sexta-feira, 3 de março de 2017

"OS ASTROS NADA EXPLICAM: ARREFECEM"


Fizeram-me nascer aqui e guardo esta paisagem desde que a Terra tem memória. Comecei por vê-la tão nua que avistava todas as minhas irmãs em redor – quebradas como eu, em consequência da lentidão do parto. Os homens chamam diáclases a essas fendas que a diferença de pressão fez abrir no todo maciço que era cada uma de nós, quando existíamos apenas nas entranhas de Plutão.
Embora não pareça, modifico-me a cada dia que passa:
Aqueles vales, agora tão férteis, são partes de mim, arrastadas pela chuva que dissolveu a mica e o feldspato, transformando-os em minerais de argila. Estas areias grossas que me cercam e onde começam a nascer giestas são o quartzo que, não se dissolvendo, fica solto e desprende-se de mim. Os líquenes também cumprem a sua parte, mas gosto deles, porque me acariciam.
O rosto da terra que avisto acompanhou a minha transformação. Vi surgir as primeiras árvores e acompanhei a formação das matas. Lentamente, o espaço arborizado encheu-se de vida animal: primeiro aves e pequenos herbívoros; só depois vieram os carnívoros, chamados pela abundância de alimento. Por fim, chegou o Homem.
Quando vi pela primeira vez aquelas criaturas frágeis e destituídas de dotes próprios de sobrevivência, convenci-me que resistiriam pouco tempo. Em comparação com os outros animais, os recém-chegados nada tinham que os favorecesse: sem garras nem dentes afiados, desprovidos de revestimento quente e com o seu andar mal amanhado, somente sobre dois pés, rapidamente seriam presa de ursos e de lobos.
Enganei-me, porém! O ser humano tomou conta da paisagem. Primeiro, alimentava-se daquilo que caçava; depois, desmatou a terra e, não sei com que magia, começou a semeá-la e a colher dela tudo quanto precisava. Também chamou a si alguns animais, fazendo-se guardador deles em troca de alimento e trabalho. Talvez tenham nascido aí certas inimizades.
Desconheço os motivos, mas desde que aqui chegaram, os humanos sempre me olharam com respeito e admiração. Imaginaram histórias comigo e sobre mim que transmitiram de geração em geração; houve quem fizesse de mim solo sagrado e há, ainda, quem venha visitar-me sempre, só para conversar comigo e aconchegar-se a mim. Quem assim procede sente que chegou a casa, logo que, roída de saudades, me avista na curva da estrada. Só eu sei como sossegá-la.

 _____
O título desta mensagem é um verso feliz de António Gedeão. Escolhi-o como forma de dizer que este foi o último artigo que escrevi para o blog.

O meu BEM-HAJA ao António Fernandes, ao Orlando e ao Filinto que me ajudaram a fazer deste espaço um lugar de elevação.

