sábado, 25 de fevereiro de 2012

TIA CÂNDIDA



Como os grãos de areia por entre os dedos, assim se escapam da vida as pessoas que povoaram a nossa infância. É-me tão difícil escrever estas notícias!

Agora faleceu-nos a tia Cândida, amiga de sempre. Tinha o riso franco das pessoas boas e nunca passávamos à sua porta que não ouvíssemos um "entre cá um bocadinho!" E nós entrávamos e a conversa decorria no tom ameno de quem se quer bem, ora no coberto cá de fora, ora na cozinha, se o tempo estava fresco. Era ela e o seu António, sempre juntos, como, de resto, todos os casais que formavam o canto.

Desde que o soube, só ouço a voz da tia Cândida a consolar-me quando perdi meu pai: "não chore, olhe que ele está no Céu!" E são as dela, as palavras de conforto que quero deixar aos seus filhos.

terça-feira, 21 de fevereiro de 2012

TERÇA-FEIRA GORDA

O Entrudo integra-se no conjunto das festas dos rapazes. Apesar der ser deles, toda a gente participava na folia, rindo se a partida era feita a outros, zangando-se se a vítima era o próprio. As partidas, embora repetidas todos os anos, apanhavam sempre alguém desprevenido. Casa em que se esquecessem de cerrar a porta, o mais certo era receber, atirado para se escaqueirar no sobrado, um cântaro de barro cheio de cinza, buralhacos e bosta de vaca! Que zangadas ficavam as mulheres, mormente se o soalho fora esfregado havia pouco tempo!

As façanhas eram tanto mais parodiadas quanto mais má raça fosse a vítima. À mulher mais áspera roubava-se-lhe o cântaro que lhe haveria de entrar em casa; a rapariga mais arisca, com ares de “não-me-toques que não sou para o teu bico”, não escapava sem ser enfuliçada com carvão, ou graxa e, por cima, a farinha e os ovos.
Tudo acontecia pelo dia fora. Quase todos se vestiam de matrafonas (as do João Santacombinha ficaram célebres) e as ruas do povo eram corridas nesses desfiles, ora dançantes e cantantes, ora andantes. A certa altura chegava a pateada: a rapaziada, que durante o ano fora registando os deslizes de toda a gente, punha-os em forma de teatro. Era um pagode, sobretudo porque se sabia muito bem quem eram os alvos da chacota. Creio que as seguintes quadras se integram num desses momentos:
Indo eu por ‘i abaixo.............................. Indo eu por ‘i abaixo
Ai que desgraça tamanha ..................... A tocar a cavaquinha
Escorreguei, dei um peido, ................... Deixei a mulher na cama
Morde lá essa castanha! ....................... A ranhar a passarinha!

Tenho uma guitarra nova ......................Tenho uma guitarra nova
Feita do pau das urtigas .........................Feita do pau das colheres
Cada vez que toco nela ...........................Cada vez que toco nela
Faço mijar as raparigas! .........................Faço mijar as mulheres!


Caída a noite, estava na altura de os rapazes se voltarem a juntar para fazer o Entrudo – um boneco de palha a que vestiam como homem, com chapéu e tudo! Depois discutiam a que porta iriam pô-lo e, então, afixavam-lhe um cartapácio no peito, com dizeres alusivos à pessoa em causa. Dos bons ou maus bofes da pessoa, dependia a reacção quando, quarta-feira pela manhã, abrisse a porta e desse de caras com o mono.

Quarta-feira é preciso que o Entrudo morra, para que o espírito dos homens se coadune com os tempos quaresmais. Posto num carro de bois puxado por dois ganapos, o boneco da véspera é levado até ao prado. Aí, no meio de grande algazarra e dichotes, alguém lhe chisca fogo, ardendo por completo, num adeus até para o ano.

Que digo eu? Não é até para o ano, é até daqui a vinte dias, quando se proceder à serra das velhas e ao casamento das novas. Os quarenta dias de tristeza da quaresma são longos demais para que não tenham de ser interrompidos com alguma alegria.

