domingo, 12 de fevereiro de 2017

A INDÚSTRIA DO CALÇADO EM REBORDAÍNHOS


Por: ORLANDO MARTINS



- Oh pai, pode-me mandar fazer uns socos?
Estávamos em Outubro, as castanhas eram agora a principal preocupação, e o frio que se fazia sentir, sobretudo pela manhã, já auspiciava um rigoroso inverno.
Para finais de Novembro, princípios de Dezembro, deviam cair os primeiros flocos de neve.
 As longínquas e saudosas recordações que tenho dos invernos eram o Natal, com os bonequinhos do presépio iluminado por uns cotos de vela estrategicamente espaçados naquele musgo estendido que me transportava para quimeras de felicidade, e, claro, a neve… tudo branco… a paz e a pureza pareciam rondar os nossos corações como bandos de pardais
- Oh Maria, o rapaz quer uns socos, se calhar aproveito e mando fazer também umas botas para mim que estas já não chegam às sementeiras.
- Tu é que sabes, mas lembra-te que os pés dele agora estão a crescer, manda-lhos fazer um pouco maiores.
- Olha filho, tu vais ao Tiu Grilo e dizes-lhe para tos fazer abonados que eu vou ao tiu Carlos Sapateiro para me fazer uns sapatos para mim.
Todo radiante lá fui eu, canteira acima, estugando o passo e ensaiando um assobio que, como sabem, não passavam de tentativas frustradas, e que ia alternando com um refrão de lá…lá laralá…lá. Enfim, ia feliz.
Contornada a poça do covelo dirigi-me à loja do tiu Grilo, um homem de tez queimada na face, onde as rugas denunciavam a sua idade e as amarguras da vida, cabelo grisalho e estatura mediana.
A loja do tiu Grilo situava-se ao lado da forja, no início do caminho que conduzia à Torre Queimada e ao Lameirão, onde se podiam vislumbrar raspas de madeira, talvez de alguns tamancos já em fase mais avançada de fabrico.
- Oh tiu Grilo posso entrar?
- Que vens fazer? Foi o teu pai que te mandou cá?
- Foi sim senhor, era pra ver se me fazia uns socos, mas um pouco abonados porque estou a crescer.
- Atão entra para te tirar as medidas. – Convidou o tiu Grilo entrando no seu estaminé de janela minúscula e piso térreo.
O artesão coloca um bocado de papelão de um ocre deslavado, restos de uma caixa de ajuda humanitária vinda da América, e que na altura servia para transporte de roupas, leite em pó, queijo e outras surpresas que, de vez em quando, chegavam à aldeia em camionetas do Estado Português, e eram distribuídas à população no Prado, em frente à garagem do Padre João, e diz-me sem demoras, como se o seu ofício estivesse em fase plena de fabrico e não se compadecesse com qualquer perda de tempo:
- Descalça-te e põe o pé aqui em cima para eu fazer o risco.
- Não se esqueça de os fazer um pouco grandes que têm que dar para o ano que vem e que durem muito. – Relembrava eu ao artífice, sabendo que os próximos socos só viriam para as calendas gregas.
- Fica descansado rapaz que tu vais crescer e os socos vão ainda andar por cá, nem que mais não seja, nos pés teus irmãos mais novos.
Fiquei descansado com a resposta que para mim foi uma garantia de qualidade e seria um descanso, pelo menos por dois anos, e enquanto os pés lá coubessem, para os meus pais.
Com um pau de ponta queimada em carvão, como lápis de grafite, lá riscou o perfil da planta do pé onde eram perceptíveis os contornos dos dedos e a silhueta côncava do calcanhar. Pareciam-me bem as dimensões e até me parecia um pé engraçado.
- Posso vir buscá-los amanhã? –Perguntei-lhe.
- Oh rapaz, anda aqui fora. – Diz-me ele conduzindo-me a um montículo de paus que mais se pareciam com “estrafugueiros” para o lume.
- Isto são paus de amieiro, - Continuou - tenho que os escavar com a machada, moldá-los com o formão e isto tudo só para fazer os rastos, fora as solas que ainda tenho que as pôr de molho. Pori para a semana, mas vai passando por cá para irmos vendo as medidas.
Conformado, mas não desiludido, encolhi os ombros em sinal de uma compreensão resignada e imaginei-me de socos calçados… novinhos,… o Tito, meu vizinho, ia ver…, lá isso ia…, até tinha pedido que me pusesse brochas no rasto em vez de borracha… iam fazer barulho ao andar… assim as pessoas notavam que tinha socos novos.
E a neve? Ah,… aí é que seria engraçado,… a neve a pegar-se às brochas… fazendo montões agarrados ao calcanhar e na frente que eu havia de sacudir batendo de lado com os socos na esquina da escaleira antes de entrar em casa.
 Só tinha que ter cuidado quando pisasse as pedras, que as brochas, ao contrário das borrachas em forma de ferradura, eram muito escorregadias. Mas valia o risco.
E ao fim de uma semana lá me dirigi ao tiu Grilo para trazer os socos.
- Depois o meu pai faz contas consigo, está bem Senhor Graciano?
- Eu depois falo com ele, rapaz, e não te esqueças de os untar bem untados, “esfregaze-os” todos com sebo, principalmente na biqueira, na gáspea, no cardaço, na lingueta e viras, que é por onde entra mais água, depois aquece-os ao lume para o sebo derreter e entranhar-se na pele, e bais ber que os pés ficam sempre sequinhos, mesmo com neve.