domingo, 12 de fevereiro de 2017

A INDÚSTRIA DO CALÇADO EM REBORDAÍNHOS


Por: ORLANDO MARTINS



- Oh pai, pode-me mandar fazer uns socos?
Estávamos em Outubro, as castanhas eram agora a principal preocupação, e o frio que se fazia sentir, sobretudo pela manhã, já auspiciava um rigoroso inverno.
Para finais de Novembro, princípios de Dezembro, deviam cair os primeiros flocos de neve.
 As longínquas e saudosas recordações que tenho dos invernos eram o Natal, com os bonequinhos do presépio iluminado por uns cotos de vela estrategicamente espaçados naquele musgo estendido que me transportava para quimeras de felicidade, e, claro, a neve… tudo branco… a paz e a pureza pareciam rondar os nossos corações como bandos de pardais
- Oh Maria, o rapaz quer uns socos, se calhar aproveito e mando fazer também umas botas para mim que estas já não chegam às sementeiras.
- Tu é que sabes, mas lembra-te que os pés dele agora estão a crescer, manda-lhos fazer um pouco maiores.
- Olha filho, tu vais ao Tiu Grilo e dizes-lhe para tos fazer abonados que eu vou ao tiu Carlos Sapateiro para me fazer uns sapatos para mim.
Todo radiante lá fui eu, canteira acima, estugando o passo e ensaiando um assobio que, como sabem, não passavam de tentativas frustradas, e que ia alternando com um refrão de lá…lá laralá…lá. Enfim, ia feliz.
Contornada a poça do covelo dirigi-me à loja do tiu Grilo, um homem de tez queimada na face, onde as rugas denunciavam a sua idade e as amarguras da vida, cabelo grisalho e estatura mediana.
A loja do tiu Grilo situava-se ao lado da forja, no início do caminho que conduzia à Torre Queimada e ao Lameirão, onde se podiam vislumbrar raspas de madeira, talvez de alguns tamancos já em fase mais avançada de fabrico.
- Oh tiu Grilo posso entrar?
- Que vens fazer? Foi o teu pai que te mandou cá?
- Foi sim senhor, era pra ver se me fazia uns socos, mas um pouco abonados porque estou a crescer.
- Atão entra para te tirar as medidas. – Convidou o tiu Grilo entrando no seu estaminé de janela minúscula e piso térreo.
O artesão coloca um bocado de papelão de um ocre deslavado, restos de uma caixa de ajuda humanitária vinda da América, e que na altura servia para transporte de roupas, leite em pó, queijo e outras surpresas que, de vez em quando, chegavam à aldeia em camionetas do Estado Português, e eram distribuídas à população no Prado, em frente à garagem do Padre João, e diz-me sem demoras, como se o seu ofício estivesse em fase plena de fabrico e não se compadecesse com qualquer perda de tempo:
- Descalça-te e põe o pé aqui em cima para eu fazer o risco.
- Não se esqueça de os fazer um pouco grandes que têm que dar para o ano que vem e que durem muito. – Relembrava eu ao artífice, sabendo que os próximos socos só viriam para as calendas gregas.
- Fica descansado rapaz que tu vais crescer e os socos vão ainda andar por cá, nem que mais não seja, nos pés teus irmãos mais novos.
Fiquei descansado com a resposta que para mim foi uma garantia de qualidade e seria um descanso, pelo menos por dois anos, e enquanto os pés lá coubessem, para os meus pais.
Com um pau de ponta queimada em carvão, como lápis de grafite, lá riscou o perfil da planta do pé onde eram perceptíveis os contornos dos dedos e a silhueta côncava do calcanhar. Pareciam-me bem as dimensões e até me parecia um pé engraçado.
- Posso vir buscá-los amanhã? –Perguntei-lhe.
- Oh rapaz, anda aqui fora. – Diz-me ele conduzindo-me a um montículo de paus que mais se pareciam com “estrafugueiros” para o lume.
- Isto são paus de amieiro, - Continuou - tenho que os escavar com a machada, moldá-los com o formão e isto tudo só para fazer os rastos, fora as solas que ainda tenho que as pôr de molho. Pori para a semana, mas vai passando por cá para irmos vendo as medidas.
Conformado, mas não desiludido, encolhi os ombros em sinal de uma compreensão resignada e imaginei-me de socos calçados… novinhos,… o Tito, meu vizinho, ia ver…, lá isso ia…, até tinha pedido que me pusesse brochas no rasto em vez de borracha… iam fazer barulho ao andar… assim as pessoas notavam que tinha socos novos.
E a neve? Ah,… aí é que seria engraçado,… a neve a pegar-se às brochas… fazendo montões agarrados ao calcanhar e na frente que eu havia de sacudir batendo de lado com os socos na esquina da escaleira antes de entrar em casa.
 Só tinha que ter cuidado quando pisasse as pedras, que as brochas, ao contrário das borrachas em forma de ferradura, eram muito escorregadias. Mas valia o risco.
