terça-feira, 22 de dezembro de 2009

BOAS-FESTAS

A melhor forma de vos desejar boas-festas é mostrar-vos como a nossa terra está linda!


Agradeço à Lurdes do tio Hermínio o envio da fotografia, à Junta de Freguesia que teve a iniciativa deste presépio e aos responsáveis pela sua montagem. Está lindíssimo!

Que o Menino Deus traga ao coração de todos nós o calor que lhe falta, a Ele, no meio da neve.

quinta-feira, 17 de dezembro de 2009

ARES DA SERRA

Este artigo é uma republicação. Mas a história é tão linda e está tão bem contada que bem merece uma segunda (terceira, quarta...) leitura. Tenho a certeza de que todos concordarão comigo. Ao Tonho da tia Lídia, a nossa vénia!


VII - O PRESÉPIO DO DOUTOR CALEJA
(…aqui havia uma fraga…)

por
António Augusto Fernandes

O vinte e quatro de Dezembro amanhecera límpido, sem amostra de nuvem que maculasse o espelho azul do céu. A geada rebrilhava intensamente nos telhados e na erva dos lameiros. As vozes das raparigas a caminho da fonte retiniam no ar translúcido com vibrações de cristal e o trroc- trroc dos socos ferrados de brocha larga sobre a lama congelada tinha ressonâncias de passos ecoando em catedral vazia. A névoa recalcada atulhava, lá em baixo, o vale da Ribeira dos Pereiros, como um mar de algodão onde apetecia rebolar-se a gente, alastrando desde a ladeira das Ribas até aos contrafortes da serra de Bornes. Mas, pela tarde, o mar de algodão foi-se evolando numa gaze fina de névoa a marinhar pela encosta da Fraga do Berrão. Num repente a luminosidade do dia amorteceu e o céu ficou zúbio, num anoitecer precoce que polvilhava tudo de tristeza.

– A névoa subiu à serra, Doutor. Senhas de neve! Temos aí neve da grossa, e não tarda! – dizia o Jaime, especado no traço da porta da Taberna de Baixo.
– Pori... – respondia o Zé Bernardo, estacando o passo … E, apontando o nariz batatudo para o céu cor de chumbo, rematava: − É bem capaz.
Isso queriam eles! porque, nevão caído, perdidos e achados era pelos montes, atrás dos coelhos engaranhados pelo frio ao toro das urzeiras ou tolhidos na corrida pela neve ainda fresca. E perdiam-se num silêncio de divagações cinegéticas…

Fosse por esse comum amor pela caça, fosse pela identidade de feitios, ambos de poucas palavras, ambos um tanto de candeias às avessas com a vida, ou até pelo vago parentesco, entre eles nascera uma cumplicidade quase fraterna. De tal maneira que o Jaime o convidava amiúde para cear lá em casa, sobretudo em vésperas de caçada, quando se tratava de escolher pólvora e chumbo e de meter nos cartuchos as buchas de papelão. Era também o Doutor quem o acompanhava quando ia de longada até à Terra Quente, em demanda do bom vinho, que a serra não o dava e o das redondezas, valha-o Deus! gelava nas pipas com o sincelo. E quando os tremenhos da vida o chamavam a algum lado, não hesitava em confiar o governo do soto ao Zé Bernardo: mercearia, ferragens, chitas, vinho incluído, que o Zé Bernardo… é como quem guarda almas – rematava o Jaime a sublinhar a confiança que depositava no seu lugar-tenente. E era! Se, por um acaso muito provável, a alma lhe pedia meio quartilhito, emborcava-o, sim senhor, mas depositava na gaveta dos trocos a paga. À noite, quando o dono tornava das suas voltas, o Zé Bernardo, que não sabia ler, apresentava um papel pardo de cartucho repleto de hieróglifos que só ele entendia, e desfiava o rol de todas as transacções havidas ao longo do dia.

Retomavam a conversa:
– Pelos vistos, já levas aí a consoada… − observava o Jaime.
– É verdade – tornava o outro, voltando a cabeça e fitando com desvelo a enorme troncha que trouxera da sua belguita do tamanho de uma sala, talhada no baldio, à Ribeira do Catrapeiro. A couve acogulava a cesta dependurada do cabo da sachola que trazia ao ombro e enchia-o daquele orgulho que só sabe sentir quem é proprietário pobre de dois palmos de terra que se trazem mais limpos e escarolados que o chão de casa.

