dentro daquela cozinha era enorme: contavam-se os garfos, retirando os mais enferrujados e com dentes tortos, as facas, as malgas, escolhendo aquelas que estavam menos esfareladas nos rebordos, as panelas de asa, para levarem a sopa e os alguidares para a canhona e batatas.
Bom dia, Maria! Bom dia, Ana! Já estais adiantadas. – Cumprimentou a Lúcia, enquanto entrava. – Está um pouco de fumo aqui na cozinha, não está?
A pequena nuvem de fumo, misturada com o vapor salgado dos potes, que realmente pairava na cozinha, era bem visível, principalmente para quem vinha do exterior, embora esta se tivesse tornado já num incómodo para os olhos lacrimejantes da Maria e da Ana, cujo campo de visão parecia envolto num fino véu de seda.
A Chaminé não está a tirar o fumo lá muito bem, não. – Apercebeu-se a Ana ao olhar em seu redor.
Estava um caldeiro preto pendurado ao lume que continha cascas de batatas, restos de couves e algumas batatas mais pequenas, a que chamavam porqueiras. A Maria apercebeu-se que já fervia há algum tempo e retirou-o do cadeado.
A comida dos porcos já está pronta, vou juntar-lhe um pouco de farelos e vou dar-lhes de comer, para ficarmos descansadas com isto. – Informou a Maria toda atarefada. – Vós continuai a cortar as batatas e a preparar as couves.
Vai lá, vai lá. – Respondeu a Lúcia. - Queres que dê de comer às pitas e aos coelhos?
Obrigada, Lúcia, Estão farelos ali no baixo, para a galinhas, e põe-lhos nas malgas velhas que estão no galinheiro. Para os coelhos leva-lhe umas folhas de olmo que estão dentro de uma saca que fomos ripar ontem.
Então o que queres que eu faça? – Perguntou a Alzira que acabara de subir a escada e tinha ouvido parte da conversa.
Tu podias ir lavando a louça e metendo-a na cesta para levarmos. Sabes, ganha muito pó e gordura aqui no lançadouro. – Disse a Maria, apontando para a quantidade de pratos, talheres e malgas que estavam espalhados na mesa da cozinha.

****
Rondava as dez horas e o sol, na sua grandeza, tinha abraçado todo o espaço, derramando sobre a terra, quentes e luminosos raios de luz.
O António e os dois segadores tinham-se juntado ao restante grupo na Malhada-Velha de baixo, que estava, também ela, com a ceifa quase terminada. Após alguns instantes dirigiram-se, encosta abaixo, até à cova de Vila Seco, deixando na sua passagem pequenas nuvens de pó acastanhado levantadas pelos sapatos e socos que se arrastavam no carreiro da terra já bastante aquecida nessa hora do dia.
Começaram na parte baixa da cova, onde o pão era mais ralo, mas mesmo assim muito grado, como afirmava o António.
Após algumas braçadas, a seara ia-se tornando mais densa, os molhos iam ficando para trás no restolho, como cordeiros a pastar, e pequenos tufos de ervas daninhas e alguns fetos apareciam mais frequentemente enrolados nas espigas, proporcionando uma bicromia, verde e amarela, deveras contrastante.
Ó Jeremias, traz-me aí o gadanho que aqui há muita erva. – Pediu o Sérgio “malhadinhas”.
Está bem, “malhadinhas”, mas eu, daqui a um bocado, também vou precisar.
Realmente, o centeio naquela cova era forte, e nele tinham germinado muitas ervas daninhas.
O António acrescentou: – Jeremias, aproveite e leve o vinho para aquela poça de água, vai refrescar até à hora de almoço.
Está bem. – Respondeu ele.
Ponha-lhe, por cima, umas folhas daqueles fetos junto à poça, que ainda vai refrescar mais. – Concluiu.
Regressando à correnteza ziguezagueante do corte entre centeio e restolho, os segadores distribuíam-se numa linha de frente, tal como uma falange de legião romana, de forma a abranger toda a largura da propriedade.
Nas orlas, não era raro alguns dos segadores lançarem com as foices ríspidas catanadas, amputando enormes braços de silvas que se espraiavam dos silvedos sobranceiros à seara.
Com a manhã já avançada, e o sol dardejando raios cada vez mais quentes, o suor daqueles homens ia caindo gota a gota naquela seca e fértil terra que antes, prenha de vida, alimentara todo o ciclo de crescimento da seara até à maturação do seu fruto.
Os chapéus eram levantados e o lenço, enrolado no pulso, limpava o resto do suor destilado na testa e no pescoço.
Para esquecer a aproximação de algum cansaço o capataz Humberto lançou o repto da canção da manhã, que normalmente era cantada ao desafio.
Vamos lá rapazes, vamos a ela. – Disse o capataz. - Ó Nuno, tu que és o “cantigas”, começa com a moda! – Pouco tempo depois, já todos acertavam com a primeira canção do dia.
O António, que só de ano a ano, e por esta altura, ouvia estas modas, deixou-se ficar paralisado. O nó na garganta, que o enlevava e lhe marejava os olhos, envolveu-lhe o seu passado e presente, numa alegria nostálgica, como se de uma oração celeste se tratasse. E assim ficou em silêncio, orando com a terra mãe, enquanto ouvia o “cantigas” dar a voz que todos os outros retomavam, cadenciando o trabalho:
Ai, indo eu ó por ‘i abaixo, em busca dos meus amores
Ai encontrei um laranjal cravadinho de flores.
Ai, eu deitei-me à sombra dele, que não me queimasse o Sol
Ai, acordei de madrugada, ao cantar do rouxinol