E ao fim de uma semana lá me dirigi ao tiu Grilo para trazer os socos.
- Depois o meu pai faz contas consigo, está bem Senhor Graciano?
- Eu depois falo com ele, rapaz, e não te esqueças de os untar bem untados, “esfregaze-os” todos com sebo, principalmente na biqueira, na gáspea, no cardaço, na lingueta e viras, que é por onde entra mais água, depois aquece-os ao lume para o sebo derreter e entranhar-se na pele, e bais ber que os pés ficam sempre sequinhos, mesmo com neve.
Não muito longe deste estabelecimento, no largo do Pelourinho, a norte da Igreja matriz, ficava a loja do tiu Carlos Sapateiro, um homem brincalhão, alto, com cabelo ralo, sempre com ar sorridente, com a comissura e o lóbulo do lado direito do lábio sempre descaído, não sei se devido a ter sempre entre dentes o fio de estopa com que cosia os sapatos, ou se era devido a qualquer problema que tivera no queixo onde apresentava um sinal, que parecia de queimadura, bastante pronunciado.
Aqui faziam-se sapatos de cabedal, botas para o trabalho rural como se chamavam. A loja era no piso térreo com a porta em frente para a fonte do Pelourinho.
Da entrada da casa, a norte, por volta do meio-dia, a tia Denérida, mulher amável e que acolhia com doçura todas as crianças, gritava-lhe para ir jantar e informava-o que já tinha tratado das galinhas enjauladas em rede de arame do galinheiro no caminho em direcção à canteira.
Era ali que o tiu Carlos passava o dia com o seu avental e suspensórios de cabedal cosendo com fios de estopa, e com a auxílio das sovelas, as solas retiradas de uma pia de madeira com água acastanhada dos banhos prolongados de todo o cabedal para o tornar maleável à moldagem das formas dos sapatos.
Nós, um grupo de ganapos em períodos pós-escolar, dos quais destaco o Tito, o Pêras, o Chêdre o Mário da Celeste e outros que por arrasto nos acompanhavam, fazíamos correrias à volta do Pelourinho e, ao passar em frente à sua porta, cantávamos:
“Sapateiro… Remendeiro… Cada ponto dá seu peido…”
E esta ladainha ia-se repetindo dia após dia, correndo ao passar junto a ele que muitas vezes nos esperava com um copo de alumínio cheio da água choca acastanhada da pia de amolecer as peles e nos atirava à cara ficando a rir-se com o seu lábio ainda mais descaído, limpando as lágrimas de riso que lhe afloravam aos olhos cansados.
Por vezes parávamos e observávamo-lo com admiração pela sua dedicação ao ofício que, diga-se, porque é pura verdade, produzia sapatos de excelente qualidade e conforto, “assentam como uma luva”, costumava dizer o meu pai.
Com esta profissão criou, que eu conheça, três magníficos filhos, o Duarte, a Maria, que emigrou para Espanha, e o Fernando que era da nossa idade e também alinhava connosco.
Certo dia de calmaria nas brincadeiras, estando o grupo sentado no tanque do Pelourinho, o tiu Carlos acerca-se da porta do estabelecimento e diz-nos:
- Oh garotos, binde cá que tenho aqui uns caramelos que a minha Maria me trouxe de Espanha, são doces, mas eu já não tenho dentes para os comer.
O Tito olha para mim e diz-me com ar desconfiado:
- Será que não está a brincar?... Mas não deve estar, que na semana passada a Maria esteve cá. Bamos lá garotos?
- Bamos…- Respondemos todos.
E, pacificamente, ele foi-nos distribuindo pequenos pedaços castanhos irregulares que mais pareciam pequenas pedras, mas, talvez os caramelos em Espanha fossem assim, pensámos.
Apercebendo-se da desconfiança que apresentávamos, o tiu Carlos garantiu-nos que eram caramelos dos bons, vendidos avulso em Espanha. E lá arrancámos nós com a guloseima para os degraus do Pelourinho para a degustar.
O Mário da Celeste foi o primeiro a mandar uma trincada no caramelo dele e a cara com que olhou para nós deixou-nos apreensivos.
Um a um provámos a nossa parte e constatámos que aqueles caramelos não eram mais que pedaços de pez (resina) para passar nos fios de estopa para coser os sapatos! Indignados e enganados, e como que lançando um grito de guerra, entoámos sem parar:
“Sapateiro remendeiro cada ponto dá sei peido….”
“Sapateiro aldrabão é trafulha e aldrabão…”
“Sapateiro remendeiro cada ponto dá seu peido…”
“Sapateiro aldrabão é trafulha e aldrabão…”
E desatámos a correr em direcção ao prado para nova brincadeira, que nesta tínhamos caído nós, que o diga o tiu Carlos que nos observava da porta a rir-se com gargalhadas despregadas de tal forma que até o avental parecia abanar, e gritava-nos:
- Quando quiseis mais caramelos vinde cá que ainda há mais.