– Ouve lá, ó Doutor, porque é que não trazes a couve e vens comê-la connosco na Portela? – convidava o Jaime, adivinhando-lhe o desconsolo de uma consoada repassada de solidão e cismas em frente das brasas, na furna negra da sua choupana.
– Nã… nestes dias, cada mocho a seu souto. – E rumava já em direcção ao barraco de pedra solta que negrejava, encostado a uma fraga descomunal.

Com certeza se lembram ainda daquela fraga do Prado que o povo se habituara a ver como um ex-libris da aldeia, postada no topo nascente do Prado e que o progresso estilhaçou como estilhaça sempre muitas outras coisas na sua caminhada!... Bem no centro da aldeia, ali resistira desde sempre como símbolo da fibra serrana, de antes quebrar que torcer. A fraga com o olmo e o freixo que morreram de velhos marcavam a singularidade do velho Largo do Prado. Modernizado o Largo do Prado, ficou apenas mais um largo, parelho doutro largo qualquer.
***
Era ali que morava o Zé Bernardo, naquela lojita de terra batida e telha vã, delimitada por três paredes adossadas à Fraga do Prado. Sem janelas, o dia só ali entrava pela porta ou alguma talisca deixada por telha arrancada pelo temporal e as paredes negrejavam mais que o caldeiro de cozer a vianda dos porcos.

Morava sozinho. A mitigar-lhe a solidão, em tempos, fizera-lhe companhia uma cabra, a famosa cabra do Doutor, que ele atrelava a si com uma guita quando ia por lá a ganhar a jeira. Enquanto ele derrancava o esqueleto agarrado ao cabo do enxadão, a cabra fazia pela vida tasquinhando a erva bravia que crescia na berma dos caminhos ou nas poulas dos baldios, presa pela guita ao toro de uma giesta. O animal, que era manso como o pão e tinha alma de gente, dormia a um canto sobre uma fachoca de palha e dava-lhe o leite do mata-bicho. E tão asseado era que até parece que nem apestava o raio do bicho que tinha artes de se aliviar enquanto andava por lá! Já velha e durázia, não teve coragem de a matar: vendeu-a a um peliqueiro de Carção pelo preço da pele.

E ali se mantinha num passadio frugal que envergonharia S. Pacómio, anacoreta no deserto. Da mãe, a tia Camila Carroucha herdara a sombra das paredes, o nariz batatudo e uma tez morena mais que a conta que lhe valera a alcunha de Carroucha. Agreste alcunha era essa: mas soava mais agreste ainda na bárbara pronúncia do tch galaico-português que na serra se mantivera desde os tempos em que daqueles cerros se rechaçara a mourama: Carroutcha. E de tal modo se lhe colou a alcunha que poucos na aldeia sabiam que o Zé Carroucho trazia da pia baptismal o nome cristão de José Bernardo. Até que um dia o Jaime da Taberna de Baixo o rebaptizou de Doutor Caleja, vá-se lá saber porquê. Talvez para lhe despir a bárbara alcunha de Carroucho, talvez por ter nascido na mais esconsa caleja da terra, lá para os lados do Covelo. O novo chamadouro pegou, sancionado pela fama de um médico de Macedo de Cavaleiros que dava pelo nome de Dr. Calejo. E assim passou a ser o Doutor Caleja para vizinhos e amigos. Com o andar dos tempos, por mor da brevidade, ficou apenas o Doutor.

Como quem nada tem nada perde, no tempo em que o Brasil ainda fazia dinheiro, o Doutor também arriscou uma saltada até à banda de lá. Mas, como cão sem coleira que não aceita dono, não se acadimou a medir tempo e litros de feijão preto atrás de um balcão na Tijuca. Mordiam-no saudades dos caminhos desimpedidos da serra, dos roquelhos que medravam nas touças pelo Outono, da lazarina com que ia avezando o seu coelhito pelos montes e, mal se pilhou com o dinheiro da passagem, veio retomar o senhorio da sua choça, mais sereno, mais ascético, mais despojado de ambições. Quando, à tardinha, se sentava num calhau em frente do tugúrio, esmoendo com os vagares de quem é dono de todo o tempo do mundo um cibo de bacalhau cru sobre o carolo de pão centeio e meia cebola, tinha o ar vagamente enfadado de Diógenes ou, sabe-se lá, de suserano dos vastos reinos que se estendiam do Prado até ao monte da Cabeça, onde ele conhecia todas as luras de raposa e todos os tourais onde os coelhos vinham bater o fandango em noites de luar.

