Parecia-lhe que caminhava há já muito tempo, mas não sabia dizer quanto. Saíra ainda o galo não cantara e estugara o passo de modo a estar bem longe quando o padrinho acordasse e, dando pela sua falta, revirasse o Brinço e os arredores à sua procura. Em linha recta, a distância entre o Brinço e as Cabanas pouco passará das cinco léguas, mas naquelas cercanias linha recta é coisa que não existe, sendo necessário multiplicar por dois para se obter a verdadeira extensão. Era afoiteza de mais para um garoto, a bem dizer, mal tirado dos cueiros. Na véspera, gastara o tempo que medeia entre a ceia e o deitar a delinear o trajecto que o levaria para bem longe daquela terra de desterro e passou a noite desassossegado porque não queria perder a hora em que todos dormissem a sono solto. O Inverno assentara arraiais.
O padrinho nem era má pessoa, mas naquele dia deu-lhe para o moer de pancada, teimando que fora de propósito que lhe mijara nos sapatos metidos no sequeiro para ensebar no dia seguinte. Como poderia ser de propósito, se os sapatos estavam tapados com guiços e ele os não podia ver? Bem tentou explicar-se mas, em vez de o ouvir, o padrinho tirou o cinto das calças e bateu-lhe com o lado da fivela, para mais o ferir. Suportou a dor até o outro se cansar e, enquanto apanhava, tomou a decisão de partir. Não era estimado naquela casa onde o padrinho adoptara, agora, a prática da mulher, sempre a zurzir nele como vento em ramo tenro.
– Vou para casa de meu avô que é meu amigo!
Ala ficara para trás. Passara pela terra sem ver fumegar os telhados, sinal de que todos dormiam ainda. O tremeluzir da alvorada já lhe permitia confirmar que uma carambina espessa cobria os caminhos e, ao longe, avistava encostas e encostas de terra semeada de pão à espera de nascer. Concluiu que ia bem e que devia meter-se a direito até Corujas e, dali, arredar um pouco à esquerda em direcção a Comunhas. Pensou que seria melhor evitar as povoações, não fosse alguém reconhecê-lo e associá-lo ao padrinho, que, em seu entender, era conhecido em todo este mundo e no outro. Além disso, àquela hora os lobos já lhe não deviam saltar ao caminho, pois, saciados pela caça nocturna, estariam aninhados nas tocas, aconchegando os filhos. Pensar nos lobos fê-lo estremecer. Ouvira, vezes sem conta, histórias antigas e recentes de alcateias que se organizavam para dar caça aos viajantes solitários, seguindo-os e emboscando-os nos lugares em que era impossível falharem. À lembrança de que alguns sobreviveram por terem acendido uma fogueira, levou a mão ao bolso e sossegou: os fósforos, tão ciosamente guardados pela mulher do padrinho, continuavam ali e eram a única coisa que trazia daquela casa maldita. Se ela o apanhasse, levaria uma tunda, pela certa! Nesse momento deu-se conta de que, mais do que pelo medo dos lobos, estremecera por perceber que, da vida, recebia menos do que os filhos das feras. Esses eram protegidos e acarinhados por seus pais, mas o seu mandara-o para longe de casa, como se atirasse um traste imprestável para a rua. A má sorte tocara-lhe a ele, por ser o mais velho dos rapazes. Tinha nove anos acabados de fazer e, ala! vai servir para casa de teu padrinho, para aprenderes a ser homem e para que eu me lembre menos da tua mãe que morreu por causa de um filho; não foste tu mas tanto faz, porque também nasceste dela, assim como todos os outros e não posso encarar convosco sem que a dor e a raiva me corroam as entranhas! Os outros rapazes, em chegando à idade, seguirão o mesmo caminho! O pai não lhe disse estas partes, mas ele adivinhara-as porque se habituara a estudar-lhe o semblante desde que, havia quatro anos, a mãe se esvaíra em sangue ao fazer nascer o José Delfim.
