IX - A VISITA
por
António Augusto Fernandes
por
António Augusto Fernandes
Decididamente, com Deus não queria grandes confianças. Ainda que morasse a dois passos do campanário, desde que o Criador lhe levara a mulher na flor da juventude, finada em trabalhos de parto e deixando-lhe nos braços o recém-nascido, o tio Manuel Leque cortara relações com tal Vizinho. Não de todo, mas eram relações pouco mais que diplomáticas: uma missa por ano no aniversário da defunta era quanto bonda para largar nas mãos do abade a paga de uma jorna e apaziguar uns resquícios de devoção que ainda guardava bem lá no fundo. E assim se dava por quite das suas obrigações para com Deus.
Muito escasso de mimos e afagos, o Manuel Leque lá foi criando o crianço no passadio frugal de quem ganhava, quando a havia, jorna de cinco mil réis e colhia trinta alqueires de centeio, meia dúzia de sacas de batatas mais duas abóboras e uns folharecos de couve que os coelhos por favor lhe deixavam medrar numa hortita lá para casa do diabo mais velho, em Vale-de-Miúça.
Ficara para a crónica aldeã a rigidez pedagógica do viúvo cujo rigor envergonharia os moles pedagogos de Esparta. Nas manhãs agrestes do Inverno serrano, o codo enrijava as ruas enlameadas como se fossem empedradas a lajes de granito, e os socos ferrados de brocha grossa ressoavam no ar gélido e cintilante. Não era tal pormenor que iria impedir o Tio Manuel Leque de proceder às abluções matinais com o mesmo despacho de todos os dias: enganchava o filhote debaixo do sovaco, saía à rua, quebrava o gelo da agueira que lhe passava à porta a caminho da Ribeirinha e com umas fronças de giesta dealbava o rabito arroxeado de frio das imundícies nocturnas.
Ao arrepio, porém, das teorias pedagógicas hodiernas, tal secura nos processos educativos paternos não gerou facínora revoltado nem cidadão enredado em complexos. O rapazito alto e magro, de olhito azul como a flor do linho, deu num dos mais rijos e reinadios mocetões de Rebordainhos. O Mário (Leque como o pai), depois de ter engrolado a instrução primária, a partir dos catorze anos já governava a vida arranchando com o progenitor: de enxada ou picareta ao ombro atravessava o largo do Prado mais lépido que cotovia, a caminho da jeira a ganhar, sempre com a salvação para quem passasse e o piropo pronto para rapariga que lhe alumiasse a manhã. Veio depois a vida militar que lhe alargou os horizontes do mundo e da ambição, empurrando-o para Lisboa, para África, para o mundo. E a partir de então, sozinho, mais o tio Leque se dobrou para o chão, mais se enovelou no casulo da sua solidão, desesperançado de Deus e dos homens.
Era segunda-feira de uma Páscoa que nesse ano viera muito temporã. Ainda pelas manhãs límpidas soprava dos picos nevados da Sanábria, fino e cortante como lâminas, o cieiro que deixava as bochechas da pequenada feitas de maçã camoesa e gretava os lábios mimosos das moças que acudiam ao desaire com a mezinha de um tudo-nada de unto da salgadeira ou um pingo de azeite.
Usança antiga consagrara essa segunda como um feriado suplementar destinado à Visita Pascal. Desde que o sol rompia, o sino grande, em entoação de grande pontifical, entrava em despique com a sineta, mais galreira que comadres a desfiar o rosário da vizinhança no lavadouro, de voz em falsete desde que a rapaziada, há que anos! a rachara em celebração esfuziante da noite de aleluia. E a fabriqueira que não havia maneira de mandar consertar! O repique acalorado anunciava pelas quebradas da serra que andava o Senhor fora, em visita ao seu rebanho para lhes trazer a boa nova da Sua Ressurreição. E toda a aldeia se deixava envolver por esse reconfortante anúncio de que a vida é eterna e a morte breve passagem por este vale de lágrimas. E esvaía-se de vez o negrume da Sexta-feira santa, o dia mais negro do ano em que a garridice dos inícios de Primavera se amodorrava numa poalha de tristeza. Para o rapazio era pecado o jogar ao pião e até mesmo rir ou assobiar. As mulheres andavam embiocadas porque não se penteavam para não arrepelar a cabeleira do Senhor judiado na sua via-sacra, nem iam à horta porque no horto tinha Ele padecido terríveis agonias. Aos homens era defeso irem para a taberna bebericar com os amigos e bater o chincalhão, porque ao chincalhão tinham os soldados romanos jogado a túnica do Senhor, ou até cavar a terra porque na terra estava Ele sepultado. Assim sendo, eles por ali erravam como almas penadas sem saberem que fazer do dia santo. A vida do quotidiano, embora quase nunca fosse de rosas, só no Sábado de Aleluia reentrava nos eixos com o anúncio da grande nova, quando Pedro e Maria Madalena garantiam repetidamente a todos os incréus que Ele ressuscitara e para sempre ressuscitara...