Caladão, muito cordato, apenas abria a boca para contar alguma larota de caçador em que nem ele mesmo acreditaria lá muito. E só aos domingos, de quando em quando, saía deste comedimento para apanhar a sua cardina catártica. E então, muito tartamudo, com a beiçola gorda e roxa de vinho descaída para o queixo, soltava palavrão de fazer corar um preto. Até que a mocidade, que por ali se juntava no jogo do fito e do calhau, condescendia em lhe despejar uma romeia de água fresca pelo toutiço abaixo para aclarar as ideias. Mas na segunda-feira, logo à-pormanhã, com grandes papos sob os olhos e a beiça gorda ainda arroxeada da carraspana mal curtida, retomava o passadio austero dos dias ronceiros: agarrava do enxadão e ia e dar mais uma jorna a quem lha requisitara. A Lídia do Jaime, que o estimava como a parente chegado, repreendia-o com brandura: − Ó Zé, tu porque é que te emborrachas assim e és tão malcriado? O Zé Carroucho, cândido como criança travessa repesa da traquinice, assumia em voz sumida e sem levantar os olhos: − Lá calha…
***
Pois a névoa da manhã dera em marinhar pela encosta da Serra dos Pereiros e a noite cerrara muito temporã sob um céu de chumbo. Aquelas galinhas de aldeia, que incansavelmente esgaravatam o ciscalho das ruas e eram de uma inegável sensibilidade meteorológica, tinham recolhido ao poleiro ainda mais cedo que de costume, enganadas pela treva cediça. A pardalada grulha e zaragateira, adivinhando a neve, acolhera-se também aos medeiros onde a palha, além do agasalho, oferecia ainda algum grão perdido nas malhas. E a gente chegara-se também ao afago da fogueira onde cozia o pote da consoada. Como aos picos da serra a electricidade não arribara ainda, nem luzinhas multicolores salpicavam a treva, nem o silêncio era quebrado pelas melopeias natalícias que adocicam a azáfama mercantilista das grandes urbes. Um silêncio denso e mole gasalhava o casario agachado na treva, repleto de quietude e mistério − era a epifania dos grandes nevões.

Vendido o último quartilho de azeite para temperar o bacalhau da consoada e o último litro de tinto para o empurrar, como não esperasse mais clientes, o Jaime entendeu por bem fechar o soto. Chamou o filho mais novo que por ali cirandava:
– Ó Zé, leva essa peixota de bacalhau ali ao Doutor, e… toca para casa, que está a arrefecer.

O miúdo atravessou o Prado fazendo rodopiar a peixota do bacalhau dependurado pelo rabicho. Com a familiaridade de visita assídua, empurrou a porta perra da cabana do Doutor e despachou o recado:

– Ó ti Zé, tome lá que manda o meu pai. – E atirou a encomenda para cima da mesita de pinho onde o Doutor refeiçoava.

Desincumbido do recado, desandava já, quando atentou no coto de vela que ardia ao fundo do cortelho. Aproximou-se a fariscar: ora, sim senhor! O Doutor Caleja também tinha armado o seu presépio!

E de facto, sob a bênção suave do coto de vela surripiado na sacristia depois de despir a opa de tirar a esmola, o veludo de quatro farrapos de musgo macio almofadava o tampo gorduroso da arca onde guardava o pão e o toucinho de adubar o caldo. Sobre a macieza do musgo, à direita, uma estampa de Nossa Senhora da Serra que o Doutor trouxera da última festa que a nove de Setembro se celebra logo ali, no píncaro da serra da Nogueira. Que mais dá que seja Nossa Senhora da Serra ou outra? É Nossa Senhora e bonda! À esquerda, como não constava que nos arredores se armasse romaria em honra de S. José, figurava outra pagela que informava: imagem do milagroso Santo Ambrósio que se venera na sua capela de Vale-da-Porca – outra das devoções aceites pelo Zé Bernardo. O bordão e as longas barbas tanto assentavam no Santo Ambrósio como no S. José … o carapuço de bispo é que não vinha a calhar, mas paciência! Quem faz o que pode… Ao centro, sobre um manhuço de palhas centeias, sob o olhar atento da Senhora da Serra e do Santo Ambrósio de Vale-da-Porca, repousava o pequeno crucifixo que o Doutor, muito pragmático, desenganchara do seu rosário.