Moral da história: “Os caramelos espanhóis não prestam”



domingo, 5 de fevereiro de 2017

SEM TÍTULO




Vejo-o-me assim
e nem me importa que me estranhem a construção
outros o fizeram antes de mim – e mais bem feito –
outros hão-de após mim soprar o pó das convenções restantes

Meus neurónios são livros publicados
livros que ainda não foram sonhados
livros vetados
livros ansiados
livros esquecidos

L I V R O S

Palavras escritas, frases desenhadas
que importa se contendem ou convergem
se são elas o tecido das minhas sinapses-ideias?

Não me zanguem a paciência com a pequenez
porque não tenho paciência – não sou de paciência
e renego a vilania
Não existe fel de peixe de Tobias
capaz de fazer-me ver aquilo para que não quero olhar
nem sequer sou o pai de Tobias
e a infâmia desmerece a providência de mim.

Des-tempo, des-espaço, des-paciência
oclusão
é tudo quanto reservo
na minha biblioteca-cérebro
para quem aspira a ser lombada
e nem chega a ser um nome.


terça-feira, 24 de janeiro de 2017

OS IRMÃOS SÃO PARA AS OCASIÕES



Por: ORLANDO MARTINS

Levanto-me para ir tomar café. O ecrã do telemóvel acende e “Deixei tudo por ela” do Zé Cabra irrompe num som galopante e estridente. Carrego no botão de atender, mais para calar aquela cacofonia, e seguro o telemóvel entre o queixo e o ombro.
- Tou…
- Companheiro, como é que vai isso?
- Olha o gajo… tudo bem mano?
- Ouve cá meu paneleiro, queres ir à festa lá cima?
- Quando é que é?
- Domingo,… último domingo de agosto, … já te esqueceste também do que é um engaço?
- Eh cum caraças… como o tempo voa,… deixa-me falar com a patroa para combinarmos o dia da partida.
- Ok, não digas nada aos velhos, vai ser uma surpresa.
- Tá bem, amanhã confirmo se é quinta ou sexta que arrancamos…
- Depois liga, um abraço.
- Tchau.
E, sexta-feira, lá nos metemos à estrada com os miúdos e as patroas a reboque. Durante a viagem o meu filho mais velho dormia e acordava de meia em meia hora.
Quando abria os olhos perguntava:
 - Já chegámos?
- Já faltou mais. – Respondia-lhe com um tom esforçadamente calmo, quase suplicando para que voltasse a dormir, que a viagem era longa e, entre o “quero fazer xixi”, “tenho fome”, “doi-me a barriga”, os quilómetros iam-se tornando cada vez maiores.
- Estão a ver ali as antenas da Nossa Senhora da Serra? Agora é que estamos mesmo a chegar.
- Oh… andas a dizer isso desde manhã. – Protestou o puto.
Passadas as bombas de gasolina do “Feliz”, espreitando para o café “Caracol”, dando uma primeira espreitadela ao Pelourinho e recordando momentos de comunidade e felizes natais na omnipresente igreja, que a ansiedade de chegar aumentava, lá parámos em frente à casa do tio António Piloto.
Silenciosamente galgámos as escaleiras de dois em dois degraus, a juventude ainda o permitia, abrimos a porta, e aquele bando de “forasteiros” invadiu a casa dos progenitores que teimavam em espremer a terra que lhes tinha dado o sustento e a possibilidade de dar uma vida diferente aos filhos.
 Ninguém em casa.
Passados alguns minutos lá apareceram eles vindos da labuta, com a sua dedicação à terra que tanto lhes tinha dado, trabalho e alegrias, e com o coração sempre ansioso e carente da companhia dos seus.
- Dão-nos qualquer coisa para comer? – Perguntou o meu irmão Zé.
- Atão num damos… sentai-vos meus filhos que vou já tratar de qualquer coisa. Deveis estar cheios de fome. – Dizia a minha mãe. 
Os beijos, abraços e suspiros de alegria pelos netos e filhos marejaram os olhos daqueles dois pais que durante quase um ano viveram numa solidão silenciosa… esperando… sempre esperando de coração aberto…
- Ainda há presunto no baixo? – Perguntava o meu irmão. – “Encerte” aí um salpicão ou uma chouricita que farto de batatas fritas ando eu.
- Vou-vos já buscar um pão ao baixo, foi feito anteontem. - Dizia a minha mãe.
Contadas as novas, as vidas e as promessas de regressar mais vezes, e depois da ceia, eu e o meu irmão resolvemos ir matar saudades de todos os lugarejos daquele recanto onde para nós os amigos e as pessoas eram a nossa casa.
Na véspera e ante véspera do domingo festivo que se avizinhava, as tascas eram o ponto de reunião dos habitantes normais e demais migrantes.
E assim, entre abraços e histórias de outrora, e outras vezes de ocasião geralmente acompanhadas de mais um copo para relembrar, a noite foi avançando… avançando… até um céu, de um azul safira, se deixar perfurar por milhares de pontos brilhantes que pareciam lançar sobre nós a cor terciária de um dourado, caindo docemente sobre os nossos sentimentos e convidando toda aquela gente à recolha dos seus lares…
A noite estava amena, e aquele eterno céu estrelado convidou-nos, qual Roque e Amigo, a efectuarmos um périplo solitário e silencioso pelas ruas da aldeia.
Mas um homem é efémero, humano, e como qualquer outro animal, atacou-nos uma necessidade física e inadiável de “arrear o calhau”. E assim, na eira por trás da nossa casa, de cócoras, com as calças e cuecas nos joelhos, lá íamos nós com alguma pressão abdominal, e um ou outro suspiro, aliviando o espírito e o físico.
Com os olhos fixos nas estrelas íamos comentando:
- Isto é lindo, parece que todas estas luzes vivem numa eterna paz de pureza.
- Quanto tempo se passou sem termos visto esta maravilha. – Respondia-lhe eu sem pressas, que o vislumbre daquela vastidão celeste embebedava qualquer um e o momento também proporcionava a reflexão.
- Na cidade, com a merda das luzes dos candeeiros, nem nos apercebemos disto.
- Sabes,… e a maior parte do tempo nem para o céu olhamos. – Respondi-lhe.
E ali estávamos nós estupefactos com o espectáculo, até eu lhe perguntar:
- Por acaso não tens aí um lenço?
Ele, distraído e embebido com a paisagem, e ainda a fazer um último esforço, tira a mão de entre os joelhos, mete-a ao bolso do casaco, bem desviado para trás, e entrega-me um lenço branco, bem dobradinho por acaso, onde se destacava o monograma “J”, deduzi que devia ser a inicial do nome dele – José.
Desembrulhei a relíquia e com ela limpei a gosto, e o melhor que pude, o meu rico “sim senhor”, que o tempo de usar umas pedras ou a folha de alguma erva já lá ía, e quando se apanhava uma urtiga pelo meio até as lágrimas mudavam de sítio.
- Ah seu cabrão dum caralho,… esse lenço foi a minha mulher que mo ofereceu no dia dos meus anos,… amanhã estou fodido, paneleiro da merda,.. eu  bem sei o que tu merecias agora… Cabrão… a limpar o cu com ele, seu maricas.
Eu, numa risota em surdina, na qual ele também teve que alinhar, e já a apertar o cinto das calças, respondi-lhe:
- Olha, para o ano que vem, pedes à tua mulher mais uns lencinhos, caso contrário dás-lhe uma enxaguadela na poça do Espinheiro e mete-lo à “sucapa” para lavar.
O lenço, coitado, lá ficou na eira a arejar, penso que, pelos anos seguintes.
Nessa noite, dado o adiantado da hora, dormimos juntos no último quarto com acesso à cortinha, o pessoal tinha-nos rejeitado no leito já quente, e posso dizer-vos que passámos mais de uma hora às gargalhadas com a aventura do lenço branco, até que a nossa mãe, farta da algazarra, nos advertiu.
- Vede lá se dormis e deixai dormir os outros, seus gandulos.
E lá entrámos num sono tardio, ainda com algumas fungadelas, debaixo dos cobertores.

