domingo, 28 de novembro de 2010

A MEU PAI


UM DIA NA VIDA DO JOÃO QUE VIRIA A SER O FOUCE
Parecia-lhe que caminhava há já muito tempo, mas não sabia dizer quanto. Saíra ainda o galo não cantara e estugara o passo de modo a estar bem longe quando o padrinho acordasse e, dando pela sua falta, revirasse o Brinço e os arredores à sua procura. Em linha recta, a distância entre o Brinço e as Cabanas pouco passará das cinco léguas, mas naquelas cercanias linha recta é coisa que não existe, sendo necessário multiplicar por dois para se obter a verdadeira extensão. Era afoiteza de mais para um garoto, a bem dizer, mal tirado dos cueiros. Na véspera, gastara o tempo que medeia entre a ceia e o deitar a delinear o trajecto que o levaria para bem longe daquela terra de desterro e passou a noite desassossegado porque não queria perder a hora em que todos dormissem a sono solto. O Inverno assentara arraiais.

O padrinho nem era má pessoa, mas naquele dia deu-lhe para o moer de pancada, teimando que fora de propósito que lhe mijara nos sapatos metidos no sequeiro para ensebar no dia seguinte. Como poderia ser de propósito, se os sapatos estavam tapados com guiços e ele os não podia ver? Bem tentou explicar-se mas, em vez de o ouvir, o padrinho tirou o cinto das calças e bateu-lhe com o lado da fivela, para mais o ferir. Suportou a dor até o outro se cansar e, enquanto apanhava, tomou a decisão de partir. Não era estimado naquela casa onde o padrinho adoptara, agora, a prática da mulher, sempre a zurzir nele como vento em ramo tenro.
– Vou para casa de meu avô que é meu amigo!

Ala ficara para trás. Passara pela terra sem ver fumegar os telhados, sinal de que todos dormiam ainda. O tremeluzir da alvorada já lhe permitia confirmar que uma carambina espessa cobria os caminhos e, ao longe, avistava encostas e encostas de terra semeada de pão à espera de nascer. Concluiu que ia bem e que devia meter-se a direito até Corujas e, dali, arredar um pouco à esquerda em direcção a Comunhas. Pensou que seria melhor evitar as povoações, não fosse alguém reconhecê-lo e associá-lo ao padrinho, que, em seu entender, era conhecido em todo este mundo e no outro. Além disso, àquela hora os lobos já lhe não deviam saltar ao caminho, pois, saciados pela caça nocturna, estariam aninhados nas tocas, aconchegando os filhos. Pensar nos lobos fê-lo estremecer. Ouvira, vezes sem conta, histórias antigas e recentes de alcateias que se organizavam para dar caça aos viajantes solitários, seguindo-os e emboscando-os nos lugares em que era impossível falharem. À lembrança de que alguns sobreviveram por terem acendido uma fogueira, levou a mão ao bolso e sossegou: os fósforos, tão ciosamente guardados pela mulher do padrinho, continuavam ali e eram a única coisa que trazia daquela casa maldita. Se ela o apanhasse, levaria uma tunda, pela certa! Nesse momento deu-se conta de que, mais do que pelo medo dos lobos, estremecera por perceber que, da vida, recebia menos do que os filhos das feras. Esses eram protegidos e acarinhados por seus pais, mas o seu mandara-o para longe de casa, como se atirasse um traste imprestável para a rua. A má sorte tocara-lhe a ele, por ser o mais velho dos rapazes. Tinha nove anos acabados de fazer e, ala! vai servir para casa de teu padrinho, para aprenderes a ser homem e para que eu me lembre menos da tua mãe que morreu por causa de um filho; não foste tu mas tanto faz, porque também nasceste dela, assim como todos os outros e não posso encarar convosco sem que a dor e a raiva me corroam as entranhas! Os outros rapazes, em chegando à idade, seguirão o mesmo caminho! O pai não lhe disse estas partes, mas ele adivinhara-as porque se habituara a estudar-lhe o semblante desde que, havia quatro anos, a mãe se esvaíra em sangue ao fazer nascer o José Delfim.

O comportamento do pai mudara como do dia para a noite. Era alegre e afectuoso, incansável no amanho das propriedades que tinha nas Cabanas e em Rebordaínhos, para que nunca o pão faltasse em casa e a sua Albertina jamais se arrependesse do dia em que aceitou casar-se com ele. Amava os filhos e amava a vida que lhe sorria porque a tinha consigo. Depois ela morreu e viver tornou-se numa agonia que ansiava ver terminada. Tudo deixou de lhe importar! Procurou afugentar a dor refugiando-se na taberna e no jogo. Perdia sempre, mas as leiras com que saldava as dívidas como que encurtavam a distância que o separava do lugar em que ela estava. Em casa, os filhos choravam pela mãe e em todos via traços do seu rosto bem-amado. Olhar para eles significava tê-la ali sem lhe poder tocar e isso era ferro em brasa na sua chaga aberta. Tinha que os afastar, porque não suportava a consumição da dor. Por enquanto, só o João, o mais velho dos rapazes, estava capaz de sair de casa. Lembrou-se do seu parente que vivia no Brinço, que até era padrinho do garoto, entendeu-se com ele e despachou-lho. Esperaria dois anos para fazer o mesmo ao António e logo se veria quando é que o mais novo estaria em condições de seguir pelo mesmo caminho. Das raparigas, todas mais velhas do que os rapazes, já tratara: pô-las em cima de um burro e mandou-as para casa do avô, nas Cabanas. Ficaria ele sozinho em Rebordaínhos.