O pequeno, muito pasmado, ainda se dispunha a transigir com as outras inovações introduzidas na iconografia natalícia ao arrepio da tradição… mas esta do Menino Jesus deixava-o perplexo:
– Ó tio Zé… e... então o Menino Jesus? Isto assim não vale!
– Não tenho. – E quedou-se um momento de olhos postos nas largas labaredas da giesta que lambiam o bojo negro do pote da consoada. Depois, com ar de quem filosofa sobre a vida, com muita vida já vivida e muitas maleitas curtidas, sacando as palavras a custo, como quem as puxa nos alcatruzes do entendimento, acrescentou:
– Olha, Zé… tanto monta que o Menino esteja a nascer nas palhinhas ou já a morrer na cruz. Mal nascemos, já estamos de catrâmbias para a cova… E mal se morre já se está a nascer outra vez…

Calou-se, cansado de tão profunda tirada metafísica. Depois, de olhar parado nas brasas que remexia com um guiço, rematou:
– E diz lá ao teu pai que muito obrigado pelo bacalhau.

sábado, 12 de dezembro de 2009

A MATANÇA

por

ANTÓNIO BRAZ PEREIRA


O acto da matança será barbaresco para os defensores dos animais, mas era útil e necessário para a sobrevivência nos meios rurais, sobretudo quando o talho mais próximo se localizava na capital de distrito, a uma distância de vinte e seis quilómetros, quatro deles percorridos a pé, por carreiros de terra batida, até chegar à estação de caminhos de ferro onde o Sr. Azevedo, por duas coroas, passava o bilhete que dava acesso ao comboio a carvão, (mais tarde automotora) que demorava mais ou menos uma hora para chegar à cidade. Tempo e dinheiro gastos para comprar carnes que, ao fim e ao cabo, também eram abatidas por alguém, não justificavam que se não fizesse a matança.

Enquanto puto, a matança do porco, em Rebordainhos, era, para mim, um dia de alegria, abundância e harmonia. Em se aproximando o Natal, o porco entrava na engorda e passava a ser mais mimado com castanhas descascadas, batatas e centeio granulado, cozidos num grande caldeiro posto sobre a lareira que também era aproveitada para encostar os pés molhados e, até, as roupas vestidas que fumegavam como quando se cozia pão! Nesta altura, porque o frio apertava mais e as geadas deixavam vestígios nas poças e tanques de água, o tempo adequava-se à conservação e, por isso, marcava-se uma data, quase sempre aos domingos, para o dia fatal do animal.

A diferença que existia entre as famílias remediadas e as pobres, como noutros aspectos, também se notava neste. Primeiro, pelo número de convidados e, depois, pelo número de animais: de nenhum a três.

Certo Janeiro fomos convidados para casa do tio João Santo que matava os seus três porcos. Saí de casa bem cedo e nem esperei pelos demais familiares – eles sabiam o caminho e, além disso, mal tinha cerrado olho durante a noite, ansioso pelo amanhecer. O dia estava frio e gelado e, de noite, tinha caído uma camadita de neve. Passei diante das poças da Fonte Grande e do Espinheiro cujo gelo, apesar de convidar à patinagem, me deixou indiferente, tal era a apressa de chegar. Mais adiante, perto do pelourinho, dirigi-me para a rua que dava acesso à casa do Bagueixe, com a intenção de passar pelo atalho que desembocava, direitinho, nas escadas do lado da adega, as quais me levariam directamente ao destino. Ia avançando lentamente, escorregando aqui e ali, quando, da Casa do tio Leque, que mantinha a porta fechada, ouvi chamar:

Ó Bagueixe, tens muitas mulheres?...

Como não obtivesse resposta do vizinho cujas paredes eram meeiras (e a comunicação se fazia através dos buracos que nelas havia ou, então, pelas janelas que eram próxima uma da outra), repetiu a mesma pergunta, levantando ainda mais a voz. Do outro lado, em resposta, ouviu-se uma blasfémia acompanhada da seguinte frase:

– Tenho as mulheres no…
– Pois olha, diz o Leque, cornos não te faltam!
– Raios partam o homem que é maluco como os carros!... Não se pode estar sossegado na cama!