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As palavras que escrevi pouco mais são do que aquilo que ouvi contar. Nascida num tempo em que a gente nova tinha emigrado ou estava na guerra, a pouco assisti, porque também eu saí, ainda menina, e nunca mais pude voltar à aldeia no tempo do Entrudo. Agradeço a todos quantos me queiram corrigir ou fazer algum acrescento. Prometo que farei todas as alterações necessárias.

A fotografia que ilustra o artigo foi publicada pela minha irmã Augusta num artigo que escreveu sobre o assunto, embora versando outro aspecto: o das refeições. Está aqui: siga a ligação.

As quadras transcritas foram-me ensinadas por minha mãe
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domingo, 19 de fevereiro de 2012

PODE SER QUE...

Puri Deus nosso Senhor aderiu aos tempos novos e, em detrimento da oração tradicional, mais quer que os fiéis Se Lhe dirijam usando as tecnologias da informação e comunicação. Que Ele entenda, então, o novo cabeçalho do blog, como prece fervorosa para que nos mande a chuva, ou a neve, que tanta falta nos faz.

E, pois que os tempos a isso convidam, aqui deixo aos leitores esta oração da tia Aninhas (e um vídeo da NASA com imagens da face oculta da Lua):


Ó Lua Nova, tu bem me vês,
Dá-me dinheiro para o fim do mês!

sábado, 11 de fevereiro de 2012

ORAÇÕES

RESPONSO A SANTA HELENA


Santa Helena, rainha do Sena,
moura éreis, para a cristandade voltastes.
Com as onze mil virgens vos encontrastes;
com elas, pão e peixe ceastes.
Com a cruz do Senhor sonhastes;
três pregos que tinha, lhe arrancastes:
o primeiro destes ao vosso filho Constantino
para que ganhasse as batalhas da fé;
o segundo botaste-o ao mar para que ficasse sagrado
e o terceiro cravaste-lo no vosso coração.
Por isto vos peço que me digais... (incluir pedido).
Se isto me fizerdes, três sinais me haveis de dar:
hei-de sonhar com casas caiadas,
barrelas lavadas,
campos verdes ou águas correntes.
À honra de Deus e da Virgem Maria,
um Pai Nosso e uma Avé Maria
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A ilustração é uma página de um magnífico livro de horas do início do séc. XV (Les Très Belles Heures de Notre Dame) e representa a descoberta da verdadeira cruz, por Santa Helena.

segunda-feira, 6 de fevereiro de 2012

MAIS ADÁGIOS





Aqui há dias deixei-vos com alguns adágios antigos referentes aos juízes. Ora, como estamos todos a precisar de paciência para levar a vida por diante, aqui ficam outros sobre "sofrer", tendo em conta que tal verbo significava "levar com paciência".






  • Quem não sabe sofrer não sabe reger

  • Quando fores bigorna sofre, e quando malho, malha

  • Quem sofreu, venceu

  • O bom coração sofre, e o bom siso ouve

  • Sofra quem penas tem, que trás tempo, tempo vem

  • No sofrer, e abster, está todo o vencer

  • O bom sofre, que o mau não pode

  • De grande coração é sofrer, de grande senhor é ouvir

  • Morrer por ter, e sofrer por valer

  • Sofre por saber, e trabalha por ter

  • O que não pode al ser, deves sofrer

  • O bom pai ama-se, o mau sofre-se

  • Quem dá o seu antes de morrer, aparelhe-se a bom sofrer

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Adágios recolhidos n'O VOCABULÁRIO PORTUGUEZ E LATINO de Rafael Bluteau (início do séc. XVIII)

sexta-feira, 3 de fevereiro de 2012

DO NASCIMENTO AO CASAMENTO

Por
ANTÓNIO BRAZ PEREIRA


Rebordainhos foi, desde a minha lembrança, uma aldeia bastante populosa, apesar das grandes dificuldades socioeconómicas, inerentes parcialmente da posição geográfica e da adesão total ao Cristianismo, na imposição de valores e princípios morais e religiosos. Nas décadas 50/60, a emigração para o Brasil, África e Europa facilitou de alguma maneira a vida aos que ficaram. Contudo, a despedida era um calvário para os que partiam e para os que ficavam… havia acompanhamento geral até à saída da Aldeia, choros e gritos como se fosse um adeus para sempre.