Ai, rouxinol que tão bem cantas, onde foste a aprender?
Ai, ao palácio da rainha, onde o rei estava a escrever.
Ai, o rei estava na varanda e a rainha no quintal,
Ai. atiravam-se um ao outro com pedrinhas de cristal.

Ai, um atira, o outro atira, não se puderam acertar
Ai, estavam colhendo laranjas num formoso laranjal.
Ai, a do fundo era a vintém e a do meio, a real,
Ai  a do cimo d’alto preço que ninguém ‘le podia chegar.

A sua infância tinha decorrido entre o trabalho do campo e os sonhos que alguns, “de preço tão alto ninguém podia chegar”.
Desceu os olhos húmidos em direcção ao chão e viu a palma das suas mãos abertas em prece com dedos curvos e calejados como dois leques difusos sustentando o peso de um sonho que apontava o seu caminho.
Tinha sido há muitos anos e ainda se lembrava daquela revolta em que enfrentara o seu pai e tomara a decisão do seu destino: agarraria a liberdade do seu próprio ser.
“Não, não vou mais trabalhar para si, pai, tenho dezoito anos e, quer queira ou não, agora vou para a tropa e depois logo se vê…” – Foram as palavras que me contou, quando, num raro momento a sós e de alguma clarividência no inexorável caminho para um destino apático, lento e de distanciamento constante onde o terrível vazio nos vai comendo como a esponjas ao sol ardente. – Também ele se revoltara.
[Continua]