Levantando-se em ceroulas e camisola de flanela, o Bagueixe foi direitinho à janela e, mal a abriu, viu à sua esquerda o outro, debruçado sobre a sua, a rir às gargalhadas enquanto apontava para as telhas das quais caíam, longos e cristalinos, muitos candeolos de gelo. Ficaram os dois tagarelando por mais algum tempo, enquanto eu, receoso de perder o mata-bicho da matança, corria para a grande cozinha do tio João Santo.


A mesa enorme estava repleta de presunto, bacalhau passado por ovos, figos e nozes secos. Também não faltava a garrafa de aguardente, queijo e café migado. Alguns convidados esperavam, já, sentados no escano. Junto da grande lareira estavam dois potes grandes, um destinado à canja onde uma galinha velha cozia durante horas; o outro, para o arroz do almoço. Todas estas tarefas caseiras eram entregues às mulheres que iam buscar o fígado fresco para refogá-lo. Outras três ou quatro, porque era necessária água corredia, iam lavar as tripas lá para as Ribas, Fonte da Vila, ou mesmo à Ribeira. Voltavam geladas dos pés à cabeça.


Os homens, após o mata-bicho, preparavam-se para enfrentar os bichos. Alguns eram grandes e fortes que nem toiros, razão pela qual eram os mais jovens com “cabedal” e os trintões pujantes os primeiros a ter que arregaçar as mangas. Não podendo deixar transparecer o receio que lhes ia na alma, um após outro, lentamente, com alguma apreensão, iam-se aproximando da porta, por detrás da qual, o manso animal se transformava em fera brava, como que adivinhando as intenções daquela quantidade de homens. O Matador, com grande experiência, visto serem raros a possuírem coragem e saber, entrava na loje logo depois do primeiro homem, que levava uma corda na qual fizera um laço. Logo atrás vinham os mais corajosos: dois deles deitavam as mãos às orelhas do animal, para este abrir a boca onde era introduzido o laço da corda que lhe prendia o focinho, fixando-a nos caninos do animal. Conduziam-no assim para a rua e, a partir daqui, numerosas, engraçadas e verdadeiras passagens podiam ser contadas. Nesse dia da matança do tio João Santo apenas aconteceu que, enquanto alguns agarravam o terceiro porco (pesava duzentos quilos, limpo), parte dos homens preparavam-se para a chamusca do segundo que… pega a correr pela canada da casa do Ferreira e só parou no lameiro do tio António Trocho, perante a estupefacção dos que presenciaram a cena, mais o gozo do tio Leque que gritava às gargalhadas:

– Agarrai-o! Agarrai-o!... Ó Bagueixe, o Santo só chama gente fraca para a matança! …
– Chegavam-lhe os dois que ficaram; a esse fazíamos-lhe nós o fado, respondeu o outro.

Enquanto se fazia a preparação dos cevados sobre bancos largos e resistentes, os garotos costumavam cortar o rabo, prepará-lo e assá-lo nas brasas com duas areias de sal.

A quem não passava despercebida qualquer matança, era ao Hermínio Russo nem ao seu colega, o Carlos Chiote. Começavam por rondar o local quando os animais estavam em fim de preparação e, aproveitando qualquer distracção dos matanceiros, puxavam da peliqueira afiada e cortavam um pedaço magro, junto da espádua e iam, depressa, assá-lo. Nesse dia, era em casa do Bagueixe, de mecha com eles.

De porta fechada, os três comparsas preparavam-se para petiscar, assando o isco nas brasas, com sal e um pedaço de malagueta. Mas o tio Leque, malandro como as raposas, tinha farejado já qualquer coisa, para além do fumo que lhe entrava pelas narinas. O Bagueixe saíra com uma garrafa de quartilho e meio, vazia, nas mãos e voltara momentos depois com ela cheia…

– Cheira-me a comeninzana! … Mas introduzir-se em casa do Bagueixe não era tarefa fácil, sobretudo porque não devia estar só. O Leque precisava de arranjar uma artimanha!… De repente, lembrou-se das bombas que sempre guardava em casa: – E vai ser uma dos foguetes que bota muito fumo e eles são obrigados a abrir. Meu dito meu feito: um grande estrondo, fumo a sair pelo buraco do gato… e os três perto da porta aberta, tossindo, enquanto rogavam pragas ao engenhoso e desenrascado homem com quem foram obrigados a partilhar o quinhão!