O comportamento do pai mudara como do dia para a noite. Era alegre e afectuoso, incansável no amanho das propriedades que tinha nas Cabanas e em Rebordaínhos, para que nunca o pão faltasse em casa e a sua Albertina jamais se arrependesse do dia em que aceitou casar-se com ele. Amava os filhos e amava a vida que lhe sorria porque a tinha consigo. Depois ela morreu e viver tornou-se numa agonia que ansiava ver terminada. Tudo deixou de lhe importar! Procurou afugentar a dor refugiando-se na taberna e no jogo. Perdia sempre, mas as leiras com que saldava as dívidas como que encurtavam a distância que o separava do lugar em que ela estava. Em casa, os filhos choravam pela mãe e em todos via traços do seu rosto bem-amado. Olhar para eles significava tê-la ali sem lhe poder tocar e isso era ferro em brasa na sua chaga aberta. Tinha que os afastar, porque não suportava a consumição da dor. Por enquanto, só o João, o mais velho dos rapazes, estava capaz de sair de casa. Lembrou-se do seu parente que vivia no Brinço, que até era padrinho do garoto, entendeu-se com ele e despachou-lho. Esperaria dois anos para fazer o mesmo ao António e logo se veria quando é que o mais novo estaria em condições de seguir pelo mesmo caminho. Das raparigas, todas mais velhas do que os rapazes, já tratara: pô-las em cima de um burro e mandou-as para casa do avô, nas Cabanas. Ficaria ele sozinho em Rebordaínhos.
Caminhar estava a tornar-se mais difícil desde que passara Comunhas. Embrenhara-se nos montes para poupar distância, mas as ladeiras eram compridas e o matagal cerrado obrigava-o a andar ao travesso. O frio era tal, que o caroujo só despegava das árvores quando se lhes agarrava aos ramos rasteiros para se amparar na subida e, ao cair no chão gelado, fazia um barulho de vidrinho a quebrar-se. Mas o pior é que ia descalço e as silvas laceravam-lhe a carne. Sentou-se a descansar e retomou o fio do pensamento. Recordou as brincadeiras com o António, seu irmão dilecto, a quem alguns chamavam o “Pincha” porque, apesar de ser mais novo, pinchava a todos quando jogavam ao queda. Lembrou-se das irmãs, a Ana, a Valentina e a Maria que, quase mulheres, precisavam de si para as amparar. Depois pensou na mãe e visualizou o seu rosto meigo com tanta nitidez que quase lhe pareceu que estava ali presente. Os seus traços eram finos, mas o que mais se salientava eram aqueles olhos que falavam sem que a boca precisasse de dizer, “tu és o meu filho muito querido!” Eram olhos de mãe, daqueles que nos afagam por inteiro porque nos amam plenamente. Quem dizia que a sua tia Aninhas se parecia com ela é porque nunca tinha ouvido aqueles olhos a falar!
Estava parado havia tempo de mais. O frio apossara-se-lhe do corpo que tremia intensamente. Já não sentia os pés e esfregou-os um no outro com energia. Tinha que retomar o caminho. Ergueu-se e, num gesto que iria conservar para a vida, meteu as mãos nos bolsos, encostou os braços ao corpo e, com um ligeiro torção, puxou as calças para cima. Aos primeiros passos os pés queixaram-se, magoados por pisarem a terra enrijecida pela geada. Não lhes deu ouvidos e prosseguiu no seu andar que era balançado por assentar inteiramente o pé no chão. Perscrutou o céu e este mostrou-lhe carantonha de borrasca. Arrepiou-se e tentou aconchegar-se melhor na jaqueta para se proteger, ao mesmo tempo que fazia contas ao percurso. Deduziu o número de aldeias pelo número de áreas cultivadas que atravessara e concluiu que estaria no termo de Valongo. Só lhe faltava atravessar a serra para chegar a Espadanedo que não era longe. De Espadanedo às Cabanas é que seria pior, tal a altura dos montes e a fundura dos barrancos, perigosos porque ocultos pela grande densidade de giestas e de urzes, ou das temíveis silvas que, naquela altura do ano, se encontravam tão rijas e secas que nem as cabras lhes tocavam. Seria um subir e descer numa canseira medonha, mas tudo iria correr bem porque, aí, estaria em zona conhecida. Este deslindar do percurso fê-lo sentir-se confiante e redobrou o ânimo, apesar do frio que apertava cada vez mais e dos farrapos de neve que começavam a cair. Sentiu, no entanto, alguma preocupação devido à névoa escura e densa que cobria os vales e já trepava, ameaçadora, pelas encostas. Se tamanho nevoeiro o apanhasse poderia confundir o caminho e perder-se!
À medida que avançava, os seus receios confirmavam-se. Agora, o horizonte que podia enxergar ficava-lhe à distância de um palmo, não lhe permitindo avistar, sequer, de uma árvore para outra. A neve caía intensamente, em farrapos enormes, e o chão já se tingira todo de branco. Escorregava a cada passo e os tropeções que dava nas pedras com os seus pés nus magoavam-no tanto que as lágrimas lhe saltavam dos olhos em borbotões. Percebeu que a temperatura tinha descido muito porque, ao limpar a cara, encontrou as lágrimas transformadas em gelo. Desesperou e, pela primeira vez, soltou um brado que traduzia toda a dor que transportava na alma:
– Ó minha mãe, ajude-me!