segunda-feira, 25 de maio de 2015

SEGADORES

por: orlando santos martins

parte i

Decorriam aqueles meses estivais, julho e agosto, e a ansiedade na colheita dos frutos pulverizava os dias numa azáfama invulgarmente estonteante, contrastando com a aparente calma habitual da aldeia.
Era o caso da colheita dos cereais, o abençoado centeio, que matizava as encostas da serra agreste transmontana em campos mesclados de searas doiradas, tal como lençóis estendidos ao sol.
Bom dia Artur, ainda é cedo para andar a pé. – Exclamou o António.
Bom dia António… madrugar é contigo, isso sim, mas olha que não falta muito e o sol não tarda a raiar por todo o lado.
Já pareces a minha sogra que, mal se levanta de manhã, começa logo a gritar: “levantem-se todos que o sol não tarda a raiar por todo o mundo”! Então? Vais até à serra regar?
Tem que ser, porque às dez já não se pode com o calor.
Vá lá então, e até logo Artur.
Até logo Respondeu de pronto o Artur, avaliando o tempo até então perdido com a inesperada conversa matinal.
Estava uma manhã de bonomia, sem vento nem frio, mas ainda embrulhada numa cor pardacenta e a primeira claridade do dia, vinda do oriente, parecia querer revelar os picos mais elevados da serra, acordando-lhes os seus contornos num imensurável horizonte que rivalizava com muitos mundos de contos de fadas, tanto no estio como nos dias curtos e escuros de inverno.
Naquela manhã, os profundos vales das terras quentes, situadas a sul, despiam-se de um tímido nevoeiro matinal, tal como ondas brancas do mar em maré baixa, na quimera de um oceano longínquo.
Bem… está na hora de acordar a malta para o trabalho sussurrou o António, em tom muito baixo e com os lábios semicerrados, com o cuidado de não acordar qualquer alma que ainda estivesse a dormir.
Meteu a mão ao bolso do casaco pardo e sujo, que se transformara no seu traje habitual da Primavera ao Outono, salvo domingos e dias de festa, que não eram assim tantos, escolheu a chave do ” baixo” da casa, que se situava no piso inferior, da habitação normal da família, usualmente térreo, e tinha como principal destino armazenar os bens de toda a colecta anual, sendo que no verão, antes das colheitas, este, ainda um pouco vazio, servia também de dormitório dos segadores e alguns vendedores que demandavam tais paragens, às quais chamavam “camaratas”.
Os modos mais usuais para trancarem as portas destas divisões, bem como a loja dos animais, eram as fechaduras de metal relativamente fortes e toscas (ferrolhos) ou ancestrais caravelhos, ou “cravelhos”, de madeira, onde a imaginação e a técnica simples e funcional se fundiam, e alguns deles já com espigões de segurança em madeira. Eram as últimas novidades do tio Rafael, um dos últimos carpinteiros da terra que conheci…      
Com leves pancadas no grande portão de duas folhas, já descoloridas da sua tonalidade habitual e meias carcomidas pelo passar dos anos suportando grandes variações térmicas que lentamente as faziam definhar para a arquitectura do seu esqueleto, o António almejou despertar aquela massa de segadores para um longo e penoso dia de trabalho.
 Já estão quase todos prontos. Respondeu o capataz lá de dentro.
 Vamos ao trabalho rapaziada?  Perguntou o António.
Vamos a ele, que quanto mais cedo formos, mais cedo voltamos…
Então despachem-se para o matabicho.  Retorquiu o António, subindo os doze lances da escada de granito para o piso superior, avisando a Maria para a preparação do frugal matabicho.
* * *
tarde do dia anterior, domingo, tinha sido infernal, com temperaturas a atingirem os 30 a 35 graus, e grupos de segadores a reuniam-se à sombra dos grossos e altos Olmos, os dois pilares do prado da aldeia, que nesta altura ainda apresentavam uma frondosa folhagem verde amarelada, lançando alguma frescura na leve aragem que os ramos e as folhas abraçavam num rumorejar distante e passageiro, convidando ao repouso destes ceifeiros que, amiúde, se iam refrescando na fonte do largo, na qual, de duas torneiras diametralmente colocadas num pedestal central, brotavam dois fios de água fresca e límpida que, recolhida num poço rectangular em betão, de aproximadamente dois metros por metro e meio com um metro de altura, servia também para satisfazer a sofreguidão dos animais. Outros, os mais sociais, passavam o tempo metendo conversa de circunstância nas duas tabernas do prado, aproveitando para provarem um ou dois copos de vinho como que a testarem as suas qualidades, dissertando, por vezes, sobre a sua qualidade e origens.

O António dirigiu-se a um grupo mais compacto que se destacava e perguntou ao que julgou ser o porta-voz, capataz do grupo:
 Já tendes patrão?
 Não temos, não Senhor, chegámos há pouco tempo e ainda nos estamos a refrescar…
 E quantos sois vós, Senhor…?
 Eu chamo-me Humberto, deu com a pessoa certa porque sou o capataz e somos os dez grandes homens de que precisa.
 Donde são vossemecês?
 Somos do Brinço, não é longe… Retorquiu o capataz com algum orgulho das suas origens e num tom timidamente sobranceiro.
 E a jeira… quanto é que estão a pedir este ano, Sr. Humberto?
 Este ano estamos a levar dois e quinhentos (2$50) ao dia, e é pegar ou largar, já temos alguns patrões também interessados.
Numa aritmética simples, o António fez mentalmente os cálculos para cinco dias de segada, o que lhe iria acarretar uma despesa em dinheiro de cento e vinte e cinco escudos, fora os gastos com a racionada alimentação e a precária dormida.

