domingo, 29 de março de 2009

ARES DA SERRA


IX - A VISITA

por
António Augusto Fernandes

Decididamente, com Deus não queria grandes confianças. Ainda que morasse a dois passos do campanário, desde que o Criador lhe levara a mulher na flor da juventude, finada em trabalhos de parto e deixando-lhe nos braços o recém-nascido, o tio Manuel Leque cortara relações com tal Vizinho. Não de todo, mas eram relações pouco mais que diplomáticas: uma missa por ano no aniversário da defunta era quanto bonda para largar nas mãos do abade a paga de uma jorna e apaziguar uns resquícios de devoção que ainda guardava bem lá no fundo. E assim se dava por quite das suas obrigações para com Deus.

Muito escasso de mimos e afagos, o Manuel Leque lá foi criando o crianço no passadio frugal de quem ganhava, quando a havia, jorna de cinco mil réis e colhia trinta alqueires de centeio, meia dúzia de sacas de batatas mais duas abóboras e uns folharecos de couve que os coelhos por favor lhe deixavam medrar numa hortita lá para casa do diabo mais velho, em Vale-de-Miúça.

Ficara para a crónica aldeã a rigidez pedagógica do viúvo cujo rigor envergonharia os moles pedagogos de Esparta. Nas manhãs agrestes do Inverno serrano, o codo enrijava as ruas enlameadas como se fossem empedradas a lajes de granito, e os socos ferrados de brocha grossa ressoavam no ar gélido e cintilante. Não era tal pormenor que iria impedir o Tio Manuel Leque de proceder às abluções matinais com o mesmo despacho de todos os dias: enganchava o filhote debaixo do sovaco, saía à rua, quebrava o gelo da agueira que lhe passava à porta a caminho da Ribeirinha e com umas fronças de giesta dealbava o rabito arroxeado de frio das imundícies nocturnas.

Ao arrepio, porém, das teorias pedagógicas hodiernas, tal secura nos processos educativos paternos não gerou facínora revoltado nem cidadão enredado em complexos. O rapazito alto e magro, de olhito azul como a flor do linho, deu num dos mais rijos e reinadios mocetões de Rebordainhos. O Mário (Leque como o pai), depois de ter engrolado a instrução primária, a partir dos catorze anos já governava a vida arranchando com o progenitor: de enxada ou picareta ao ombro atravessava o largo do Prado mais lépido que cotovia, a caminho da jeira a ganhar, sempre com a salvação para quem passasse e o piropo pronto para rapariga que lhe alumiasse a manhã. Veio depois a vida militar que lhe alargou os horizontes do mundo e da ambição, empurrando-o para Lisboa, para África, para o mundo. E a partir de então, sozinho, mais o tio Leque se dobrou para o chão, mais se enovelou no casulo da sua solidão, desesperançado de Deus e dos homens.

Era segunda-feira de uma Páscoa que nesse ano viera muito temporã. Ainda pelas manhãs límpidas soprava dos picos nevados da Sanábria, fino e cortante como lâminas, o cieiro que deixava as bochechas da pequenada feitas de maçã camoesa e gretava os lábios mimosos das moças que acudiam ao desaire com a mezinha de um tudo-nada de unto da salgadeira ou um pingo de azeite.

Usança antiga consagrara essa segunda como um feriado suplementar destinado à Visita Pascal. Desde que o sol rompia, o sino grande, em entoação de grande pontifical, entrava em despique com a sineta, mais galreira que comadres a desfiar o rosário da vizinhança no lavadouro, de voz em falsete desde que a rapaziada, há que anos! a rachara em celebração esfuziante da noite de aleluia. E a fabriqueira que não havia maneira de mandar consertar! O repique acalorado anunciava pelas quebradas da serra que andava o Senhor fora, em visita ao seu rebanho para lhes trazer a boa nova da Sua Ressurreição. E toda a aldeia se deixava envolver por esse reconfortante anúncio de que a vida é eterna e a morte breve passagem por este vale de lágrimas. E esvaía-se de vez o negrume da Sexta-feira santa, o dia mais negro do ano em que a garridice dos inícios de Primavera se amodorrava numa poalha de tristeza. Para o rapazio era pecado o jogar ao pião e até mesmo rir ou assobiar. As mulheres andavam embiocadas porque não se penteavam para não arrepelar a cabeleira do Senhor judiado na sua via-sacra, nem iam à horta porque no horto tinha Ele padecido terríveis agonias. Aos homens era defeso irem para a taberna bebericar com os amigos e bater o chincalhão, porque ao chincalhão tinham os soldados romanos jogado a túnica do Senhor, ou até cavar a terra porque na terra estava Ele sepultado. Assim sendo, eles por ali erravam como almas penadas sem saberem que fazer do dia santo. A vida do quotidiano, embora quase nunca fosse de rosas, só no Sábado de Aleluia reentrava nos eixos com o anúncio da grande nova, quando Pedro e Maria Madalena garantiam repetidamente a todos os incréus que Ele ressuscitara e para sempre ressuscitara...