***

Caminhar estava a tornar-se mais difícil desde que passara Comunhas. Embrenhara-se nos montes para poupar distância, mas as ladeiras eram compridas e o matagal cerrado obrigava-o a andar ao travesso. O frio era tal, que o caroujo só despegava das árvores quando se lhes agarrava aos ramos rasteiros para se amparar na subida e, ao cair no chão gelado, fazia um barulho de vidrinho a quebrar-se. Mas o pior é que ia descalço e as silvas laceravam-lhe a carne. Sentou-se a descansar e retomou o fio do pensamento. Recordou as brincadeiras com o António, seu irmão dilecto, a quem alguns chamavam o “Pincha” porque, apesar de ser mais novo, pinchava a todos quando jogavam ao queda. Lembrou-se das irmãs, a Ana, a Valentina e a Maria que, quase mulheres, precisavam de si para as amparar. Depois pensou na mãe e visualizou o seu rosto meigo com tanta nitidez que quase lhe pareceu que estava ali presente. Os seus traços eram finos, mas o que mais se salientava eram aqueles olhos que falavam sem que a boca precisasse de dizer, “tu és o meu filho muito querido!” Eram olhos de mãe, daqueles que nos afagam por inteiro porque nos amam plenamente. Quem dizia que a sua tia Aninhas se parecia com ela é porque nunca tinha ouvido aqueles olhos a falar!

Estava parado havia tempo de mais. O frio apossara-se-lhe do corpo que tremia intensamente. Já não sentia os pés e esfregou-os um no outro com energia. Tinha que retomar o caminho. Ergueu-se e, num gesto que iria conservar para a vida, meteu as mãos nos bolsos, encostou os braços ao corpo e, com um ligeiro torção, puxou as calças para cima. Aos primeiros passos os pés queixaram-se, magoados por pisarem a terra enrijecida pela geada. Não lhes deu ouvidos e prosseguiu no seu andar que era balançado por assentar inteiramente o pé no chão. Perscrutou o céu e este mostrou-lhe carantonha de borrasca. Arrepiou-se e tentou aconchegar-se melhor na jaqueta para se proteger, ao mesmo tempo que fazia contas ao percurso. Deduziu o número de aldeias pelo número de áreas cultivadas que atravessara e concluiu que estaria no termo de Valongo. Só lhe faltava atravessar a serra para chegar a Espadanedo que não era longe. De Espadanedo às Cabanas é que seria pior, tal a altura dos montes e a fundura dos barrancos, perigosos porque ocultos pela grande densidade de giestas e de urzes, ou das temíveis silvas que, naquela altura do ano, se encontravam tão rijas e secas que nem as cabras lhes tocavam. Seria um subir e descer numa canseira medonha, mas tudo iria correr bem porque, aí, estaria em zona conhecida. Este deslindar do percurso fê-lo sentir-se confiante e redobrou o ânimo, apesar do frio que apertava cada vez mais e dos farrapos de neve que começavam a cair. Sentiu, no entanto, alguma preocupação devido à névoa escura e densa que cobria os vales e já trepava, ameaçadora, pelas encostas. Se tamanho nevoeiro o apanhasse poderia confundir o caminho e perder-se!

À medida que avançava, os seus receios confirmavam-se. Agora, o horizonte que podia enxergar ficava-lhe à distância de um palmo, não lhe permitindo avistar, sequer, de uma árvore para outra. A neve caía intensamente, em farrapos enormes, e o chão já se tingira todo de branco. Escorregava a cada passo e os tropeções que dava nas pedras com os seus pés nus magoavam-no tanto que as lágrimas lhe saltavam dos olhos em borbotões. Percebeu que a temperatura tinha descido muito porque, ao limpar a cara, encontrou as lágrimas transformadas em gelo. Desesperou e, pela primeira vez, soltou um brado que traduzia toda a dor que transportava na alma:

– Ó minha mãe, ajude-me!

Depois gritou muito, cada vez mais alto, até que caiu num choro profundo que o deixou exausto. Sentiu a tentação de parar e descansar encostado ao toro de um carvalho, mas teve medo de adormecer e que a neve o cobrisse de morte. Se ao menos tivesse um capote como aquele em que o padrinho se embrulhava!

Seguiu a marcha, penosa porque o ar gélido lhe feria os pulmões e a neve o obrigava a semicerrar os olhos. Como ela caía, acumulando-se no chão e obrigando-o a levantar cada vez mais as pernas para conseguir caminhar! Deixou de tentar medir o tempo e a distância. Deixou, até, de sentir dor, mas prosseguia agarrado à ideia de que tinha que seguir em frente. Cada passo andado era uma vitória contra a ordem de desistir que o corpo lhe dava, mas contrariava-o porque se lembrava que a casa do avô era uma casa de calor. Lembrou-se, então, dos fósforos que trazia no bolso. Não lhe serviriam para acender uma fogueira pois toda a lenha estava molhada, mas a sua chama, por pequena que fosse, sempre o ajudaria a aquecer as mãos. A princípio custou-lhe, porque os dedos engaranhados não lhe obedeciam, mas assim que conseguiu e viu aquele pequeno lume ateado sentiu um conforto indescritível. Acendeu mais dois para redobrar a sensação e, logo que se consumiram, meteu as mãos debaixo da jaqueta e enfrentou a tormenta abraçado a si próprio. Deu-lhe, então, para tomar decisões em relação ao futuro.