Depois gritou muito, cada vez mais alto, até que caiu num choro profundo que o deixou exausto. Sentiu a tentação de parar e descansar encostado ao toro de um carvalho, mas teve medo de adormecer e que a neve o cobrisse de morte. Se ao menos tivesse um capote como aquele em que o padrinho se embrulhava!
Seguiu a marcha, penosa porque o ar gélido lhe feria os pulmões e a neve o obrigava a semicerrar os olhos. Como ela caía, acumulando-se no chão e obrigando-o a levantar cada vez mais as pernas para conseguir caminhar! Deixou de tentar medir o tempo e a distância. Deixou, até, de sentir dor, mas prosseguia agarrado à ideia de que tinha que seguir em frente. Cada passo andado era uma vitória contra a ordem de desistir que o corpo lhe dava, mas contrariava-o porque se lembrava que a casa do avô era uma casa de calor. Lembrou-se, então, dos fósforos que trazia no bolso. Não lhe serviriam para acender uma fogueira pois toda a lenha estava molhada, mas a sua chama, por pequena que fosse, sempre o ajudaria a aquecer as mãos. A princípio custou-lhe, porque os dedos engaranhados não lhe obedeciam, mas assim que conseguiu e viu aquele pequeno lume ateado sentiu um conforto indescritível. Acendeu mais dois para redobrar a sensação e, logo que se consumiram, meteu as mãos debaixo da jaqueta e enfrentou a tormenta abraçado a si próprio. Deu-lhe, então, para tomar decisões em relação ao futuro.
Quando fosse grande casaria com uma mulher cujos olhos falassem tão docemente como os da sua mãe. Teriam muito filhos e amá-los-iam mais do que Deus Pai quis ao Seu e esses filhos que Deus lhes desse seriam aquilo que quisessem ser, porque ele, nem que tivesse que trabalhar como um condenado, haveria de os ajudar a encontrar vida boa. E nunca se lastimaria nem arrependeria dos muitos torrões que viesse a desfazer com a enxada! Um dia, a fotografia da sua filha mais velha sairia nos jornais, com uma legenda a dizer: “se todos fossem assim!” e ele, como forma de manifestar o orgulho, sentar-se-ia naquela pedra saliente das escaleiras da casa que seu pai tinha em Rebordaínhos, e que então seria a sua, e ofereceria um copo de vinho a quem quer que passasse. Como as palavras são dom feminino, a mulher encarregar-se-ia das explicações e, enquanto mostrasse o jornal, declararia sorrindo que a filha concluíra o liceu e aquela fotografia fora tirada durante a realização de um exame. Acolheria as brincadeiras dos filhos como beijos no coração e se alguma lhe saísse chocha de todo, em vez de a repreender rir-se-ia com ela. Em pequenos, todos fariam balancé das suas pernas enquanto estivesse sentado ao lume durante os serões de Inverno e também não se esqueceria de deixar o fundinho do caldo para eles sorverem deliciados. Queres? Ouvia-se perguntar a um deles. Chamaria a todos por nomes ternos e assaria bilhós com que encheria os bolsos para ter sempre alguma coisa pronta para lhes dar. Nesses pequenos gestos mostraria a dimensão do amor que lhes dedicava. Se, por alguma maldade do destino, algum deles partisse para longe e deixasse de saber notícias, meteria pernas ao caminho e achá-lo-ia, nem que fosse no país dos franceses e nem que tivesse de suportar a prisão por causa disso. E se a sorte fosse ainda mais cruel e lhos levasse a todos para a guerra… nesse caso, não saberia o que fazer, a não ser chorar às escondidas e rezar com toda a fé para que lhos devolvessem vivos. Só por um filho admitiria voltar a chorar mas, assim Deus o quisesse, as lágrimas que o sufocaram lá atrás seriam as últimas que vertera.
Parara de nevar e o nevoeiro começava a dissipar-se. Olhou em volta e caiu-lhe a alma aos pés ao perceber que não sabia onde estava. Perdera-se! E agora? Já deviam ser horas de o Sol se pôr e de noite não poderia enfrentar a floresta. Tinha medo e o estômago doía-lhe porque não comera nada desde manhãzinha. O desânimo apoderou-se dele e, pela primeira vez, não resistiu à ordem de parar e dormir que o corpo lhe dava. Deixou-se cair, derrotado, e nem se importou que o seu rosto ficasse encostado à neve gelada. Já não fazia diferença!
Depois, não sabe se sonhou, ouviu distintamente a voz de sua mãe:
– João, estás em Vila Seco, no termo de Rebordaínhos. A casa do avô fica para o outro lado! Anda, dá-me a tua mão.
Com muito amor do seu forgalho