ℇstá tudo muito demudado do que era dantes! Nos nossos dias, esta história não seria possível, mas naqueles idos do fim da guerra, a segunda que enrodilhou o Mundo, as coisas sucederam conforme passarei a contar.
Corria um daqueles Invernos de frio tão zãeno que o calor das entranhas não basta para amornar o ar que se respira e deixa os pulmões tão engaranhados como os dedos nus que segam o nabal. Só em alturas como essas é que os homens de trás da Serra trocam a liberdade da rua pela clausura da habitação onde o tempo lhes rende por nada haver que fazer.
Foi num dia assim que o sr. Rogério se viu em Bragança, depauperado das forças necessárias para enfrentar a ladeira que o levaria ao hospital.
– Eu já não posso andar!
Enquanto proferia o desabafo, despiu o sobretudo e atirou-o para o ombro da Ester. Depois, encostou-se à parede de uma casa, perto da “marisqueira” que ficava em caminho, e ali se quedou, tremente de febre, exausto dos poucos passos que dera desde a Praça da Sé, onde o sr. Lopes os deixara, até àquela parede que, agora, lhe sustinha o corpo.
Em poucos dias, era a terceira vez que vinha a Bragança e tudo por causa de um mal-estar que o atacara a ele e à mulher, a tia Aninhas de Rebordaínhos. Ambos consultaram o médico que lhes receitou uma injecção que ministraram um ao outro, pois ambos eram mestres na arte, praticada vezes sem conta no braço de quem quer que lho pedisse. Com ela as coisas correram bem e começava a melhorar, mas a ele inchou-lhe o braço de tal maneira que precisou de nova consulta. Desta feita, regressou com uma bisnaga de pomada de beladona que deveria aplicar sobre o inchaço. Mas o diabo tem quereres e, em vez do alívio esperado, o mal parece que se espalhou, não lhe dando um minuto de sossego. Embora já descrente das ciências médicas, decidiu-se a tornar ao hospital. Porque a mulher ainda estava a convalescer, determinou-se que seria a Ester a acompanhá-lo. Ela, rapariga da família que vivia lá em casa, apesar de nunca ter ido à cidade, enfrentou o desafio com destemor, porque no viço dos seus vinte anos nada lhe metia medo. Calhou encontrarem o sr. Lopes no Espinheiro que, porque seguia o mesmo destino, se ofereceu para os levar de carro.
E agora estavam ali, de pé, calados um e outro; ele sem nada poder fazer, ela sem saber o que fazer. Passado algum tempo – nem saberiam dizer quanto, porque nestas aflições os minutos custam tanto a passar como as horas – ouviu-se uma voz amiga:
– Que andas a fazer por aqui? Perguntou o “Sobe e Desce”, polícia e companheiro de profissão do sr. Rogério, que estava casado com uma parente da tia Glória de Rebordaínhos.
– Olha onde vim deixar os meus ossos! Foi a resposta que ouviu.
– Ó homem, tu não digas isso! Anda, que eu ajudo-te a chegar ao hospital!
Lá foram os três, mas como a segadora de vidas tinha aquela filada, seguiu-lhes no encalço, bicando mais a cada passo dado e, mal deram entrada no hospital, chamou-o a si antes que algum médico se acercasse dele e o pudesse tratar. Com efeito, o doutor pouco mais fez do que atestar o óbito e informar os acompanhantes de que o doente falecera de um fleimão que lhe rebentara no pulmão.
– E agora, o que fazer? Perguntava a Ester, a si e às freiras que, naquele tempo, geriam o hospital.
– A menina não tem por cá ninguém conhecido?
– Eu não senhora! Só sei que está cá uma mulher da minha terra, a ajudar a fazer alheiras em casa de três irmãs a quem chamam as “Bartilotas”!
– Vá-se a saber delas, porque alguém há-de ser capaz de lhe dizer onde moram.
À Ester custou-lhe ter dito aquele “uma mulher”, mas o receio de incomodar as freiras fê-la poupar nas palavras. Na verdade, era a sua tia Aurora, irmã do falecido, quem se encontrava na cidade. Que notícia tinha para lhe dar, coitada!