Sempre considerei este ato altruísta do meu irmão…

segunda-feira, 16 de janeiro de 2017

Passaportes

V
Série A

Para começar o ano com algum exercício mental, apresento 9 fotografias referentes a passaportes para o Brasil. Palpites?

Podem consultar todos os passaportes já identificados da série A (com destino Brasil) aqui: http://freixedelo.com/rebordainhos/ 

1
Nome: Maria Amélia Martins

2
Nome: Augusto António Pereira

3
Nome: José Manuel Costa

4
Nome: José Augusto Alves

5
Nome: Maria Alice Alves

6
Nome: Silvério Augusto Martins

7
Nome: Alda de Jesus Machado
8
Nome: Maria de Fátima da Eira

9
Nome: Benedita do Nascimento Pereira

sexta-feira, 13 de janeiro de 2017

PAISAGENS DE NATAL II

Embora sempre espere e deseje a neve, a verdade é que, qualquer que seja o estado do tempo e a estação do ano, as paisagens da nossa terra provocam em mim o efeito de uma carícia na alma. Este Natal, de sol radioso e ar transparente, ofereceu-nos a paleta completa de um pintor naturalista, daqueles que, enfadados do estúdio, saíam para os campos e tingiam as telas com retratos que, ainda hoje, nos emocionam e apelam aos sentidos.

O ar limpo, ao amaciar o percurso da luz, permite que os nossos olhos descubram uma plêiade de cores e se alegrem com os tons contrastantes que sugerem frescura. A paz impõe-se aos espíritos mais inquietos. 
Bendito seja Deus pela Sua bondade.
Montes
Do sopé dos Montes para Rebordaínhos
Do sopé dos Montes para a Serra dos Pereiros



Do sopé dos Montes para a Serra dos Pereiros

Airoá

Começo do Atalho

Começo do Atalho

Começo do Atalho

Cruzinha
Cruzinha


Da casa do tio Benjamim para a Cabeça

Com este artigo, encerro o ciclo dedicado ao Natal. O próximo será da autoria do Orlando, para nos fazer rir.

domingo, 8 de janeiro de 2017

REIS

No Evangelho deste domingo (S. Mateus 2, 1-12) narra-se o episódio da visita dos reis magos a Jesus. Estes homens fizeram um percurso desconhecido, sabendo nós, apenas, que eles vieram do Oriente. Apesar de não serem de fé hebraica, prostraram-se perante o Menino e adoraram-nO. É o primeiro sinal de que o menino Deus se doa a toda a humanidade, rompendo com a velha tradição de que cada povo tem os seus deuses.

Na carta aos Efésios (2.ª leitura: Ef 3, 2-6), porque a verdade da revelação continua a ser estranha a muitos dos primeiros cristãos (que são judeus, importa lembrar), S. Paulo esclarece: "os gentios recebem a mesma herança que os judeus, pertencem ao mesmo corpo e participam da mesma promessa, em Cristo Jesus".