E na Segunda de Páscoa era o Próprio Cristo que ia confirmar a notícia de porta em porta para todo o povo: por isso, folar sobre a mesa, pipinho aberto e as primeiras fatiazinhas daquele presunto novo marmoreado de listas brancas e carmesim – eram oferta obrigatória para quem passasse, vizinho ou forasteiro.

Pelos tortuosos caminhos da aldeia, lastrados de verdura, o rapazito da campainha, lépido, muito corado e todo pimpão na sua opa vermelha, não se poupava e agitava-a freneticamente, como se do seu arreganho dependesse a validade do anúncio pascal. E o repique alvissareiro do sino grande e da sineta rachada anunciava aos quatro ventos, da Cabecinha à Portela, do Outeiro ao Covelo, a aproximação do rancho alegre e tagarela da Visita, agregado em torno da cruz alçada onde o Cristo, embora crucificado, tinha também um ar festivo, engrinaldado do amarelo arrepiado das primeiras pascoelas que era preciso ir colher lá para os fundões da Ribeira dos Pereiros. Cada família, endomingada como mandava a cartilha, aguardava o préstito à porta de casa. O P. João, baixote e redondo como um peão de xadrez, empacotado nas rendas da sobrepeliz, a todos orvalhava largamente de água benta, enquanto lançava na manhã clara o seu latim festivo: pax huic domui et omnibus habitantibus in ea! O Cristo, muito familiar, entrava pela casa de cada um como parente há muito aguardado. E cada um, à vez, flectindo o joelho, beijava-Lhe os divinos pés (os pés, que na face O beijara Judas, o traidor!). Depois vinham as perguntas rituais sobre a saúde, os ausentes, os renovos... um padre-nosso cabisbaixo se alguém se finara ao longo desse ano lá em casa, e o convite muito transmontano para uma dentadita de pão-de-ló e um cálice de vinho fino.

Era assim que mandava a tradição: sobre o linho branco da mesa da sala, o folar – aquele mimo pascal de pão louro abundante em recheio de salpicão e presunto − o pão-de-ló, a garrafa de vinho fino e os económicos (uns amorosos bolecos muito rudimentares, de farinha e ovos, rijos que nem castanhas piladas. Aos pitéus presidia um crucifixo plantado num copo cogulado de grão e ladeado de dois tocos de vela em idênticas peanhas. P. João apenas de longe em longe, em casa mais íntima, lá molhava os beiços e debicava uma migalhita de pão-de-ló, cauteloso, não fosse o diabo tecê-las, porque já mais que uma vez, noutros anos, as libações sucessivas lhe tinham entorpecido as pernas e entaramelado o latim antes de encerrar o circuito da aldeia. Os da cruz e da caldeirinha, homens de outro sustento e resistência, afeitos à enxada e à rabiça do arado e de dentes mais trituradores que cilindro de malhadeira, não se faziam muito rogados e afinfavam-lhe de rijo. Ao fim e ao cabo, era dia de festa e um que outro tropeção nas pedras da calçada não escandalizava o Cristo que, alcandorado em sua cruz florida, esboçava sobre os fregueses esparsos pelas quelhas um sorriso muito compreensivo e pascal. Lá fora, porque não cabiam todos em casa, aguardava a ranchada gárrula de tudo quanto era mordomo de santo que tivesse festa na roda do ano, aguardando a esmola para o santo e as amêndoas para o mordomo.
Pois nessa segunda de Páscoa, ao fim de sessenta anos de empertigada recusa, o Tio Manuel Leque também franqueava a sua porta à visita pascal. E fizera-o saber pela braçada de juncos lançada em frente da soleira. Sozinho (o filho embarcara há que vidas!), ligeiramente pálido, hirto na jaqueta de cotim puído e na camisa domingueira de colarinho excessivo para as pelancas magras do pescoço, o seu perfil miúdo desenhava-se no traço da porta – consciente das suas obrigações de anfitrião. Na quelha que à porta do Sr. Professor deixava a rua principal em direcção ao adro, o casinhoto, entaliscado na correnteza das casas de granito, escuro como tumba, constava de uma cozinha sumária que abria para a rua e do quartito do catre de tábuas que, do lado oposto, por um janelo breve, olhava para as lonjuras azuladas da serra de Bornes.