Quando fosse grande casaria com uma mulher cujos olhos falassem tão docemente como os da sua mãe. Teriam muito filhos e amá-los-iam mais do que Deus Pai quis ao Seu e esses filhos que Deus lhes desse seriam aquilo que quisessem ser, porque ele, nem que tivesse que trabalhar como um condenado, haveria de os ajudar a encontrar vida boa. E nunca se lastimaria nem arrependeria dos muitos torrões que viesse a desfazer com a enxada! Um dia, a fotografia da sua filha mais velha sairia nos jornais, com uma legenda a dizer: “se todos fossem assim!” e ele, como forma de manifestar o orgulho, sentar-se-ia naquela pedra saliente das escaleiras da casa que seu pai tinha em Rebordaínhos, e que então seria a sua, e ofereceria um copo de vinho a quem quer que passasse. Como as palavras são dom feminino, a mulher encarregar-se-ia das explicações e, enquanto mostrasse o jornal, declararia sorrindo que a filha concluíra o liceu e aquela fotografia fora tirada durante a realização de um exame. Acolheria as brincadeiras dos filhos como beijos no coração e se alguma lhe saísse chocha de todo, em vez de a repreender rir-se-ia com ela. Em pequenos, todos fariam balancé das suas pernas enquanto estivesse sentado ao lume durante os serões de Inverno e também não se esqueceria de deixar o fundinho do caldo para eles sorverem deliciados. Queres? Ouvia-se perguntar a um deles. Chamaria a todos por nomes ternos e assaria bilhós com que encheria os bolsos para ter sempre alguma coisa pronta para lhes dar. Nesses pequenos gestos mostraria a dimensão do amor que lhes dedicava. Se, por alguma maldade do destino, algum deles partisse para longe e deixasse de saber notícias, meteria pernas ao caminho e achá-lo-ia, nem que fosse no país dos franceses e nem que tivesse de suportar a prisão por causa disso. E se a sorte fosse ainda mais cruel e lhos levasse a todos para a guerra… nesse caso, não saberia o que fazer, a não ser chorar às escondidas e rezar com toda a fé para que lhos devolvessem vivos. Só por um filho admitiria voltar a chorar mas, assim Deus o quisesse, as lágrimas que o sufocaram lá atrás seriam as últimas que vertera.


***

Parara de nevar e o nevoeiro começava a dissipar-se. Olhou em volta e caiu-lhe a alma aos pés ao perceber que não sabia onde estava. Perdera-se! E agora? Já deviam ser horas de o Sol se pôr e de noite não poderia enfrentar a floresta. Tinha medo e o estômago doía-lhe porque não comera nada desde manhãzinha. O desânimo apoderou-se dele e, pela primeira vez, não resistiu à ordem de parar e dormir que o corpo lhe dava. Deixou-se cair, derrotado, e nem se importou que o seu rosto ficasse encostado à neve gelada. Já não fazia diferença!
Depois, não sabe se sonhou, ouviu distintamente a voz de sua mãe:

– João, estás em Vila Seco, no termo de Rebordaínhos. A casa do avô fica para o outro lado! Anda, dá-me a tua mão.


Com muito amor do seu forgalho

quinta-feira, 25 de novembro de 2010

ARTESÃOS DE REBORDAINHOS




Por

ANTÓNIO BRAZ PEREIRA




Como diz a adágio: “filho de peixe sabe nadar”, e assim também é com o Carlos Águeda. Para quem se não recorda dele, é irmão do Avelino, tristemente falecido num acidente de moto em Bragança, e do “Birlau” que, como tantos outros desejosos de uma vida melhor, resolveu desertar da terra mãe, rumo à capital ou estrangeiro. O Carlos, com suas mãos de oiro, herdadas do pai que, no seu tempo, manobrava o zinco e com ele realizava peças úteis, dá asas à imaginação e cria obras de arte, miniaturas que iluminam a curiosidade de uns e provocam a inveja dos menos dotados.

Conheci-o miúdo, magricelas, espevitado quando, em tempos, acompanhava com o Sr. Carlos “Chiote”, ou passava por minha casa à procura do meu sobrinho seu amigo Vítor, para uma saída de rotina, que não passava do café, ou de um passeio em volta do povoado. Hoje, que é casado e pai de filhos, apareceu-me por acaso, numa rede social, e um homenzarrão, fisicamente bem constituído, com saúde e boa disposição como aliás sempre denotou. Não lhe tinha agradecido pessoalmente a maravilhosa ilustração de um dos meus textos e já ele me propunha outras peças, frescas de tão acabadinhas de fazer, referentes aos Rebordainhenses: o tractor do Nelzeira, a malhadeira do tio Alfredo Guerra ou do António Chiote e, sobretudo, o carro do macho da tia Emília do tio Aniceto. Sobretudo, por causa do muito respeito e afecto que lhe merece. Embora a não visite frequentemente, tem as suas raízes na nossa terra, aquela que o viu nascer. Na nossa conversa sublinhou o carinho e os sacrifícios da mãe e as vagas recordações que tem do pai que morreu sendo ele de tenra idade.