E na Segunda de Páscoa era o Próprio Cristo que ia confirmar a notícia de porta em porta para todo o povo: por isso, folar sobre a mesa, pipinho aberto e as primeiras fatiazinhas daquele presunto novo marmoreado de listas brancas e carmesim – eram oferta obrigatória para quem passasse, vizinho ou forasteiro.
Pelos tortuosos caminhos da aldeia, lastrados de verdura, o rapazito da campainha, lépido, muito corado e todo pimpão na sua opa vermelha, não se poupava e agitava-a freneticamente, como se do seu arreganho dependesse a validade do anúncio pascal. E o repique alvissareiro do sino grande e da sineta rachada anunciava aos quatro ventos, da Cabecinha à Portela, do Outeiro ao Covelo, a aproximação do rancho alegre e tagarela da Visita, agregado em torno da cruz alçada onde o Cristo, embora crucificado, tinha também um ar festivo, engrinaldado do amarelo arrepiado das primeiras pascoelas que era preciso ir colher lá para os fundões da Ribeira dos Pereiros. Cada família, endomingada como mandava a cartilha, aguardava o préstito à porta de casa. O P. João, baixote e redondo como um peão de xadrez, empacotado nas rendas da sobrepeliz, a todos orvalhava largamente de água benta, enquanto lançava na manhã clara o seu latim festivo: pax huic domui et omnibus habitantibus in ea! O Cristo, muito familiar, entrava pela casa de cada um como parente há muito aguardado. E cada um, à vez, flectindo o joelho, beijava-Lhe os divinos pés (os pés, que na face O beijara Judas, o traidor!). Depois vinham as perguntas rituais sobre a saúde, os ausentes, os renovos... um padre-nosso cabisbaixo se alguém se finara ao longo desse ano lá em casa, e o convite muito transmontano para uma dentadita de pão-de-ló e um cálice de vinho fino.
Era assim que mandava a tradição: sobre o linho branco da mesa da sala, o folar – aquele mimo pascal de pão louro abundante em recheio de salpicão e presunto − o pão-de-ló, a garrafa de vinho fino e os económicos (uns amorosos bolecos muito rudimentares, de farinha e ovos, rijos que nem castanhas piladas. Aos pitéus presidia um crucifixo plantado num copo cogulado de grão e ladeado de dois tocos de vela em idênticas peanhas. P. João apenas de longe em longe, em casa mais íntima, lá molhava os beiços e debicava uma migalhita de pão-de-ló, cauteloso, não fosse o diabo tecê-las, porque já mais que uma vez, noutros anos, as libações sucessivas lhe tinham entorpecido as pernas e entaramelado o latim antes de encerrar o circuito da aldeia. Os da cruz e da caldeirinha, homens de outro sustento e resistência, afeitos à enxada e à rabiça do arado e de dentes mais trituradores que cilindro de malhadeira, não se faziam muito rogados e afinfavam-lhe de rijo. Ao fim e ao cabo, era dia de festa e um que outro tropeção nas pedras da calçada não escandalizava o Cristo que, alcandorado em sua cruz florida, esboçava sobre os fregueses esparsos pelas quelhas um sorriso muito compreensivo e pascal. Lá fora, porque não cabiam todos em casa, aguardava a ranchada gárrula de tudo quanto era mordomo de santo que tivesse festa na roda do ano, aguardando a esmola para o santo e as amêndoas para o mordomo.