As circunstâncias básicas, a carência de meios contraceptivos, o magro conforto e outros componentes, tornavam a natalidade num fardo pesado e complexo para o agregado familiar. Houve mulheres que pariram mais de vinte filhos, ainda que só parte deles viessem a sobreviver! Treze, foi o número que superou a média geral de 7/8. Os partos eram domiciliares e as parteiras designadas para o acto aprenderam as técnicas, como os miúdos aprendem a andar ou a falar: pela força das circunstâncias. Contudo, dada a falta de meios, podiam ser consideradas geniais. Existiram casos onde a mãe biológica, por diversas razões, deixou de amamentar o bebé e outra mulher, em situação de pós-parto, substituiu-a no aleitamento.
Chegava o baptizado, e os padrinhos, nobres e ricos de preferência, viriam a ser tratados por “compadres”. As minhas recordações infantis têm como ponto de referência os cinco anitos… capturando “azeiteiros” na poça da fonte grande.

A partir dos seis anos, a catequese, as catequistas, Lúcia, tia Ester e Aninhas da Eira, tiveram acções preponderantes e de grande eficácia na educação de cada um de nós, para além da formação teológica religiosa. A tia Lúcia, incansável desde sempre, na ajuda aos arranjos dos altares, cantares, lavagem das toalhas, enfim… merecia a medalha de fidelidade, desempenhando várias tarefas, na Igreja, benevolamente. A cruzada, desde sempre me fascinou… vestida de branco, com a cruz das caravelas, em fila de dois, direitinhos como fusos, orgulhosos e sorridente, saía nos eventos importantes, festas etc. O Luís, que na altura frequentava o seminário, e vinha passar férias a casa da tia Helena, iniciou-nos às primeiras notas musicais, e algum latim que decorávamos sem saber o que queria dizer, salvo uma frase aparentemente maliciosa, mas que queria apenas dizer: “ Os peixes romperam as redes”!?

Alguns de nós aprendemos a ajudar à missa, em latim… quase sempre a dois, e foi numa vinda oficial do Bispo, que uma “barracada” imprevista e incontrolável de riso surgiu, entre mim e o Pintassilgo, ajudantes designados pelo P.e João. Com antecedência de 15 dias, decorámos uns textos de boas-vindas, ensaiados ao pormenor para que nada falhasse naquele dia, juntamente com outras fantasias e cânticos religiosos. À saída dos ensaios, alguém nos contou uma história relacionada com a missa, os ajudantes, e um ratito. Pelos vistos, o rato apareceu por baixo da lâmpada a azeite, no canto entre o granito e o altar-mor, e, com as suas idas e vindas, alheio aos olhares curiosos, despertou a atenção dos ajudantes. Parecia mesmo que se passeava com prazer, lentamente, como a saborear a sua timidez quebrada. De repent, o Sacerdote voltou-se para os presentes e, abrindo os braços, disse em voz alta: - “ Orate fratres”- O ratito desatou a correr, “enfusgando-se” no seu esconderijo, enquanto um dos ajudantes respondia em voz alta: “Porra que mo espantaste”!

Nesse dia, o da visita do Bispo, cujo cerimonial não podia falhar, aconteceu um caso similar: um ratito, como por magia, quis participar na festa. O primeiro a vê-lo foi o Moisés que, com um sinal discreto, nos apontou o animal descontraído a passear. Ainda estávamos no início da Eucaristia, mas já não conseguíamos conter o riso que, apesar de o tentarmos abafar, se ouvia por toda a Igreja. Outros galafates, conhecedores da história, entraram na sinfonia dos espirros, cada vez mais ruidosos. O Sr. P.e já se tinha voltado duas ou três vezes, com ar repreensivo, que pouco ou nada acalmou os entusiasmos. Chegou a frase fatídica (orate fratres), e desencadeou-se um alvoroço tão ruidoso, que o Sr P.e desceu as escadas, pegou-nos pelas orelhas, um de cada lado, e levou-nos para a Sacristia. Como não conseguíamos explicar os deploráveis acontecimentos, deu-nos um pontapé no rabo atirando connosco para o adro. Os ânimos nem por isso se acalmaram, porque na Igreja ficaram ainda o Moisés, o João cuco, o Pedro e outros que como nós conheciam a história, e cada vez que olhavam uns para os outros, recomeçavam a sinfonia de risos, enquanto ao fundo da Igreja a D. Graça e D. Maria murmuravam furiosas: “Que pouca vergonha!”