Apesar de considerada terra fria, Rebordainhos acolheu, carinhosamente, saltimbancos, mendigos e forasteiros que por lá se mantiveram: a Joaninha e seu saco de mão e um caldeiro repleto de coisas desnecessárias e o Camilo, de pele escura por ser africano, que, quando com um copito, tocava batuque com o que lhe vinha à mão. Certa vez em que houve fogo nos os montes, e ouvindo o sino tocar a rebate, dirigiu-se a correr para o local, acompanhando a maior parte da população, com o intuito de apagar as chamas que ameaçavam terrenos de centeio próximos. O Camilo, que seguia correndo à minha beira, ao chegar junto da casa do tio Couceiro viu a Adosinda à porta, dirigiu-lhe estas palavras:

– Ó Sra Adosinda, guarde-me para aí estes dez tostões não os vá perder no incêndio…

Havia também o “Rádio” que permaneceu longo tempo por lá. Penso que a alcunha lhe venha de tanto falar, ou porque trazia sempre com ele um rádio pequeno a emitir música. E o tio Guerra, homem trabalhador e de paz; os ciganos “Laregos” e os do tio Fernando, e tantos outros que, na sua passagem, nos empolgaram com a representação do “Amor de Perdição”, da “Rosa do Adro” e do “Zé do Telhado” nos palheiros do tio Alfredo "Guerra" e do tio João "Santo" apetrechados para tal.

Voltando ao artesanato, lembro o tio Graciano “Grilo” e os seus socos de amieiro aos quais aplicava brochas redondas, se fossem socas das senhoras, ou de duas orelhas se fossem para os homens. Estas ferragens não só impediam as escorregadelas como minimizavam o desgaste rápido do pau. As solas velhas de uns sapatos serviam para a parte superior. Lembro os dois sapateiros, tio Carlos e suas “candongas” e tio João, mais aprumado, já de outra geração. Recordo, também, o Fernando cigano e sua esposa, habilidosos na produção de cestas de verga. A verga tinha tratamento específico: era amolecida em água, depois era descascada e, finalmente, passada pela chama, tudo enquanto estivesse verde, para diminuir o risco de ruptura.

Tínhamos dois excelentes carpinteiros, o tio Hermenegildo e o Rafael, que não só eram peritos na construção de carros de bois, engarelas, caniços, arados, jugos, trasgas como, também, eram capazes de pôr telhados.

Para trabalhar o ferro, as tarefas eram entregues ao tio Ramos na forje de cima e ao "Doutor Carroucho” na da fraga grande do Prado. Os foles gigantes deixavam a miudagem boquiaberta, sobretudo se os via em funcionamento. Sacas e sacas de carvão, feito de cepos de urze e trazidos do Cabeço Cercado e dos Montes, eram despejados na grande pia de cantaria rija, azulada, onde o fole chegava com seu bico de assoprar para acender as brasas e trabalhar “bater” o ferro. O som propagava-se pelo bairro todo, enquanto as fagulhas deliciavam o olhar como se fosse fogo de artifício. Neste lugar, com o saber dos citados, eram apontados ferros de gaviar, pica-chão, ganchas, enxadões, ferragens para as rodas dos carros e respectivos pregos, enxadas, ponteiros, enfim, quase todo o material em ferro fundido.

Tecedeiras, da minha lembrança, tínhamos a tia Irene, com o seu tear de vai e vem, cruzando centenas de vezes, de um lado para o outro, os fios de lã ou de algodão e, mesmo, farrapos velhos recortados em peças sem serventia que seriam usados para fazer mantas de trapos.

Nestes tempos, em Rebordainhos, para além dos nomes de baptismo, quase toda a gente era identificada pela nomeada. O mais graduado, “Juiz”, estava uma certa noite na taberna de baixo, que o Álvaro tinha à sociedade com o tio Carlos “Chiote”, a presenciar um jogo de batota. A noite já ia alta quando um carro da GNR parou à porta. Alguns agentes cercaram o edifício enquanto outros entraram com rapidez e lançaram mãos ao dinheiro que permanecia sobre a mesa. Depois de ter identificados todos os presentes, um agente ouviu um barulhito por detrás de uma porta onde colocavam as pipas. Dirigiu-se lentamente para lá, abriu a porta e, com um foco de luz, apontou para um canto onde o tio Juiz se escondia. – Olha o vinhateiro!!! Disse o Guarda, enquanto este voltava cabisbaixo para junto dos outros, a fim de ser identificado.

O tio Juiz não julgava, nem o Doutor dava consultas, assim como o Engenheiro não assinava projectos, nem o coronel comandava nenhum Batalhão, mas eram pessoas que bem mereciam tais títulos de nobreza, pela dedicação respeitosa e humildade partilhada.

terça-feira, 23 de novembro de 2010

PEDRO

Não importa por que lado se olhe, a morte é sempre uma coisa atroz. Mais atroz, ainda, quando atinge quem é novo. Hoje levou-nos o Pedro, filho do Rafael e da Ester e meu primo muito querido.

Que Deus o tenha consigo e ajude a mulher e o filho, os pais e os irmãos a suportar tamanha dor.

O funeral será amanhã, dia 24, em Rebordaínhos, pelas três da tarde.

sábado, 20 de novembro de 2010

ROSTOS

Porque é importante que nos lembremos de todos, aqui fica uma fotografia de quem é mais novo. Reconhecemo-los? Como de costume, vou esperar pelas vossas sugestões.