A ideia de que a humanidade é una em Cristo está bem patente, creio, no modo como celebramos os Reis. Ela é una no espaço (todas as casas são visitadas) e é una no tempo (todos os mortos são recordados, atendendo à paragem frente ao cemitério): somos com aqueles que estão connosco e somos com todos quantos nos antecederam, sendo Jesus quem nos liga uns aos outros e a todos a Si e ao Pai. 

A festa dos Reis é a prova de que compreendemos bem as Escrituras. Bem-haja quem persiste nela.


Este ano o careto foi o Frederico, filho do Rui e neto da tia Conceição e do sr. Frederico.

Os cantadores: Casimiro Pires; Francisco Martins; Manuel Ferreira e António Rodrigo.

Deus pague aos cantadores e ao careto, assim como ao mordomo das Almas que, este ano é o Zé Maria.
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Nota: agradeço à minha irmã Augusta o envio da fotografia e do filme. Contudo, gostaria de publicar mais. Alguma alma caridosa poderá fazer o favor de enviar algumas? Agradeço desde já.



terça-feira, 3 de janeiro de 2017

PAISAGENS DE NATAL


A nossa terra parecia uma ilha de luz no meio de um mar de névoa – os olhos deslumbram-se com a vista, mas o corpo agradece as carícias do sol. Estava frio, asseveraram os termómetros, mas só na noite de passagem de ano nos fez agasalhar mais.
Nascente
Sul: da serra de Bornes só se vê o cocuruto
Sul: o vale do Azibo submerso em névoa
Sul: S. Frutuoso, em Teixedo, não conseguia ver o céu

Sul: a névoa cresce em direcção aos Pereiros

Apesar de a água das poças congelar à superfície, a geada escondia-se nos cantos abrigados, salvo em dois dias, em que, para baixo do Nabalho, tudo era um mar de brancura, mitigando as saudades dos amantes da neve. 
Na Afonsim, destacando-se os efeitos do incêndio do Verão passado
Na Afonsim



Urze colhida em Vila Seco e rosas colhidas no horto de casa.
Ao lado do destempero das pascoelas e das urzes floridas (e das rosas), nas hortas, as pencas eram um louvar a Deus de tamanho, doçura e macieza.

Pérolas de orvalho sobre as pencas
Espigos de penca




sábado, 17 de dezembro de 2016

DESEJO DE NATAL

– Acorda, que o Menino Jesus já veio. Anda, levanta-te para veres o que deixou para ti!
Para trás ficara a ceia – de bacalhau com pencas e rabas, tudo muito bem regado com fios de azeite, encostado ao lume para descoalhar. Depois, filhós e rabanadas a brilhar…
A geada debruara o vidro da janela da cozinha e o gato Bernardo, que já entrara pela gateira, aninhava-se ao meu colo. Chegara a vez de olhar os ovos que a galinha chocava, aninhada no cesto debaixo do escano: encostados à luz da candeia deixavam perceber o crescimento do embrião e a senhora, mãe, ia-nos explicando tudo. Faltava pouco para os pintainhos nascerem e a senhora deixaria que cada uma de nós escolhesse um para ser o “seu”, para assumirmos com ele a responsabilidade de colhermos as urtigas, amassarmos os farelos e dar-lhe de comer enquanto ele não fosse capaz.
Nessa noite não haveria velada, pois cada família estava em sua casa. Rezado o terço, lembrava-nos que puséssemos os sapatinhos encostados ao lume e mandava-nos dormir.
E era com uma voz sussurrada, como se não quisesse assustar o Menino Jesus, que a senhora nos despertava em chegando a meia-noite:
– Acorda, que o Menino Jesus já veio. Anda, levanta-te para veres o que deixou para ti!
E nós levantávamo-nos, excitadas com a expectativa da surpresa. Eu dava-lhe a mão – não sabia andar sem a sua mão arrochada à minha – e, depois de atravessarmos a salinha, entrávamos na cozinha que parecia mais iluminada do que o prado no Verão.
De dentro do sapatinho tirávamos um rebuçado, uma laranja, ou qualquer outra pequena coisa e ficávamos felizes. Os nossos risos enchiam a casa e era esse o presente que o Menino Jesus lhe dava a si e ao pai. O brilho do vosso olhar era o agradecimento mais terno que Ele escutava nessa noite. Também eu o via e guardava-o.

Mãe, venha despertar-me outra vez!




quarta-feira, 7 de dezembro de 2016

GILBERTO


Nem sei que diga, tamanha é a tristeza. O Gilberto despediu-se hoje de nós e vai a sepultar amanhã à tarde em Rebordaínhos. Ontem tinha feito anos. 

Parece que custa mais a acreditar quando as pessoas são bem humoradas como ele, tendo sempre na ponta da língua uma graça para bem-dispor a todos. 