Pois nessa segunda de Páscoa, ao fim de sessenta anos de empertigada recusa, o Tio Manuel Leque também franqueava a sua porta à visita pascal. E fizera-o saber pela braçada de juncos lançada em frente da soleira. Sozinho (o filho embarcara há que vidas!), ligeiramente pálido, hirto na jaqueta de cotim puído e na camisa domingueira de colarinho excessivo para as pelancas magras do pescoço, o seu perfil miúdo desenhava-se no traço da porta – consciente das suas obrigações de anfitrião. Na quelha que à porta do Sr. Professor deixava a rua principal em direcção ao adro, o casinhoto, entaliscado na correnteza das casas de granito, escuro como tumba, constava de uma cozinha sumária que abria para a rua e do quartito do catre de tábuas que, do lado oposto, por um janelo breve, olhava para as lonjuras azuladas da serra de Bornes.
Trepando o calhau esconso que fazia de único degrau, o Padre entrou com o seu latim pascal e logo a seguir entrou o Cristo na sua cruz. O tio Leque, um pouco trémulo, encostou os lábios ressequidos aos pés do seu divino Vizinho com quem tanto tempo andara desavindo. Cravou n’Ele, ligeiramente de soslaio, o olhito cinzento, azougueiro e desconfiado. Pronto! O mais difícil já estava! Depois, num gesto tímido de quem não está para grandes intimidades logo à primeira visita:
− Se são servidos...
E apontava para o centro da cozinha minúscula do tugúrio minúsculo, negra do fumo de gerações: sobre a única cadeira da casa, recoberta por toalhita de estopa, um imenso pão centeeiro acolitado pela garrafita do tinto e a peliqueira de Caçarelhos. O Padre agradeceu, o sacristão agradeceu... e saíram. O Cristo, na sua cruz enfeitada do amarelo das pascoelas, permaneceu mudo, mas o Tio Leque percebeu, lá na sua, que Ele estava com vontade de aceitar o convite e que as pazes estavam feitas.
Tanto assim que, três meses volvidos, na altura em que os segadores lançavam as seitouras aos centeios maduros, Ele lhe mandou recado para ir ao encontro da sua Aurora que há sessenta anos se ausentara do lar.
Muito escasso de mimos e afagos, o Manuel Leque lá foi criando o crianço no passadio frugal de quem ganhava, quando a havia, jorna de cinco mil réis e colhia trinta alqueires de centeio, meia dúzia de sacas de batatas mais duas abóboras e uns folharecos de couve que os coelhos por favor lhe deixavam medrar numa hortita lá para casa do diabo mais velho, em Vale-de-Miúça.
Ficara para a crónica aldeã a rigidez pedagógica do viúvo cujo rigor envergonharia os moles pedagogos de Esparta. Nas manhãs agrestes do Inverno serrano, o codo enrijava as ruas enlameadas como se fossem empedradas a lajes de granito, e os socos ferrados de brocha grossa ressoavam no ar gélido e cintilante. Não era tal pormenor que iria impedir o Tio Manuel Leque de proceder às abluções matinais com o mesmo despacho de todos os dias: enganchava o filhote debaixo do sovaco, saía à rua, quebrava o gelo da agueira que lhe passava à porta a caminho da Ribeirinha e com umas fronças de giesta dealbava o rabito arroxeado de frio das imundícies nocturnas.
Ao arrepio, porém, das teorias pedagógicas hodiernas, tal secura nos processos educativos paternos não gerou facínora revoltado nem cidadão enredado em complexos. O rapazito alto e magro, de olhito azul como a flor do linho, deu num dos mais rijos e reinadios mocetões de Rebordainhos. O Mário (Leque como o pai), depois de ter engrolado a instrução primária, a partir dos catorze anos já governava a vida arranchando com o progenitor: de enxada ou picareta ao ombro atravessava o largo do Prado mais lépido que cotovia, a caminho da jeira a ganhar, sempre com a salvação para quem passasse e o piropo pronto para rapariga que lhe alumiasse a manhã. Veio depois a vida militar que lhe alargou os horizontes do mundo e da ambição, empurrando-o para Lisboa, para África, para o mundo. E a partir de então, sozinho, mais o tio Leque se dobrou para o chão, mais se enovelou no casulo da sua solidão, desesperançado de Deus e dos homens.