LUGAR: casa da escola

...............1 - Eugénia (da Marquinhas)
...............2 - Carlos (do Evangelista)
...............3 - Josefa (da Ana de Arufe)
...............4 - Marta (da Clotilde)
...............5 - João Luís (dos Pereiros)
...............6 - Rogério (da Marquinhas)
...............7 - Ivone (da Maria Albertina)
...............8 - Cristina (da Maria Albertina)
...............9 - Pedro (neto do Guilherme dos Pereiros)
...............10 - Aires (da Esmeralda)
...............11 - Amaro (da Maria Albertina)
...............12 - Luís (do Fernando)
...............13 - Miguel (da Júlia da Quinta)
...............14 - Sónia (do Valente)

quinta-feira, 18 de novembro de 2010

PRÉMIO DARDOS

Os mais curiosos hão-de ter reparado que, lá para baixo na barra lateral, estão indicados os nomes (com a respectiva ligação) de alguns blogues. Um deles é o da nossa amiga Eduarda, do Sons e Sentidos, página muito interessante e esteticamente muito bela. A Eduarda, aderindo ao espírito e às regras do "Prémio Dardos", teve a amabilidade de nos distinguir com ele, o que se traduz, já, na segunda distinção. Da primeira vez fui incapaz de cumprir as regras do prémio e, como os burros, mantenho-me tal e qual. Desta vez vou transcrevê-las, mas deixo ao critério dos leitores a sugestão de nomes de outros blogues para que possa indicá-los. Está, pois, nas vossas mãos.

Muito obrigada à Eduarda, pelo amor a Rebordaínhos, pela amizade e pela distinção. E sempre digo que visitá-la em sua casa faz muito bem à alma.

Por sugestão da Lurdes Pereira, são os seguintes os nomeados:

Cousas de Macedo de Cavaleiros, do Cavaleiro Andante
Diário de um Jardim , da Sandra Rocha
Barbitúrico da Alma , do Miguel Pires Cabral


REGRAS:

O Prémio Dardos é o reconhecimento dos ideais que cada blogueiro emprega ao transmitir valores culturais, éticos, literários, pessoais, etc. que, em suma, demonstra sua criatividade através do pensamento vivo que está e permanece intacto entre suas letras e suas palavras.

As regras são:
- Exibir a imagem do selo no blog
- Exibir o link do blog responsável pela indicação
- Escolher 10, 15 ou 30 blogues para dar a indicação e avisá-los.

domingo, 14 de novembro de 2010

CONTAS


PORCA OU VACA?


Era uma vez um homem que foi à feira e comprou uma porca muito grande. Saíram-lhe os ladrões ao caminho e roubaram-lhe a porca. Os ladrões eram os donos da casa onde tinha ficado ao ir para a feira, mascarados. Sem o saber, o homem decidiu pernoitar na mesma casa e os ladrões, para que ele se fosse embora, ao deitar-se, puseram-lhe uma abóbora, partida ao meio, dentro da cama. Mas o homem entendeu tudo! De noite, levantou-se e foi com uma moca à cama do capitão dos ladrões. Batia, batia, batia e dizia:

– É porca ou vaca? Ele dizia que era vaca.

O dono da porca não parava de bater e o chefe dos ladrões disse-lhe:

– Vá àquela gaveta e leve o dinheiro que quiser. Deixe-me!

O chefe e os companheiros, cheios de medo, fugiram para o campo e esconderam-se num nabal. Ficaram com a cabeça no chão e o cu no ar. O dono do nabal foi buscar nabos ao campo e pensava que aquilo eram pedras e sacudia-lhes os nabos no cu. O capitão ficou muito mal. Então, o dono da porca vestiu-se de médico e foi lá para o procurar. Levava um pau cheio de pregos. Continuou a bater e a perguntar:

– Porca ou vaca?

O chefe tornou-lhe a dizer que fosse à gaveta e levasse o dinheiro que quisesse.

O homem vestiu-se outra vez, mas de sacerdote, e a criada dos ladrões chamou o chefe para que se fosse confessar. Novamente lhe tornou a bater:

– É porca ou vaca? E assim continuou, até que lhe despejou todo o cofre.


Moral que eu tirei da história: assim se prova que o crime não compensa!
___________
Encontrei um artigo muito interessante sobre o porco bísaro na página da Confraria de Chaves. Transcrevo só um pedacinho:

J.F Macedo Pinto em 1878 no Compêndio de Veterinária escrevia:
(...) “1º Typo Bizaro ou Céltico – As raças deste typo descendem do javali comum e pertencem exclusivamente à Europa.
(...) “Em Trás-os-Montes, Minho, Beiras e na Estremadura ao norte do Tejo predomina este typo; distinguindo-se suas variedades pela corpulencia côr e maior ou menor quantidade de cerdas. Encontram-se porcos que medem 1,50 metros da nuca à cauda e quasi 1 metro de altura, dando em cevões 200 a 250 kilogrammos. (...)

quinta-feira, 11 de novembro de 2010

DITOS DO POVO

NOVEMBRO

A minha perspectiva

A perspectiva da Augusta


Do cerejo ao castanho, bem me amanho;
Do castanho ao cerejo, mal me vejo.

Dos Santos ao Natal, Inverno natural.
No dia de S. Martinho, vai à adega e prova o vinho.
No dia de S. Martinho, lume, castanhas e vinho.
Verão de S. Martinho são três dias e mais um bocadinho.
Se queres pasmar teu vizinho lavra, sacha e esterca pelo S. Martinho.
Pelo S. Martinho, prova o teu vinho, ao cabo de um ano já não te faz dano.
Pelo S. Martinho mata o teu porco e bebe o teu vinho.
Pelo S. Martinho semeia favas e cebolinho.
Água-pé, castanhas e vinho faz-se uma boa festa pelo S. Martinho.
Novembro à porta geada na horta.
Trinta dias tem Novembro, Abril, Junho e Setembro; de vinte e oito, só há um, e os mais têm trinta e um.