Trepando o calhau esconso que fazia de único degrau, o Padre entrou com o seu latim pascal e logo a seguir entrou o Cristo na sua cruz. O tio Leque, um pouco trémulo, encostou os lábios ressequidos aos pés do seu divino Vizinho com quem tanto tempo andara desavindo. Cravou n’Ele, ligeiramente de soslaio, o olhito cinzento, azougueiro e desconfiado. Pronto! O mais difícil já estava! Depois, num gesto tímido de quem não está para grandes intimidades logo à primeira visita:

− Se são servidos...

E apontava para o centro da cozinha minúscula do tugúrio minúsculo, negra do fumo de gerações: sobre a única cadeira da casa, recoberta por toalhita de estopa, um imenso pão centeeiro acolitado pela garrafita do tinto e a peliqueira de Caçarelhos. O Padre agradeceu, o sacristão agradeceu... e saíram. O Cristo, na sua cruz enfeitada do amarelo das pascoelas, permaneceu mudo, mas o Tio Leque percebeu, lá na sua, que Ele estava com vontade de aceitar o convite e que as pazes estavam feitas.

Tanto assim que, três meses volvidos, na altura em que os segadores lançavam as seitouras aos centeios maduros, Ele lhe mandou recado para ir ao encontro da sua Aurora que há sessenta anos se ausentara do lar.

______
Nota: a fotografia da janela do tio Leque foi enviada pelo António

domingo, 22 de março de 2009

ECOS DO MEU SENTIR


IV - VOLTEMOS À NOSSA ESCOLA PRIMÁRIA
por

FILINTO MARTINS

Uma escola reflecte o passado, o presente e o futuro.



O passado está patente na plêiade de antigos alunos que mesmo criados com carolos de centeio, carne gorda “rijada” e torradas de pão de quinze dias com unto, olharam mais além. O presente está neste blogue de Rebordainhos de que nem todas as aldeias, quase desertas, se podem orgulhar. O futuro que só a Deus pertence, está na semente que todos vamos lançando aqui e acolá, mesmo que o terreno tenha fragas, urzes, giestas… estará sempre como recordação naquela escola branca, com seis janelas, linda, grande… plantada no lugar mais arejado da aldeia, isolada… noutras aldeias seria ali o cemitério… o culto dos vivos dará sempre mais frutos que o dos mortos, merecedores do nosso respeito e admiração.

Suponho que tive sorte, nascendo a 3 de Outubro para a 7 entrar para a escola, como ditava o calendário de então. Agora começa um mês antes e termina um mês depois… Provavelmente porque já não é preciso sacudir a rama na apanha das batatas, virar o feno, ir com as vacas… novas tecnologias. Ainda bem, sem a mínima ironia. Não é preciso aprender de cor os rios e os seus afluentes e muito menos as linhas dos extintos caminhos-de-ferro. Basta consultar a NET e até horários e preços estão disponíveis.

7 de Outubro de 1955 – o sino da igreja nunca mais tocava… já estávamos à porta da Escola, onde nunca tinha entrado, quando umas leves badaladas ecoaram naquela manhã, efeito das mãos da Sara, que puxara o cadeado do sino, mais tarde, o mesmo, serviria para tocar a rebate e ir para a enxertia, no dizer do tio Leque… É claro que se tivesse sido duzentos anos antes, pensar-se-ia que era o terramoto de Lisboa.

Entrámos numa sala muito grande, com carteiras compridas, janelas muito amplas, um quadro negro, uma braseira, uma mesa, uma cadeira, alguns livros a um canto. Ao fundo, encostados à parede, dois armários onde se destacavam um carro de bois com “engarelas”, um arado, uma grade, tudo em madeira… que bonitos eram… ai se nós pudéssemos mexer neles!

Após esta primeira descoberta, eis que surge o senhor professor, Joaquim Francisco Ribom. Ninguém na aldeia ousava pronunciar o seu nome, mas o seu “ofício – Senhor Professor”. E quando passava a caminho da escola, de casa ou da Igreja, todo o ancião descobria a cabeça e com uma leve vénia, dizia: “Bom dia, Senhor Professor”, qual biblioteca ambulante.

Aquela figura esguia, alta, cabelo branco, olhos perscrutadores, fato e gravata, porte aristocrático, parecia o epítome do conservadorismo agressivo da época. Tirava um lenço branco do bolso das calças vincadas e com ele limpava a saliva dos cantos da boca. Com um olhar fixo e fulminante, acomodou-nos nas longas carteiras. Silêncio sepulcral.