Era segunda-feira de uma Páscoa que nesse ano viera muito temporã. Ainda pelas manhãs límpidas soprava dos picos nevados da Sanábria, fino e cortante como lâminas, o cieiro que deixava as bochechas da pequenada feitas de maçã camoesa e gretava os lábios mimosos das moças que acudiam ao desaire com a mezinha de um tudo-nada de unto da salgadeira ou um pingo de azeite.
Usança antiga consagrara essa segunda como um feriado suplementar destinado à Visita Pascal. Desde que o sol rompia, o sino grande, em entoação de grande pontifical, entrava em despique com a sineta, mais galreira que comadres a desfiar o rosário da vizinhança no lavadouro, de voz em falsete desde que a rapaziada, há que anos! a rachara em celebração esfuziante da noite de aleluia. E a fabriqueira que não havia maneira de mandar consertar! O repique acalorado anunciava pelas quebradas da serra que andava o Senhor fora, em visita ao seu rebanho para lhes trazer a boa nova da Sua Ressurreição. E toda a aldeia se deixava envolver por esse reconfortante anúncio de que a vida é eterna e a morte breve passagem por este vale de lágrimas. E esvaía-se de vez o negrume da Sexta-feira santa, o dia mais negro do ano em que a garridice dos inícios de Primavera se amodorrava numa poalha de tristeza. Para o rapazio era pecado o jogar ao pião e até mesmo rir ou assobiar. As mulheres andavam embiocadas porque não se penteavam para não arrepelar a cabeleira do Senhor judiado na sua via-sacra, nem iam à horta porque no horto tinha Ele padecido terríveis agonias. Aos homens era defeso irem para a taberna bebericar com os amigos e bater o chincalhão, porque ao chincalhão tinham os soldados romanos jogado a túnica do Senhor, ou até cavar a terra porque na terra estava Ele sepultado. Assim sendo, eles por ali erravam como almas penadas sem saberem que fazer do dia santo. A vida do quotidiano, embora quase nunca fosse de rosas, só no Sábado de Aleluia reentrava nos eixos com o anúncio da grande nova, quando Pedro e Maria Madalena garantiam repetidamente a todos os incréus que Ele ressuscitara e para sempre ressuscitara...
E na Segunda de Páscoa era o Próprio Cristo que ia confirmar a notícia de porta em porta para todo o povo: por isso, folar sobre a mesa, pipinho aberto e as primeiras fatiazinhas daquele presunto novo marmoreado de listas brancas e carmesim – eram oferta obrigatória para quem passasse, vizinho ou forasteiro.
Pelos tortuosos caminhos da aldeia, lastrados de verdura, o rapazito da campainha, lépido, muito corado e todo pimpão na sua opa vermelha, não se poupava e agitava-a freneticamente, como se do seu arreganho dependesse a validade do anúncio pascal. E o repique alvissareiro do sino grande e da sineta rachada anunciava aos quatro ventos, da Cabecinha à Portela, do Outeiro ao Covelo, a aproximação do rancho alegre e tagarela da Visita, agregado em torno da cruz alçada onde o Cristo, embora crucificado, tinha também um ar festivo, engrinaldado do amarelo arrepiado das primeiras pascoelas que era preciso ir colher lá para os fundões da Ribeira dos Pereiros. Cada família, endomingada como mandava a cartilha, aguardava o préstito à porta de casa. O P. João, baixote e redondo como um peão de xadrez, empacotado nas rendas da sobrepeliz, a todos orvalhava largamente de água benta, enquanto lançava na manhã clara o seu latim festivo: pax huic domui et omnibus habitantibus in ea! O Cristo, muito familiar, entrava pela casa de cada um como parente há muito aguardado. E cada um, à vez, flectindo o joelho, beijava-Lhe os divinos pés (os pés, que na face O beijara Judas, o traidor!). Depois vinham as perguntas rituais sobre a saúde, os ausentes, os renovos... um padre-nosso cabisbaixo se alguém se finara ao longo desse ano lá em casa, e o convite muito transmontano para uma dentadita de pão-de-ló e um cálice de vinho fino.