A castanha tem três capas de Inverno: a primeira mete medo, a segunda é lustrosa e a terceira é amargosa.
A castanha veste três camisas: uma de tormentos, outra de estopa e outra de linho.
A noz e a castanha é de quem a apanha.
Castanha bichosa, castanha amargosa.
Castanha quente, só com aguardente
Castanha que está no caminho é do vizinho.


Altos altentes
carapinhas carapentes
dá uma risada
e caem-lhe os dentes.
............................O que é?

Tenho camisa e casaco
Sem remendo nem buraco
Estoiro como um foguete
Se alguém no lume me mete.

Se me rio... de mim sai uma donzela
Mais donzela do que eu
Ela vai com quem a leva
Eu fico com quem me deu.

segunda-feira, 8 de novembro de 2010

BAIRRO DE À CHAVE [2.ª parte]

por

ANTÓNIO BRAZ PEREIRA

Dedico o meu texto aos filhos de Rebordainhos já falecidos, e aos seus entes queridos vivos, que não puderam visitá-los no dia dos Fiéis Defuntos.

O convívio, entre a população, apesar das diferenças sociais e financeiras existentes era, aparentemente, cordial. Só na aparência porque, na realidade, os pobres eram os que sempre vergavam diante dos que possuíam abundância alimentar, bens ou títulos, uns herdados, outros adquiridos pela labuta constante, árdua e ambiciosa.

Se sondássemos os agregados familiares de Rebordainhos, estes poderiam dividir-se em três categorias: abastança, remedeio e necessidade. Nestes, o provérbio, “casa onde não há pão, todos ralham e ninguém tem razão”, manifestava-se como uma evidência. Era uma luta constante pela sobrevivência, tendo em conta os magros meios que o destino impunha. Alguns submetiam-se; outros escolhiam o inconformismo; uns eram optimistas e outros pessimistas.

Havia os bons e os maus pais de família, todas elas numerosas devido à falta de meios contraceptivos, sem esquecer a grande influência da religião católica. A concepção de filhos era um automatismo. A submissão da mulher às obrigações de esposa e às exigências incontestáveis dos maridos, muitos deles machistas todo-poderosos, incontroláveis quando à noite, já tarde, voltavam a casa, embriagados e sem um tostão nos bolsos, após longas horas na taberna a jogar e beber copos de vinho, alheios aos sentimentos inerentes ao dever de pais. Revoltados e inconscientes, agrediam os seus: à esposa, fisicamente, com pancada forte; aos filhos, moralmente, pois viam-se chorosos, com fome, e impotentes perante tal besta feroz e capaz de tudo. Estes filhos, por força, haveriam de guardar sequelas e traumatismos para o resto das suas vidas.

Eram essas humildes e dedicadas mulheres que carregavam e transportavam todas as culpas e responsabilidades. Ainda que inocentes, era sobre elas que caíam todas as injustiças e a elas é que era apontado o dedo da vergonha e do desprezo. Muitas foram mães solteiras, com seis, sete ou mais filhos, de variados pais incógnitos, como narravam naquele tempo as certidões do Registo Civil.

Vivia-se num País onde vigorava a lei do mais forte, do mais poderoso; onde os pobres só tinham direito ao silêncio, ao conformismo, à submissão, ao trabalho duro e penoso em troca de um pão de centeio ou de uma cesta de batatas que, à noite, levavam para casa, orgulhosos e felicíssimos por terem algo para matar a fome, pelo menos aquela noite, aos filhos numerosos …

As grandes propriedades pertenciam à classe das casas de “abastança,” que se contavam pelos dedos de uma mão. Vinham por herança, mantinham-se pela persistência no trabalho e acrescentavam-se por compra ou penhoras. Quantas terras penhoradas não puderam ser resgatadas por falta dos 10, 20, 30 ou 50 escudos impossíveis de amealhar! Certas casas, outrora fartíssimas, chamadas “grandes”, arruinaram-se por falta de empenho, zelo e coragem para gerir um trabalho árduo, consistente, embora avassalador. Os pais desleixavam-se, refugiando-se nos jogos e nos copos de vinho bebidos nas tascas, voltando para casa já a noite ia avançada, embriagados e mais endividados ainda, com dívidas que sabiam jamais poder pagar. Esta herança deixada aos filhos contaminou-os, e a maior parte deles seguiram os mesmos caminhos tortuosos de que só se arrependiam nas poucas horas que dedicavam à reflexão. Na sua dependência, o copo de vinho e a batota eram mais apetecíveis, de acesso livre e muito fácil. O choro das esposas e dos filhos já não os comovia, a violência transportava-os ao de lá do auto-controlo emocional, moral e físico, violência sem remorsos, por isso, sem remissão. A questão das dívidas teve, ao longo dos anos da minha lembrança, graves consequências no seio de uma população carenciada e dependente, encaminhada para a delinquência: furtos, assaltos à mão armada e, até, assassínios.