 É caro, mas mesmo assim aceito a vossa camarata. Venham comigo ver a casa e, logo à noite, a minha Maria, servir-vos-á a ceia.  Rematou o António todo satisfeito com a primeira etapa deste hercúleo processo ultrapassada.
Como soldados, numa fila desalinhada a caminho da messe, lá seguiram todos, atrás do António, até ao piso térreo da casa.
A primeira tarefa que os segadores executaram foi o arrumo dos seus pertences, a recolha de um feixe de palha no que restava dos medeiros do ano anterior, que lhes iria servir de colchão juntamente com algumas velhas mantas de tiras de farrapos e alguns cobertores de lã mais usados que havia em casa, preludiando pelo menos uma boa ceia, dado que não se pode ter tudo do melhor.
* * *
  O Artur tinha razão, a cada momento que passava, os contornos da serra tornavam-se ainda mais definidos e começavam a aparecer vultos pardos e formas ainda difusas de casas e objectos indefinidos pelo lusco- fusco.
Foram subindo para o primeiro andar da casa, cumprimentavam a nova patroa, que os recebia toda atarefada, de volta com o lume, com um “bom dia” e um simples, mas acolhedor, “vão-se sentando, enquanto trato dos potes e do lume, ajudada aqui pela amiga Ana”, que era sempre muito pontual, de modo a não os atrasar para o seu primeiro dia de segada.
 Ana, ajuda-me aqui, vamos já começar com o cacau e sopas.  Lembrou a Maria à sua amiga Ana.
 Claro – respondeu a Ana – assim ficam mais quentinhos e dá-lhes para acordar melhor.
 Por falar em dormir: dormiram todos bem?  Perguntou a Maria.
 Maravilhosamente bem – respondeu o capataz Humberto, secundado por todos os outros, alguns dos quais com um simples e disfarçado aceno de cabeça.
O pão de centeio já estava partido em pedaços e distribuído pela longa mesa que acompanhava o escano escurecido de fuligem depositada pelo fumo denso da lareira em dias de invernia que, nessas alturas, mais parecia um nevoeiro. Nele, ainda assim, notavam-se duas manchas em forma de lágrimas, ainda mais negras e lustrosas, encimadas por dois pregos que serviam de suporte às candeias de azeite e lampiões a petróleo que serviam de iluminação.
Havia dois bancos corridos, um de cada lado da mesa rectangular e, caso não bastassem, recorria-se a uma cadeira ou a um banco solitário.
Um dos segadores mais jovens, o Ramiro, chegou a alvitrar que por ele até comia de pé.   
A mesa foi-se compondo e, aos poucos, foram chegando o queijo, meticulosamente partido, alguns rojões acabados de fazer, marmelada caseira, ovos mexidos com ervilhas, pescada frita envolta em ovo e pão ralado, peixe transportado numa mula por um vendedor que no dia anterior trocara quatro quilos de pescada por cesta e meia de batatas, e, por fim, cacau quentinho feito à base de chocolate culinário.
Quem precisasse de alguma ajuda para o caminho ou acordar da noite mal dormida por estranhar os aposentos, podia ainda deleitar-se com um ou dois copos de aguardente, que acabava por lhes fazer subir a adrenalina e a passageira vontade de trabalhar.
O sol ainda estava a espreguiçar-se para afastar o sono, o caminho estava envolto na penumbra matinal e os segadores, já mais retemperados, regressaram ao piso térreo do baixo onde tinham pernoitado, para se equiparem com os seus chapéus de palha, o colete de variados bolsos, a seitoura foice –, com a respectiva pedra de afiar pendurada numa pequena bolsa de cabedal presa à cintura e os dedais, também chamados dedaleiras.
 As dedaleiras, ou dedais, pendurados numa tira mais longa de cabedal, a qual se enrolava ao pulso para efeitos de segurança, normalmente usadas na mão esquerda, dado a maioria dos segadores ser destro, serviam para evitar cortes nos três dedos da mão que mais perto da linha de corte trabalhavam, ficando o indicador e o polegar livres para arrebanhar pequenos tufos de centeio.
Estes tufos, separados da seara, seriam degolados rasteiros contribuindo assim, aos poucos e com repetidas garfadas, para a constituição dos molhos finais que eram amarrados com uma cinta de palha mais comprida, que no seu enlace final era torcida, ficando a parte mais grossa, devido às espigas, a funcionar como uma presilha em forma de botão floral.

domingo, 17 de maio de 2015

Mês de Maio

Em Rebordainhos não há Maio sem a comemoração à Senhora de Fátima. E hoje aconteceu mais uma vez essa celebração.


A bem da verdade, as comemorações iniciaram-se já, e diariamente, desde o primeiro dia do mês. O de ontem foi especial pois rezou-se enquanto a procissão da velas acontecia e, pelo segundo ano saiu do adro e, pela rua principal foi até ao prado e daí regressou à igreja.