– Tende lá paciência, mas nem o pão posso trazer… não o tenho!

Só se almoçava depois de terminados todos os preparativos. Os cevados eram pendurados de cabeça para baixo, para que as geadas lhes dessem a forma adequada. Os muitos convivas sentavam-se à mesa repleta de chouriças, alheiras, presunto e pratos variados. O convívio prolongava-se por todo o dia e os mais idosos só voltavam para casa à noite e, por entre o pipo do vinho e o estômago bem recheado, vinham ao de cima discussões que, por vezes, aqueciam. Nesse dia não pude esperar pelo fim porque eu, o meu primo Tarcísio e o Pintassilgo fomos com as vacas para a Galiana, onde me pus a jogar à queda com o Pintassilgo. Resultou num braço deslocado e no pedido ao Sr. padre João que me levasse a Paçó onde havia um compodor de ossos.



(A esta hora, o fumeiro já começa a corar em casa do Tonho)


No texto da mensagem em que me mandou as fotografias, o Tonho escreveu mais:

É sempre agradável recordar o dia das alheiras que era um festim, o encher das chouriças (e os bocadinhos a assar e cair na cinza), dos palaiotos (impressionantes aquelas tripas do intestino grosso cheias de massa, e até a bexiga redondinha, fazendo inveja aos jogadores de futebol). Também havia os butelos, que os novos mal conhecem, enchidos com carne e ossos e, quando abertos, depois de cozidos e tostados na lareira, acompanhados com grelos, eram uma delícia por alturas do Entrudo.

terça-feira, 8 de dezembro de 2009

Curiosidades


7 de Dezembro de 1640. Em Madrid, a corte espanhola assiste a uma tourada que, naqueles tempos, era o modo mais directo de os reis conviverem com os súbditos. A certa altura, o conde duque de Olivares, superministro de Filipe IV, é abordado por um mensageiro que lhe segreda alguma coisa. O rei, que não tira os olhos da arena e concentra toda a atenção nas estocadas desferidas pelos cavaleiros, não se apercebe da movimentação que se gera à sua volta, nem do arruído que cresce por entre os "olés". O segredo espalhara-se!

Olivares não pode protelar mais: tem de dar conhecimento dos factos ao rei de Espanha, não vá ele ficar sabedor por outras vias! Quer dourar a pílula, de modo a que os brios régios saiam pouco chamuscados e, arregimentando toda a solércia que acumulara ao longo das décadas de permanência no poder, sai-se com esta:

Meu senhor, dou os parabéns a Vossa Majestade; acaba de ganhar um ducado e doze milhões. Sentindo-se, provavelmente, interrogado pelo olhar do rei, explica como: Sim, meu senhor, o duque de Bragança cometeu a loucura de se aclamar rei de Portugal, e o confisco dos seus bens vai encher os cofres de Vossa Majestade!

Eis a fina arte da política que consiste em transformar em boa, a notícia de uma desgraça. Desgraça, claro, para Espanha. Alívio enorme para Portugal que se soltara, finalmente, da coleira com que fora atado havia 60 anos.

Passados cinco anos, por decisão das cortes reunidas em Lisboa (Março de 1646), Nossa Senhora da Conceição foi proclamada padroeira do Reino de Portugal. D. João IV ofereceu-lhe a sua coroa, tornando-a nossa rainha e, por esse motivo, nunca mais os reis de Portugal puseram coroa na cabeça. Por tudo isto, o dia 8 de Dezembro assume, para nós portugueses, uma importância redobrada.

Salve Nobre Padroeira!

sábado, 5 de dezembro de 2009

BREVES

myspace layouts

O Rui Freixedelo criou um blog de fotografias e chamou-lhe PhotoBlog (basta clicar sobre o sublinhado para fazer uma visita). Ele e um amigo reuniram algumas fotografias muito interessantes que vale a pena ver. O Rui devia estar a pensar que me esqueci dele. Mas não, só o tempo é que é curto.


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A Pataca do tio Moreno fez-se presente no blog da ASCRR. Para mim foi uma emoção que partilho, agora, convosco.

Sabe tão bem receber notícias!