Ser pobre não significava, apenas, não ter nada; era também o desprezo, o abandono, a indiferença, a morte provocada por qualquer doença, ainda que fácil de curar. A doença era pior quando batia à porta daqueles que não tinham um tostão nem conhecimentos nas hostes da saúde pública, como foi o caso daquele miúdo que morreu à mingua, dia após dia, com uma broncopneumonia, por não aparecer no seu caminho uma alma bondosa que o levasse ao hospital, onde a administração de penicilina e dois ou três dias de repouso lhe teriam salvo a vida. Tempos depois, assim já não aconteceu com outro rapaz, com menos dois anos de idade, mas de família privilegiada, que foi salvo. Aos meus ouvidos, e durante toda a minha vida, soarão os gemidos daquele mártir, pedindo socorro! No coração, terei sempre a repugnância pela discriminação social!

No bairro de à Chave não havia ricos e, entre os moradores, existia uma cumplicidade de entreajuda e solidariedade. Também eles se contavam entre os jeireiros, contratados segundo as suas competências: coragem, fortaleza e dedicação para segar os fenos ou o centeios, arrancar batatas, etc., enchendo os palheiros, tulhas, cilos ou adegas daqueles que, tendo mais, poderiam vender o que lhes sobrasse.



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frases de Ben Zoma (04:01 Pirkei Avot)

" Quem é sábio?" - A pessoa que aprende a partir de todas as pessoas...

" Quem é poderoso?" - Aquele que domina a inclinação para o Mal...

" Quem é rico?"- O que se alegra em sua Parte...

" Quem é honrado?"- Aquele que honra os outros seres humanos...

domingo, 7 de novembro de 2010

GENTES DO BAIRRO DE À CHAVE


tio João (Picarete), filho Ricarte com seu filho Filipe e...


Tinha pensado ilustrar a segunda parte do belíssimo texto do Tonho com as fotografias das pessoas que mencionou. Duas circunstâncias contribuíram para que tal não acontecesse. Em primeiro lugar, a falta de resposta de alguns descendentes impediram-nos de coligir todas as imagens que pretendíamos e em segundo lugar, sendo esta determinante, critérios editoriais levaram-me a preferir intercalar as duas partes do artigo do Braz com a publicação das fotografias recolhidas. A segunda parte do artigo, de tão sensível, merece uma leitura sem distracções. Está já agendada para ser publicada amanhã.

tia Angélica e tio Arnaldo................................. tia Maria Cândida e tio João

......
Emídio (Corrécio).................................... Emídio e Ascensão

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tio César........................................................... tia Hélia

tia Hélia

quinta-feira, 4 de novembro de 2010

BAIRRO DE À CHAVE


por

ANTÓNIO BRAZ PEREIRA


Sempre que nos ocorrem recordações dos tempos vividos, e à medida que o tempo vai passando (veloz a partir dos cinquenta anos, paciente entre os vinte e os quarenta, lento, muito lento, até chegarmos aos dezoito anos), elas actuam em nós de modo contraditório: ora assumimos conduta reticente à divulgação de um passado, feliz ou então amargurado, ora falamos orgulhosamente das coisas aprazíveis, enquanto tentamos, com manto de veludo, ocultar ou ignorar outras que a realidade dos tempos nos impôs, e que actualmente nos envergonham tendencialmente.

Conheci uma aldeia, a minha Aldeia, onde nasci e vivi e sempre carreguei no meu coração pelos muitos caminhos percorridos. Narrações diversas, divergentes, dissociações, tornaram-se lentamente, profundamente, uma realidade fictícia, que a imaginação pessoal e fértil arrasta pouco a pouco, como um pesado sentimento de culpa, de tolerância comprimida, misturando-se um remorso, saliência de vaidade orgulhosa, da completa realização imortalizadora dos sonhos.

Quando a minha avó (a quem chamávamos mãe Lana) faleceu, teria eu seis ou sete anos. Nessa altura viemos morar para sua casa, situada no bairro de baixo, na à Chave. Era a terceira casita, à esquerda de quem entra em Rebordainhos, vindo de Rossas. Por essa altura a Igreja tinha caído e, por causa das obras necessárias, procedeu-se à transferência, para o Cemitério, dos restos mortais das pessoas aí sepultadas sob o soalho de madeira apodrecida. Também o Cemitério fica no bairro de à Chave.

A primeira casa, caiada e baixa, com umas escadinhas de cimento transversais à rua e uma pequenina varanda que dava acesso à porta da cozinha, era a do tio Benjamim. Uma janelita que, voltada para a rua principal, deixava que a luz penetrasse na sala através dos vidros sujos, era o seu único luxo. Esta família, a quem a má sorte marcou com uma doença visual hereditária, teve, ainda, a desdita de ver um dos filhos, que tinha a minha idade, ser vítima de meningite que lhe trouxe gravíssimas sequelas. O José Augusto viria a falecer com uns vinte e poucos anos, por acidente, numa agueira de um lameiro, lá para os lados da Teixeira.

Montados num burro velho, com uma redução visual de 80%, o tio Benjamim, a tia Elvira e o Zé Augusto lá iam todos os dias, não importa se chovia e nevava ou se fazia sol, levar e trazer o correio, pelo caminho acidentado que era o carreirão de Arufe, num percurso de 4km até à Estação de Rossas. Abrigavam-se do frio e da chuva, ou esperavam a chegada da camioneta que trazia o correio, na tasca do “azeiteiro” junto à estrada nacional, tasca quase sempre cheia de homens jogando às cartas e bebendo uns copitos de vinho tinto. Depois da espera voltavam para Rebordaínhos, ensopados em água ou neve, gelados pelo vento forte e cortante que lhes dificultava o passo e tornava desgastante o caminho, exigindo tudo isso uma coragem extrema e um levar das forças ao limite. Cristão muito praticante, o tio Benjamim, quando em mortórios ou mesas de reza, rezava pelos santos, alguns com nomes um tanto estrambólicos, e até houve uma vez em que, não se lembrando de mais ninguém por quem rezar… rezou pelo “parreco”!