Hoje foi o dia de se celebrar a missa em honra da Senhora de Fátima e, desta feita, a procissão fez o seu percurso habitual à volta do povo.

Porque a Sra de Fátima tem um significado para as pessoas da nossa aldeia, ficam umas imagens que espero, ajudem a mitigar a saudade.












Não posso deixar de agradecer aos srs. Padres Manuel e José Luís pela beleza que imprimiram ao terço de ontem e à missa de hoje.
Um agradecimento também a todos os que amavelmente me ajudaram .

domingo, 10 de maio de 2015

MÁSCARA IBÉRICA

Há já dez nos que os nossos caretos descem à capital e, de ano para ano, cresce a assistência, mostrando que as pessoas gostam de ver aquilo que lhes é estranho, mas que as chama.

Disse os nossos caretos, mas, na verdade, trata-se do "Festival da Máscara Ibérica", que já foi só ibérica, mas agora congrega mascarados de muitos países europeus. E não só mascarados: afinal, os pauliteiros também desfilam pelas ruas da Baixa Pombalina. Vale sempre a pena! Aqui fica uma amostra da enorme chocalhada de sábado, dia 9 de Maio.









terça-feira, 5 de maio de 2015

ARES DA SERRA

DUAS C’ROAS DE PREGOS

POR: ANTÓNIO AUGUSTO FERNANDES


Ela surgia por detrás do grande penedo que fechava o largo a nascente, alta e negra, Prado fora. De negro vestida, a saia comprida mais que a conta, quase até aos pés, como a das ciganas, o lenço negro atado no alto do cocoruto, com duas orelhas de gato espichadas para o céu. Passava pelo tanque de duas bicas onde corria a água que vinha lá de cima do Lombo d’à Igreja. Era a tia Fecisma; (só muito mais tarde descobri que o nome deveria ser Felicíssima), a avó do Orlando (Sr. Engenheiro, como tem passado?). A passos miúdos entrava na taberna e com voz dominiosa:

─ Rapaz, dá-me aí duas c’roas de pregos.

A pedir uma coroa ou duas de pregos só me lembrava do tio Francisco Chicheiro que, nos tempos livres que lhe deixava o exercício da profissão ─ e eram muitos ─ se dedicava às artes da marcenaria (e com jeito universalmente reconhecido, diga-se em abono da verdade; ─ é p’ra não andar sempre a comprar, dizia ele com um sentido de humor muito peculiar).

─ Ó tia Fecisma, os pregos são de estuque ou tabuais?
─ Não te faças burro, rapaz!

Eu bem queria não me fazer burro, mas não atinava com a encomenda, pois era a primeira vez que lhe aviava a requisição. Mas lá atinei, depois de com paciência (que não era o seu forte) me ter iniciado na compreensão da metáfora.

Pois é verdade: a tia Fecisma foi a primeira feminista que eu conheci a lutar pela igualdade de direitos das mulheres. E neste caso era o direito a fumar como um homem. E logo dos fortes. Fortes não se refere aos homens, claro, mas sim aos cigarros. “Pregos” era, pois, o nome de código da tia Fecisma para, numa sociedade machista, pedir cigarros dos fortes, também conhecidos por mata-ratos, que eram aqueles Kentucky que vinham em macinhos de 10, atados por uma cinta muito mal enjorcada, e eles, os cigarros, mal ajeitados também, que era para o fumador depois os enrolar a seu gosto. Esse gesto de enrolar o cigarro fazia parte do ritual do fumador a sério e antecipava-lhe, pelo manuseio do tabaco, o prazer das primeiras inalações.

Para os nascidos já sob o império dos dinheiros europeus, um escudo (ou duas coroas, ou dez tostões, tanto faz) equivaliam, em dinheiros europeus, a meio cêntimo e davam direito a um maço de dez cigarros mais dois, pois, magros como eram esses tempos, também se vendiam à unidade: a tostão cada um. Para os mais finos ou de mais posses havia ainda os Três Vintes, os Provisórios, os Definitivos… mas era com aqueles comprados à unidade que os adolescentes se estreavam nas primeiras chupadelas às escondidas. Porque isso de fumar na presença dos mais velhos só depois de despontar o bigode e não sem antes pedir licença.


Isto aqui fica para ensinança dos vindouros, já que vai escasseando a geração que ainda percebe de pregos, c’roas e tostões e bebia a água fresca da Fonte Grande nela mergulhando os beiços.