Era assim que mandava a tradição: sobre o linho branco da mesa da sala, o folar – aquele mimo pascal de pão louro abundante em recheio de salpicão e presunto − o pão-de-ló, a garrafa de vinho fino e os económicos (uns amorosos bolecos muito rudimentares, de farinha e ovos, rijos que nem castanhas piladas. Aos pitéus presidia um crucifixo plantado num copo cogulado de grão e ladeado de dois tocos de vela em idênticas peanhas. P. João apenas de longe em longe, em casa mais íntima, lá molhava os beiços e debicava uma migalhita de pão-de-ló, cauteloso, não fosse o diabo tecê-las, porque já mais que uma vez, noutros anos, as libações sucessivas lhe tinham entorpecido as pernas e entaramelado o latim antes de encerrar o circuito da aldeia. Os da cruz e da caldeirinha, homens de outro sustento e resistência, afeitos à enxada e à rabiça do arado e de dentes mais trituradores que cilindro de malhadeira, não se faziam muito rogados e afinfavam-lhe de rijo. Ao fim e ao cabo, era dia de festa e um que outro tropeção nas pedras da calçada não escandalizava o Cristo que, alcandorado em sua cruz florida, esboçava sobre os fregueses esparsos pelas quelhas um sorriso muito compreensivo e pascal. Lá fora, porque não cabiam todos em casa, aguardava a ranchada gárrula de tudo quanto era mordomo de santo que tivesse festa na roda do ano, aguardando a esmola para o santo e as amêndoas para o mordomo.
Pois nessa segunda de Páscoa, ao fim de sessenta anos de empertigada recusa, o Tio Manuel Leque também franqueava a sua porta à visita pascal. E fizera-o saber pela braçada de juncos lançada em frente da soleira. Sozinho (o filho embarcara há que vidas!), ligeiramente pálido, hirto na jaqueta de cotim puído e na camisa domingueira de colarinho excessivo para as pelancas magras do pescoço, o seu perfil miúdo desenhava-se no traço da porta – consciente das suas obrigações de anfitrião. Na quelha que à porta do Sr. Professor deixava a rua principal em direcção ao adro, o casinhoto, entaliscado na correnteza das casas de granito, escuro como tumba, constava de uma cozinha sumária que abria para a rua e do quartito do catre de tábuas que, do lado oposto, por um janelo breve, olhava para as lonjuras azuladas da serra de Bornes.
Trepando o calhau esconso que fazia de único degrau, o Padre entrou com o seu latim pascal e logo a seguir entrou o Cristo na sua cruz. O tio Leque, um pouco trémulo, encostou os lábios ressequidos aos pés do seu divino Vizinho com quem tanto tempo andara desavindo. Cravou n’Ele, ligeiramente de soslaio, o olhito cinzento, azougueiro e desconfiado. Pronto! O mais difícil já estava! Depois, num gesto tímido de quem não está para grandes intimidades logo à primeira visita:
− Se são servidos...
E apontava para o centro da cozinha minúscula do tugúrio minúsculo, negra do fumo de gerações: sobre a única cadeira da casa, recoberta por toalhita de estopa, um imenso pão centeeiro acolitado pela garrafita do tinto e a peliqueira de Caçarelhos. O Padre agradeceu, o sacristão agradeceu... e saíram. O Cristo, na sua cruz enfeitada do amarelo das pascoelas, permaneceu mudo, mas o Tio Leque percebeu, lá na sua, que Ele estava com vontade de aceitar o convite e que as pazes estavam feitas.
Tanto assim que, três meses volvidos, na altura em que os segadores lançavam as seitouras aos centeios maduros, Ele lhe mandou recado para ir ao encontro da sua Aurora que há sessenta anos se ausentara do lar.
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Nota: a fotografia da janela do tio Leque foi enviada pelo António