Recordo os inúmeros momentos, na nossa casa de Lisboa que ele frequentava por causa das muitas cirurgias a que teve de se submeter devido aos ferimentos sofridos em Moçambique;  momentos hilariantes apesar dos motivos ("Senhor Manuel, ainda tem pão de ontem?" perguntou ao padeiro. "Sim", respondeu este. "Bem feito, que o não vendeu todo!", rematou ele a conversa, recordando que, na véspera, o sr. Manuel lhe não vendera pão, alegando que o tinha reservado).

Recordo, sobretudo, e com enorme gratidão, que ele e a Dorinda  proporcionaram à minha tia Helena e aos meus pais um fim de vida em família e na sua terra. Deus lhe(s) pague.

À tia Delfina, à Dorinda, ao Hélder, ao Hugo e ao Edgar, as minhas mais sinceras condolências.
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A fotografia é de Junho de 2005: estávamos a festejar os anos do João, o meu marido.
Faz hoje 11 anos que o Zé Mateus, meu cunhado, faleceu.
Zé e João, dois bons amigos do Gilberto a quem Deus também já levou.
Quanto a mim, parece que estava a adivinhar, quando me pus a escrever sobre a Canteira.

segunda-feira, 5 de dezembro de 2016

CANTEIRA


O caminho terá pouco mais que 1m de largo, mas agora, com o uso escasso, limita-se à dimensão das pegadas humanas. É a canada da canteira, talvez a mais pequena das canadas que atravessam o povo, ou das que dele saem. Se fosse rua de uma cidade, diríamos que desemboca numa praça ampla (a eira dos Pereiras/Fernandes, a poente) e num largo (para onde se voltam as casas do sr. Bernardino, da sra. Delfina, o palheiro do sr. Adriano e as traseiras do sr. Carlos “Chiote”, a nascente). É sítio sempre húmido e absedo, porque encravado entre muros.
É da nascente que dá o nome à canada que me apetece falar: a fonte da canteira. Que é fonte nós sabemos – afinal, da ferida aberta naquela fraga brota uma água fresquíssima onde enchíamos os cântaros para dessedentar os animais. Mas, porquê «canteira»?
Efabulando:
Se canteira é “pedreira donde se corta pedra para construções” (Dicionário de Moraes, fins do séc. XVIII), seria toda aquela zona uma enorme pedreira onde os fundadores da nossa terra se abasteceram para construir as suas moradas? As enormes pedras, erguidas como menires à entrada da eira, poderão ter saído dali e fazem jus ao nome…
E se canteira for “pedra que se põe nos cantos ou esquinas das paredes. Lapis angularis”, conforme ensina Bluteau (início do séc. XVIII)? Atendendo à primeira parte da entrada: terão saído daquele lugar as magníficas cantarias que formam os cunhais das nossas casas?
Prefiro ater-me à segunda parte do verbete de Bluteau: Lapis angularis –  pedra angular, a pedra que encerra a construção do arco e o sustenta . A pedra extraída do lugar da nascente é grande, destinada, por certo, a um edifício que o povo visse, comummente, como merecedor de desvelo maior: a igreja, único edifício que, na nossa terra, ostenta um arco, um belíssimo e amplo arco romano todo ele feito de cantaria.
Será que, quando olhamos para a pedra angular, sobre a qual se ergue o selo heráldico do bispo de Miranda a assegurar que a nossa paróquia lhe pertence, conseguimos identificar a proveniência de tão delicada cantaria?
O arco delimita a entrada no altar-mor, o espaço mais sagrado das igrejas, aquele onde se encontra Cristo consagrado; Cristo, a pedra que os construtores rejeitaram e se tornou pedra angular. Será da canteira a pedra que, na nossa igreja, simboliza Jesus?
Da fenda aberta na rocha brotou água.
No deserto, durante o êxodo do Egipto, foi ordenado a Moisés: Ferirás a rocha e dela sairá água, e o povo beberá. (Livro do Êxodo, 17, 6)
Que Moisés terá fendido as nossas fragas para que delas brotassem as águas? Que construtor terá decidido não rejeitar a rocha e a levou para o templo daquele que é fonte de vida?

Tudo quanto deixo escrito não passará de devaneio. Mas quis partilhá-lo convosco.

quarta-feira, 30 de novembro de 2016

A BELEZA DA NEVE… OU QUASE UM MILAGRE

Por: ORLANDO MARTINS


                    "Vergonha não é parecer louco por ajudar e defender os animais.
                     Vergonha é ver a sofrer e não fazer nada!"

Eram quatro horas da tarde. O vento de noroeste que soprava da serra roxeava a ponta do nariz e os lóbulos e hélices das orelhas. Como brincadeira de alguma malvadez oferecíamos a nossa solução: - Queres que te aqueça as orelhas? – E esfregávamos com as mãos os apêndices em hipotermia até as lágrimas da vítima se começarem a soltar, bem como alguns palavrões…

Quando estas condições eram acompanhadas por umas nuvens baixas e negras, Nimbostatus, segundo os eruditos, ou nuvens que trazem neve segundo os velhos e o seu saber de experiência, podíamos quase anunciar, tal qual no Boletim Meteorológico dos nossos dias, que amanhã íamos ter neve de certeza.