Não muito longe deste estabelecimento, no largo do Pelourinho, a norte da Igreja matriz, ficava a loja do tiu Carlos Sapateiro, um homem brincalhão, alto, com cabelo ralo, sempre com ar sorridente, com a comissura e o lóbulo do lado direito do lábio sempre descaído, não sei se devido a ter sempre entre dentes o fio de estopa com que cosia os sapatos, ou se era devido a qualquer problema que tivera no queixo onde apresentava um sinal, que parecia de queimadura, bastante pronunciado.
Aqui faziam-se sapatos de cabedal, botas para o trabalho rural como se chamavam. A loja era no piso térreo com a porta em frente para a fonte do Pelourinho.
Da entrada da casa, a norte, por volta do meio-dia, a tia Denérida, mulher amável e que acolhia com doçura todas as crianças, gritava-lhe para ir jantar e informava-o que já tinha tratado das galinhas enjauladas em rede de arame do galinheiro no caminho em direcção à canteira.
Era ali que o tiu Carlos passava o dia com o seu avental e suspensórios de cabedal cosendo com fios de estopa, e com a auxílio das sovelas, as solas retiradas de uma pia de madeira com água acastanhada dos banhos prolongados de todo o cabedal para o tornar maleável à moldagem das formas dos sapatos.
Nós, um grupo de ganapos em períodos pós-escolar, dos quais destaco o Tito, o Pêras, o Chêdre o Mário da Celeste e outros que por arrasto nos acompanhavam, fazíamos correrias à volta do Pelourinho e, ao passar em frente à sua porta, cantávamos:
“Sapateiro… Remendeiro… Cada ponto dá seu peido…”
E esta ladainha ia-se repetindo dia após dia, correndo ao passar junto a ele que muitas vezes nos esperava com um copo de alumínio cheio da água choca acastanhada da pia de amolecer as peles e nos atirava à cara ficando a rir-se com o seu lábio ainda mais descaído, limpando as lágrimas de riso que lhe afloravam aos olhos cansados.
Por vezes parávamos e observávamo-lo com admiração pela sua dedicação ao ofício que, diga-se, porque é pura verdade, produzia sapatos de excelente qualidade e conforto, “assentam como uma luva”, costumava dizer o meu pai.
Com esta profissão criou, que eu conheça, três magníficos filhos, o Duarte, a Maria, que emigrou para Espanha, e o Fernando que era da nossa idade e também alinhava connosco.
Certo dia de calmaria nas brincadeiras, estando o grupo sentado no tanque do Pelourinho, o tiu Carlos acerca-se da porta do estabelecimento e diz-nos:
- Oh garotos, binde cá que tenho aqui uns caramelos que a minha Maria me trouxe de Espanha, são doces, mas eu já não tenho dentes para os comer.
O Tito olha para mim e diz-me com ar desconfiado:
- Será que não está a brincar?... Mas não deve estar, que na semana passada a Maria esteve cá. Bamos lá garotos?
- Bamos…- Respondemos todos.
E, pacificamente, ele foi-nos distribuindo pequenos pedaços castanhos irregulares que mais pareciam pequenas pedras, mas, talvez os caramelos em Espanha fossem assim, pensámos.
Apercebendo-se da desconfiança que apresentávamos, o tiu Carlos garantiu-nos que eram caramelos dos bons, vendidos avulso em Espanha. E lá arrancámos nós com a guloseima para os degraus do Pelourinho para a degustar.
O Mário da Celeste foi o primeiro a mandar uma trincada no caramelo dele e a cara com que olhou para nós deixou-nos apreensivos.
Um a um provámos a nossa parte e constatámos que aqueles caramelos não eram mais que pedaços de pez (resina) para passar nos fios de estopa para coser os sapatos! Indignados e enganados, e como que lançando um grito de guerra, entoámos sem parar:
“Sapateiro remendeiro cada ponto dá sei peido….”
“Sapateiro aldrabão é trafulha e aldrabão…”
“Sapateiro remendeiro cada ponto dá seu peido…”
“Sapateiro aldrabão é trafulha e aldrabão…”
E desatámos a correr em direcção ao prado para nova brincadeira, que nesta tínhamos caído nós, que o diga o tiu Carlos que nos observava da porta a rir-se com gargalhadas despregadas de tal forma que até o avental parecia abanar, e gritava-nos:
- Quando quiseis mais caramelos vinde cá que ainda há mais.

Moral da história: “Os caramelos espanhóis não prestam”



domingo, 5 de fevereiro de 2017

SEM TÍTULO




Vejo-o-me assim
e nem me importa que me estranhem a construção
outros o fizeram antes de mim – e mais bem feito –
outros hão-de após mim soprar o pó das convenções restantes

Meus neurónios são livros publicados
livros que ainda não foram sonhados
livros vetados
livros ansiados
livros esquecidos

L I V R O S

Palavras escritas, frases desenhadas
que importa se contendem ou convergem
se são elas o tecido das minhas sinapses-ideias?

Não me zanguem a paciência com a pequenez
porque não tenho paciência – não sou de paciência
e renego a vilania
Não existe fel de peixe de Tobias
capaz de fazer-me ver aquilo para que não quero olhar
nem sequer sou o pai de Tobias
e a infâmia desmerece a providência de mim.

Des-tempo, des-espaço, des-paciência
oclusão
é tudo quanto reservo
na minha biblioteca-cérebro
para quem aspira a ser lombada
e nem chega a ser um nome.