Seguiu o conselho das freiras e, perguntando a uns e inquirindo a outros, chegou à residência das três irmãs solteiras onde a tia Aurora largou a massa das alheiras para, aflita, ir em seu socorro e ater à situação.
Naquele tempo já havia ambulâncias, mas ou Bragança não tinha nenhuma, ou a que houvesse não estaria disponível. O certo é que a tia Aurora e a Ester, em conversa com as freiras do hospital, tiveram de encontrar uma solução: chamar um táxi que as levasse, e ao finado, de volta à aldeia. A princípio, o chofer agradou-se do serviço, mas quando percebeu que tinha de transportar um morto, negou-se. Que não, onde já se viu? E se a Guarda me apanha, nestes tempos em que aparece sem que a gente saiba de onde?
Mais do que a intervenção das freiras, lembrando-lhe a obra de caridade que faria, deve ter valido o encorajamento fardado do “Sobe e Desce”: afinal, aquele homem era uma autoridade e não queria passar por desobediente.
Sentaram o sr. Rogério no lugar do meio do banco de trás, ladeado pela tia Aurora e por um criado do hospital que as freiras fizeram o favor de dispensar. A Ester sentou-se no banco ao lado do condutor.
Em Bragança nem nevava muito, mas em chegando ao cimo de Arufe, frente à Quinta do Fidalgo, a neve estava de tal modo acumulada que o carro não conseguia romper. Mais outra para ajudar! Ainda por cima começava a anoitecer! O motorista bem queria voltar para trás, mas as mulheres não lho permitiram. Depois de muito discutirem, lá o convenceram a esperar enquanto iam a pé buscar ajuda. Sozinho é que o não deixassem! Então, a Ester e o criado meteram-se a caminho e a tia Aurora ficou com ele, a atenuar-lhe os receios.
Se um carro não passa para cima, para baixo também não. Estava, por isso, posta de lado a hipótese de pedir favores a quem na terra tivesse automóvel. A solução que, aflita, a tia Aninhas encontrou, foi jungir as vacas ao carro e trazer nele, de volta a casa, quem de manhã tinha partido.
❆❆❆
Corria um daqueles Invernos de frio tão zãeno que o calor das entranhas não basta para amornar o ar que se respira e deixa os pulmões tão engaranhados como os dedos nus que segam o nabal. Só em alturas como essas é que os homens de trás da Serra trocam a liberdade da rua pela clausura da habitação onde o tempo lhes rende por nada haver que fazer.
Foi num dia assim que o sr. Rogério se viu em Bragança, depauperado das forças necessárias para enfrentar a ladeira que o levaria ao hospital.
– Eu já não posso andar!
Enquanto proferia o desabafo, despiu o sobretudo e atirou-o para o ombro da Ester. Depois, encostou-se à parede de uma casa, perto da “marisqueira” que ficava em caminho, e ali se quedou, tremente de febre, exausto dos poucos passos que dera desde a Praça da Sé, onde o sr. Lopes os deixara, até àquela parede que, agora, lhe sustinha o corpo.
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Em poucos dias, era a terceira vez que vinha a Bragança e tudo por causa de um mal-estar que o atacara a ele e à mulher, a tia Aninhas de Rebordaínhos. Ambos consultaram o médico que lhes receitou uma injecção que ministraram um ao outro, pois ambos eram mestres na arte, praticada vezes sem conta no braço de quem quer que lho pedisse. Com ela as coisas correram bem e começava a melhorar, mas a ele inchou-lhe o braço de tal maneira que precisou de nova consulta. Desta feita, regressou com uma bisnaga de pomada de beladona que deveria aplicar sobre o inchaço. Mas o diabo tem quereres e, em vez do alívio esperado, o mal parece que se espalhou, não lhe dando um minuto de sossego. Embora já descrente das ciências médicas, decidiu-se a tornar ao hospital. Porque a mulher ainda estava a convalescer, determinou-se que seria a Ester a acompanhá-lo. Ela, rapariga da família que vivia lá em casa, apesar de nunca ter ido à cidade, enfrentou o desafio com destemor, porque no viço dos seus vinte anos nada lhe metia medo. Calhou encontrarem o sr. Lopes no Espinheiro que, porque seguia o mesmo destino, se ofereceu para os levar de carro.