- Até amanhã tiu Atilano…
- Até amanhã rapaze… e vai pró lume que hoje inda neva…
- Deus o queira, e a tia Cândida já está ao borralho?
- Tá a fazer o caldo, e depois caminha, que isto está bravo, a candeia da Alzira já alumia há quase uma hora e a Eduarda já fechou portas.

Estávamos já em Dezembro e, a estas horas da tarde, já toda a gente se apressava a acomodar os animais, recolher alguma lenha do sequeiro para o lume que iria aquecer um pouco a casa e tratava-se de começar a preparar a ceia.

Daquela hora em diante já poucas almas se atreveriam a sair à rua. Comeu-se o caldo entre paredes, contaram-se lendas e façanhas de outrora enquanto com as tenazes se aconchegava a cinza às brasas e se deixava apagar o último tição. Pedia-se a bênção e, como cordeiros, lá íamos para dentro dos cobertores.

A noite passou-se no mais santo dos sonhos, e a brisa fresca da manhã que invadiu a casa, pela abertura da porta da rua pelo meu pai que ia buscar mais lenha para acender a lareira, fez-nos acordar para um novo dia.

Estava tudo tão calmo… tão silencioso… tão esquisito, que fui espreitar à pedra da escaleira.
Estava tudo branquinho, um manto espesso de neve cobria a aldeia deserta, os montes ao longe não se distinguiam da paisagem, parecia que estávamos num limbo de pureza e paz…

- Nevou pai,… nevou…, acha que vai durar muito a derreter?
- Pela maneira como isto está ainda vai piorar, agasalha-te e vai lá p´ra dentro…
- Agora vou dar de comer às bacas, galinhas e coelhos e a tua mãe faz-vos já    qualquer coisa para comer. Raios partam este fumo, mas isto quando começar a arder já passa. 
Passados alguns minutos oiço o meu pai aos gritos a chamar pela minha mãe.

- Oh Maria, … Oh Maria…
- Raios partam o homem, o que é que queres?
- Tu ontem encerraste bem as galinhas e a pata com os dez parrecos pequenos?
- Ou penso que sim, num estão no galinheiro?
- Nem no galinheiro nem em parte alguma, se não foi uma raposa, estão todos mortos debaixo nevão. Não se aguentavam a noite inteira com tanto frio.

Após inúmeras e infrutíferas buscas, enquanto subíamos os degraus gelados da escaleira para entrar em casa, vislumbrámos um movimento debaixo de uma giesta coberta de neve no sequeiro encostado à escaleira.
- Tchiu… tenho cá uma fé que eles vieram para aqui. – Disse o meu pai.


Retirando cuidadosamente a neve e afastando alguns guiços em volta, apareceu a asa branca da pata que, durante a noite, tinha coberto e aconchegado, quase por completo, aqueles peluches amarelos que a tinham seguido como filhos obedientes sentindo que, debaixo dos braços e do coração dos progenitores, se sentiam salvos e seguros.

Infelizmente, estavam todos inanimados e as arestas de gelo, que se haviam formado, fechavam-lhe os olhos e os bicos, e a fofura da sua penugem amarela tinha-se tornado numa espécie de trapo de desperdícios.

- Oh Maria, vai lá cima arranja um cobertor, atiça o lume e espalha um pouco de brasas… depressa, vai lá mulher…

Não sei se verti alguma lágrima, mas uma coisa vos garanto, o meu coração chorava, e quando vi o meu pai tirar o casaco, apanhar aqueles corpos inanimados, cabeças descaídas e uma infância tão inocente desperdiçada, aconchegá-los ao peito e correr escaleira acima em direcção ao lume, uma réstia de esperança invadiu-me por completo.
                                               
Deitou os infelizes patinhos no cobertor junto à lareira, eu puxei uma tripeça e fitava os pobres animais inanimados, pensando se haveria na realidade milagres.

- Temos que esperar… e rezar… temos que esperar… - Dizia o meu pai.

O tempo andava lentamente, os segundos tornavam-se minutos e os minutos tornavam-se horas.
Para minha surpresa, um dos petizes moribundos, ao fim de algum tempo, abriu lentamente os olhos, as suas pernitas começaram a mexer…

- Pai… Pai… este ainda está vivo…
- Vamos esperar mais um bocado… temos que ter fé…

Lentamente um, depois outro e outro foram renascendo e uma felicidade enorme invadiu aquela casa. Apenas dois tiveram sorte diferente.

Se não foi um milagre, foi amor…
E o amor não é um milagre?