Fomos crescendo e a rebeldia acompanhava-nos humildemente, fiel como as conquistas amorosas. Nos amores, abordagem para dar o primeiro passo era um esforço colossal, invadidos que estávamos pela timidez e pelo receio de levar um “ chega para trás”. Na adolescência aprendíamos com os mais idosos, técnicas que, se podiam facilitar a tarefa, também podiam ajudar a distanciar a pretendida.

Um caso concreto aconteceu numa tarde, ao cair da noite, lá para os lados das Ribas, onde três “lafraus” nos deslocámos, a tornar a água no lameiro do tio João Santo. Ao fundo, havia outro que confrontava com este e pertencia ao pessoal dos Pereiros. Por coincidência, um rapaz mais velho que nós andava nas mesmas ocupações, e aproveitámos para lhe perguntar se sabia escrever cartas às “garinas”? Partiu-se em gabanços e, como tal, pedimos-lhe para nos escrever uma… que no dia seguinte nos entregaria. O envelope vinha colado! Manifestámos o desejo de ler o que vinha escrito, mas o sujeito justificou a negativa, como sendo um meio seguro para não aprendermos as suas técnicas. A carta foi entregue e mal interpretada, possivelmente por ignorância, e no primeiro encontro o rapaz recebeu como resposta uma grande bofetada.

A maioria dos casamentos era organizada segundo os haveres materiais de cada um, pelos pais e familiares próximos. Havia relativamente poucas possibilidades de casar fora da terra, pelo facto de não existirem transportes para os encontros e, namorar por correspondência era uma aventura incerta. O paga-vinho obrigatório para os forasteiros de outras terras era uma tradição temerária, embora engraçada para quem presenciava. As moças, que estavam limitadas a saídas com acompanhamento, aproveitavam a ida à fonte para trocar rápidos olhares, ou palavras fugitivas. Com todas estas restrições, ainda havia casos de resistência às imposições, à semelhança do que acontecia na literatura: “Rosa do Adro”, “Amor de Perdição” “Romeu e Julieta”.

Foi num caso similar que, um dia, fui abordado pelo meu melhor amigo que me pediu para o acompanhar a casa dos pais da namorada, a pedi-la em casamento. Sabia das divergências existentes mas, apesar de serem de maior idade, impunha-se o tradicional pedido. O meu amigo acabava de pôr à prova a minha amizade. Respondi afirmativamente, mas quando me disse que era para aquela noite, fiquei como paralisado… era principiante na matéria, e o pai da noiva não era de cócegas! Quando lhe entrámos em casa, já a noite caía, porém, talvez já sabedor da nossa visita, o chefe de família tinha-se ausentado. Sentámo-nos à lareira e esperamos. O meu coração batia a duzentos por hora, ansioso por que o homem chegasse, e receoso com a astúcia a adoptar. Para culminar o meu desespero, outra pessoa estava presente e, como é óbvio, adivinhou as razões da nossa visita, por isso não arredava pé. Já era alta noite quando apareceu o pai da moça. Sentou-se, mas o diálogo tornou-se num silêncio pesado, temeroso, indeciso. Tanto o rapaz como a rapariga olhavam-me vezes sem fim, como a implorar o meu pedido, mas a garganta apertava-se-me, e a língua bloqueada não balbuciava palavra. Impaciente, mas em vão, o meu amigo dava-me joelhadas em silêncio: da minha boca não saía palavra… Até que, por fim, já bastante tarde, enchi os pulmões de ar e, a gaguejar, consegui pedir a rapariga em casamento. Jurei a mim mesmo, nunca mais aceitar as funções de intermediário no que diz respeito a casamentos!