E agora estavam ali, de pé, calados um e outro; ele sem nada poder fazer, ela sem saber o que fazer. Passado algum tempo – nem saberiam dizer quanto, porque nestas aflições os minutos custam tanto a passar como as horas – ouviu-se uma voz amiga:
– Que andas a fazer por aqui? Perguntou o “Sobe e Desce”, polícia e companheiro de profissão do sr. Rogério, que estava casado com uma parente da tia Glória de Rebordaínhos.
– Olha onde vim deixar os meus ossos! Foi a resposta que ouviu.
– Ó homem, tu não digas isso! Anda, que eu ajudo-te a chegar ao hospital!
Lá foram os três, mas como a segadora de vidas tinha aquela filada, seguiu-lhes no encalço, bicando mais a cada passo dado e, mal deram entrada no hospital, chamou-o a si antes que algum médico se acercasse dele e o pudesse tratar. Com efeito, o doutor pouco mais fez do que atestar o óbito e informar os acompanhantes de que o doente falecera de um fleimão que lhe rebentara no pulmão.
– E agora, o que fazer? Perguntava a Ester, a si e às freiras que, naquele tempo, geriam o hospital.
– A menina não tem por cá ninguém conhecido?
– Eu não senhora! Só sei que está cá uma mulher da minha terra, a ajudar a fazer alheiras em casa de três irmãs a quem chamam as “Bartilotas”!
– Vá-se a saber delas, porque alguém há-de ser capaz de lhe dizer onde moram.
À Ester custou-lhe ter dito aquele “uma mulher”, mas o receio de incomodar as freiras fê-la poupar nas palavras. Na verdade, era a sua tia Aurora, irmã do falecido, quem se encontrava na cidade. Que notícia tinha para lhe dar, coitada!
Seguiu o conselho das freiras e, perguntando a uns e inquirindo a outros, chegou à residência das três irmãs solteiras onde a tia Aurora largou a massa das alheiras para, aflita, ir em seu socorro e ater à situação.
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Naquele tempo já havia ambulâncias, mas ou Bragança não tinha nenhuma, ou a que houvesse não estaria disponível. O certo é que a tia Aurora e a Ester, em conversa com as freiras do hospital, tiveram de encontrar uma solução: chamar um táxi que as levasse, e ao finado, de volta à aldeia. A princípio, o chofer agradou-se do serviço, mas quando percebeu que tinha de transportar um morto, negou-se. Que não, onde já se viu? E se a Guarda me apanha, nestes tempos em que aparece sem que a gente saiba de onde?
Mais do que a intervenção das freiras, lembrando-lhe a obra de caridade que faria, deve ter valido o encorajamento fardado do “Sobe e Desce”: afinal, aquele homem era uma autoridade e não queria passar por desobediente.
Sentaram o sr. Rogério no lugar do meio do banco de trás, ladeado pela tia Aurora e por um criado do hospital que as freiras fizeram o favor de dispensar. A Ester sentou-se no banco ao lado do condutor.
Em Bragança nem nevava muito, mas em chegando ao cimo de Arufe, frente à Quinta do Fidalgo, a neve estava de tal modo acumulada que o carro não conseguia romper. Mais outra para ajudar! Ainda por cima começava a anoitecer! O motorista bem queria voltar para trás, mas as mulheres não lho permitiram. Depois de muito discutirem, lá o convenceram a esperar enquanto iam a pé buscar ajuda. Sozinho é que o não deixassem! Então, a Ester e o criado meteram-se a caminho e a tia Aurora ficou com ele, a atenuar-lhe os receios.
Se um carro não passa para cima, para baixo também não. Estava, por isso, posta de lado a hipótese de pedir favores a quem na terra tivesse automóvel. A solução que, aflita, a tia Aninhas encontrou, foi jungir as vacas ao carro e trazer nele, de volta a casa, quem de manhã tinha partido.
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