Estava ansioso, acho que sem candeia no nariz, em abrir a sacola de pano de serapilheira, tirar o livro único e a pedra ainda limpinha, que tinha comprado na taberna do tio Trocho. Naquele tempo não distinguia uma única letra, a minha pré-primária foi ir com as vacas, andar aos pássaros, ir aos guiços para a lareira… Fiquei imenso tempo à espera… não apareceu nada escrito na minha lousa, todavia regressei a casa todo radiante porque já vinha da escola! Aquele livro com a águia, a égua, a igreja, o ovo, as uvas… decerto folheado vezes sem conta, sem identificar o significante, mas era aluno…

Os dias sucediam-se aos dias.

Já licenciado em Psicologia, o meu ego saiu muitas vezes recompensado com as palavras doces que a senhora Dona Maria, que visitava sempre que ia a Rebordainhos, me dizia passeando no seu quintal, junto a uma biquinha… um relógio de sol… confidências! “Olha, Filintão, uma vez a aluna… estava a aprender a juntar sílabas obtendo a palavra final, associada a uma imagem. Eu dizia-lhe: pa – pa e to - to. Ora lê. Resposta pronta: parreco.” Hoje digo eu: excelente resposta. Noutra ocasião a mesma aluna, tentando juntar a + pi + to, respondeu: subiote. O significante era o que menos interessava, todavia o significado era fruto duma socialização primária, ainda sem o Magalhães.

Estas recordações com a senhora Dona Maria e o senhor professor, tendo como testemunha o senhor Carlos, eram como o perfume das peras e maçãs que tão bem guardava na memória, na alcofa da sala de jantar da sua casa junto à Igreja. Voltaremos lá noutra ocasião.

O tratamento “Filintão”, que eu achava ser depreciativo e sinónimo de burro, naquela época, hoje recordo-o com carinho e saudade, pois o primeiro brinquedo que tive foram eles que mo ofereceram – uma gaita de foles - que a minha mãe guardava com carinho e especial atenção, dizendo sempre: “Foram os senhores professores e o senhor Carlos que te ofereceram”.

O Senhor Carlos, não sendo professor, era uma pessoa muito querida e respeitada. Estou a vê-lo passar para Vale-das-Vinhas, com um sachinho ao ombro e saudando tudo e todos. Jogando à sueca, ao “xincalhão”, na taberna do tio Trocho, saboreando o seu cigarrinho. A cada passo, mais atento ao tempo que ao jogo, puxava do seu relógio de bolso do seu colete, que muito prezava usar, a curta distância conferia as horas. “… é o último jogo…” bebia apressadamente o seu Sumol para iludir o cheiro do tabaco e ei-lo, em passo aligeirado, a caminho de casa… por ele não vinha mal ao mundo.

Obrigado, senhor professor, obrigado senhora Dona Maria, sinto orgulho de ter sido vosso aluno. Ela, lá onde se encontra, sabe que eu não gostava de chamar “senhora professora”, pelo carinho que sentia, gostava e gosto, pois para mim será sempre “senhora Dona Maria”. A autoridade era “professor”, ela era mais que professora. Até a sua terra natal – Carrapatas – que nunca visitei, continua na minha mente como algo diáfano, pois quando à saída de Macedo, vejo a placa Carrapatas, o meu espírito tem sempre presente os três grandes amigos.

Paz às suas almas.

terça-feira, 17 de março de 2009

Sra. Perpétua - Até um dia

A notícia da perda de mais um elemento da nossa comunidade é sempre uma tarefa assaz difícil de concretizar.

Cabe-nos, no entanto, o dever de o fazermos. Há filhos de Rebordainhos espalhados por todo o mundo que, sejam boas ou más, anseiam por notícias da nossa terra.


Rebordainhos está mais pobre. A "tia Perpétua" partiu.

A partir de agora, passar na rua do Outeiro, não mais será a mesma coisa. Já não ouviremos aquele cumprimento da "tia Perpétua" - "Então que tal?"

Por mim, tenho o orgulho e a certeza de constar entre aqueles que ela considerava. Assim espero que, onde quer que esteja, me oiça dizer:


ATÉ SEMPRE SRª PERPÉTUA
Augusta Mata

sexta-feira, 13 de março de 2009

Casamento das Novas


Vamos lá, minha gente, deixemos o torpor e as desculpas de que não há novos. Está a chegar o tempo de serrar as velhas e de casar as novas. Neste domingo ou no próximo?


