Naquele tempo, no tempo em que éramos crianças e felizes, ‒ vocês lembram-se? ‒ em Rebordainhos nem sempre nevava pelo Natal, mas a carambina e o sincelo eram mais certos que as rocas e os tortulhos pelos giestais. Natal não era música celestial pelas ruas, nem pinheiros a piscarem as suas luzinhas, nem qualquer afã comercial: na aldeia não havia pinheiros e os lumes eléctricos ainda vinham longe. Era sim o ar das madrugadas, a esse tempo já perfumado pelo aroma das alheiras a tostar no borralho. Era o musgo fofo que abundava pelas touças da
Cabeça e do
Cabeço Cercado, impregnadas do cheiro húmido das folharacas em decomposição e dos roquelhos que espreitavam por todo o lado. E nós íamos em cata desses farrapos espessos de musgo que iriam amaciar de verde-negro a pobreza dos nossos presépios como tapeçarias, mais ricas que as ofertadas por Salomão à Rainha de Sabá. E ninguém nos dizia que era anti-ecológica tal colheita, porque a roda do ano revestiria de novo a nudez das fragas.
Tanto quanto nos mostram em tons de sépia os fiapos que se nos desdobram nos longes da memória, o prato forte da consoada não era bem o bacalhau com a couve troncha, como é por todo lado, que isso, Deus louvado, ia havendo ao longo do ano. Gentes da serra e distantes do mar, era sim a pescada frita e o polvo, aquele polvo curado que vinha do litoral em cestos de cana, seco e teso que nem couratos, e de cheiro forte capaz de empestar a freguesia, mas com um sabor de três assobios.
Também não consta que alguém pusesse o sapatinho junto da chaminé, quer porque não havia sapatinhos, mas sim botas cardadas, saídas da
boutique do tio Carlos Sapateiro, e socos ferrados
made by Graciano Grilo; quer porque não havia chaminé, que o fumo esvaía-se pela telha vã, depois de perfumar as alheiras cor de âmbar e os salpicões já rosadinhos, a pedirem umas brasitas de carvalho, aquelas brasas olorosas que neles deixavam o perfume que, presumo, deve ser o das trufas que nunca provei. Como prendas de Natal lá apareciam, quando Deus era servido, uns rebuçaditos, uns cigarritos de chocolate, uma laranja provinda da Terra Quente, e viva o velho! Éramos pobres, mas ricos da graça de Deus, como por lá se diz, e éramos felizes sem o sabermos.
Mas a suprema recordação do Natal é a do presépio. Coisa deslumbrante! Quando se entrava na igreja para a Missa do Galo, aquela penumbra de catacumbas ressumava o mistério próprio dos rituais sagrados: as roupas escuras dos fiéis fundiam-se na obscuridade da nave quebrada apenas pelas escassas velas dos altares e no ar pairava o odor acre do fumo das lareiras que impregnara os xailes das mulheres e as samarras dos homens. E o silêncio da noite santa era apenas quebrado pelos catarrais descompassados de toda uma freguesia que a vida trazia sujeita à intempérie e às humidades do relento. Mas o que imediatamente atraía o olhar dos catraios irrequietos era, logo ali à direita, junto ao altar da Senhora do Rosário, a pequena maravilha da colinazita verde do presépio, alumiado pelo clarão envergonhado de meia dúzia de cotos de vela.
É claro que não havia dinheiro para toda aquela parafernália que o Machado de Castro empresta aos seus presépios, que a freguesia era pobre. Mas era simples, e lindo na sua simplicidade! A toda a largueza da colina atapetada de musgo, espalhavam-se ovelhinhas, muitas ovelhas, o elemento preponderante na iconografia natalícia. Ovelhas de muitas proveniências e, por isso
mesmo, de todos os tamanhos e feitios: esta deitada, ruminando as coisas da vida, aquela tasquinhando o musgo feito erva, umas minúsculas como berlindes a sumirem-se nos pêlos do musgo, outras tamanhas como vacas, tão altas como os pastores que as guardavam, encostados ao cajado. Alguns dos pastores, mais lampeiros, já se abeiravam da gruta do Menino com a sua ovelhita aos ombros ou seu cesto merendeiro. Algures havia também o imprevisto de um fontanário de cuja bica se desprendia um fiozinho de prata a cair no tanque onde um burrico
fingia beber. Mais lá para trás, na meia encosta, rebrilhava um lago com uma rocha nas suas margens. Havia sempre um lago feito com o espelho que alguma das catequistas (as arquitectas desta maravilha) desenculatrava do caixilho. Para esse lago despenhava-se uma cascata feita da prata dos chocolates e sobre as suas águas vogavam patinhos de cera. Lá mais ao longe, no cimo da colina já se avistavam os três Reis Magos que só mais tarde, lá para o Dia de Reis, haviam de chegar à gruta. E, na sua imponência de reis, apesar da distância, já eram enormes, com os seus camelos ricamente ajaezados e as suas arcas pesadas de oferendas. Avultavam mesmo mais que Nossa Senhora e S. José postados à entrada da gruta, ladeados pelo burrico e pela vaca mocha (que ainda não se conseguira comprar outra de galhadura integral). São
José, em pé, arrimado ao seu bordão de viandante, e a Virgem ajoelhada ante o seu Deus incarnado, olhavam com uma ternura infinita o Menino. E Este, de bracinhos abertos, nu e muito rosado sobre as palhas centeias, olhava para nós, seus fiéis contempladores, a abençoar-nos. E nós prometíamos-lhe que havíamos de estudar muito para não apanharmos palmatoadas do Sr. Professor, e havíamos de ir à fonte quando a mãe mandasse… prometíamos tudo, até não correr com os dos Pereiros à lapada.
Cá em baixo, ao longo da fímbria do presépio, alinhavam-se laranjas e malápios onde mãos devotas e pobres tinham cravado moedinhas de tostão e dois tostões ou, mais raramente, uma
croa.
E para todo o sempre me ficou na memória olfactiva o cheiro desses tostões. Não sei se já cheiraram o cobre de uma moeda de dois tostões oxidada pelo ácido da laranja. Para mim é, ainda hoje, uma memória de presépio e o cheiro dessa pobreza amorável que sabe partilhar do quase nada que tem.