Para avivar a memória dos mais esquecidos, aqui ficam as falas:



― Ó padre Amaral!

― Olá Compadre!

― Palhas alhas leva o vento!

― Que é que dizes?

― Vamos fazer um casamento!

― É verdade, é verdade! Então quem é que há-de ser?

― Há-de ser... há-de ser... há-de ser a...

― Então quem é que há-de ser o marido?

― Há-de ser... há-de ser... há-de ser o...

― Ah! ah! ah! É bem bô, é bem bô! E então, o que é que lhe queres dar de dote?

― Ũa toalha de estopa, onde o diabo limpa o cu, que limpem eles a boca!

―Ah! ah! ah! É bem bô, é bem bô!

-----------------------------------------

Outros dotes / pinhas

― Ũa toalha de linho, onde o diabo limpa o cu, que limpem eles o focinho!

― A porra do burro p'ra fazer um sobiote

― Os quilhões do Padre Santo, p'ra que lhe sirvam de almofada

-----------------------------------------
Julio Caro Baroja é um grande nome da cultura espanhola. Na sua obra "El Carnaval" defende a tese, segundo a qual, muito mais do que o tempo litúrgico que antecede a Quaresma, o Carnaval é uma festa com manifestações espalhadas por todo o ano, começando em Janeiro e terminando em Dezembro. Essa conclusão resultou do estudo de inúmeras festas aldeãs e citadinas de todo o território peninsular, com especial destaque para o Norte, Portugal incluído. Rebordaínhos dá razão a este sábio. Pensemos no nosso “Dia de Reis”, no “Entrudo” propriamente dito, na “Serra das Velhas” e no “Casamento das Novas”, cerimónias burlescas que celebramos a meio da Quaresma! A esta lista gosto de acrescentar a brincadeira do fim da malha, do ir buscar a rapariga a casa da família, para a levar no birgo. Se pensarmos assim, temos manifestações do Entrudo desde Janeiro até Julho / Agosto.

O Entrudo é a aceitação momentânea do interdito. Caro Baroja cita uma mascarada organizada por Filipe IV (o nosso III) em pleno séc. XVII. D. Filipe, o defensor do catolicismo, obcecado pela religião e instigador da Inquisição aceita mascarar-se de ajudante de câmara e participar num casamento fingido. Ou seja: na corte católica fez-se chacota com a religião e os seus sacramentos. Alguém de lá deve ter passado a Quaresma em Rebordaínhos.

Para a Germana


Germana: qual destas duas senhoras Anas é a Ana tua mãe?



Para que toda a gente entenda: a Germana é de Arufe de onde saiu há quinze anos e disse-nos que era filha da Sr.ª Ana e do Sr. António. Disse, ainda, que se lembra dos meus pais, mas parece que se não lembra de mim e nem eu dela.

Abençoada internet que nos permite estes (re)encontros.

quarta-feira, 4 de março de 2009

Contas

Aquele lume do lar de Inverno, tenho a certeza, continua a acender a memória e a aquecer a saudade de todos quantos frequentam o nosso Rebordainhos. Eram longos os serões, ou assim me pareciam. Certas noites debulhava-se o milho, maçaroca contra maçaroca, mãos pequeninas a tentarem imitar os gestos dos grandes. Noutras, o homem da casa pisava o unto enquanto a mulher fazia malha: meotes e camisolas que calçavam e vestiam toda a família. Ora, porque o gesto da mão não é impeditivo da palavra, à medida que as agulhas puxavam a lã e a maça batia na banha branca, lá se iam contando histórias, naquela forma de dizer tão própria da oralidade. Que idade terão as contas da nossa infância?

Inicio aqui a publicação de uma série de contas no exacto registo em que as ouvi da boca de minha mãe, meu pai e tia Helena, cheia de pena de que a escrita não possa mostrar sorrisos e trejeitos nem fazer ouvir o riso nem o tom de voz de quem as ia dizendo. Quem se lembrar de mais faça o favor de ir acrescentando!

I - O ALFAIATE

Era uma vez um alfaiate. Ia de noite para a aldeia dele e passou numa canada. Uma silva prendeu-o. Esteve toda a noite:

– "Ó senhor, deixe-me, por favor, não trago dinheiro!"

Toda a noite a dizer isso! Trazia um cruzado no bolso e deitou-o para trás, para ver se o homem que ele julgava que o estava a prender, se ia embora.

De madrugada sentiu falar de trás dele. Olhou para trás e viu que estava preso pela silva. Tirou a tesoura do bolso e cortou-a. Ao fim disse:

- "Se fosses um homem fazia-te na mesma!"