Encostada à do tio Benjamim (com parede meeira), de construção antiga, de pedra rija faseada para o alinhamento e telhado de caleira, ficava outra casa. Uma porta grande e velha dava acesso à cozinha térrea, e na outra extremidade, outra porta com dois degraus para se entrar na grande sala, pelo menos em comprimento, onde se realizaram numerosos bailes e outras reuniões. Essa casa, após a venda, era a casa do Fernando e família, ciganos muito estimados pela população, educados e trabalhadores cujos dois filhos eram amigos da rapaziada com quem conviviam sem complexos nem restrições.

A casa da “mãe-Lana” – a casa de meus pais – também era geminada com outra, que viria a ser doada às duas filhas menores da Assunção, em compensação pela morte do pai no trágico acidente ocorrido na curva dos roubões. Tinha umas escaditas de cantaria (que serviam as duas casas) e uma varanda onde era costume abrigar a lenha da chuva no Inverno.

Neste bairro bem povoado, havia uma encosta enlameada que, de curva tão apertada, foi sempre o cabo dos trabalhos para quem a queria subir com carro de bois ou a motor. Quantas vezes foi necessário rebocar os que ali chegavam e que se ficavam pelo meio da encosta, expostos aos olhares curiosos do Sr. Joaquim “Malino” do Emídio “Corrécio” e do tio “Cachulas” que espreitavam através de uma guarita feita na cantaria (talvez para esse efeito, já que a entrada da casa era por cima, assim como a do tio Carlos Sapateiro), ou nas escadas do tio César!

No pátio do tio Aníbal “Fuseiro”, dividido com outros herdeiros (tia Aninhas e D. Lurdes), raramente nos era permitido brincar, mas, logo por cima da encosta medonha, havia um pequeno largo ocupado em parte pelo sequeiro do tio Francisco “Moreno” onde nos juntávamos para dar ao tagarelo com seus numerosos filhos, ocupando o tempo com jogos tradicionais: Rou-Rou, pedrisca, bilharda, palmada, cepo, roça, pingue, pião, fito, etc. Outros, por precisarem de mais espaço, jogavam-se no Adro da Igreja, cerca de 100m mais adiante, ou na eira frente às casas da tia Gaudência e do tio Júlio “Jarrete”. Do outro lado da rua morava o Tio João “Picarete” com a família. As suas escadas e varandinha de granito, paralelas à rua, deixavam que se subisse por um lado e descesse pelo outro e eram um brinquedo para os garotos que, quando por ali passavam, se divertiam a subir e descer, mas que fugiam apressados assim que, atrás deles, surgia a dona da casa, danada e ameaçadora, com uma vassoura na mão, a dar valente reprimenda por lhe sujarem as escaleiras. Várias vezes entrei nesta casa e me quedei tempos infindos a ouvir o tio João contar histórias da França, da linguagem francesa que tanto amava, escapando-se-lhe uma frase para aqui, outra para ali, mas sobretudo da Guerra de 1914 na qual participara activa e orgulhosamente. Os seus dois filhos nascidos em França guardaram sempre o sotaque. Um deles, o Joaquim, tinha por nomeada o “Malino”, alcunha que lhe assentava como uma luva, como se pode confirmar pela história que se segue:

Certo dia, estava um grupo de rapazes na tasca a conversar sobre as festas e bailes que estava a haver nas aldeias vizinhas. Naquele tempo, todos nos lembramos, fora os próprios pés, quase ninguém tinha outro meio de transporte. Mas o “Malino” tinha já o seu automóvel e, não querendo fazer o caminho a pé, os mais atrevidos arriscaram-se a pedir-lhe:

– Podia-nos levar-nos à festa?
Olhou para eles de soslaio e, sem reflectir, respondeu:
– Levo! Claro que levo!!! Ide-vos lá a vestir…

Os moços não se fizeram rogados. Correram para suas casas, lavaram-se e assearam-se segundo as possibilidades de cada um, enquanto na tasca os mais velhos, vendo que o “Malino” continuava ali descontraído e com roupa de trabalho, suspeitando da malandrice, perguntaram:

– Tu vais assim, rapaz?...
Com um sorriso malicioso, palavras arrastadas e carregadas no rrrr, respondeu:
– Calma ainda não chegarrram…
Dizendo isto, saiu porta fora em direcção à sua residência. Os rapazes voltaram momentos depois e, não o vendo, tomaram a mesma direcção. Chegados à porta da sua casa, como não ouviam qualquer rumor, resolveram esperar. A espera foi longa e, como já começavam a desesperar, bateram à porta. De dentro respondeu uma voz masculina:

– ide-vos à cama que eu já cá estou!

O Emídio “Corrécio” era um dos residentes de Rebordainhos a quem eu, como garoto, mais temia. Também os cães e gatos o conheciam à légua, pelas suas atraganices, bem como o Cesário, seu padrasto, que era pastor dos fidalgos da Quinta. Com o Cesário, o “Corrécio” tem uma história que ficou gravada nos anais da terra. Certo dia, a mãe mandou-o levar-lhe o almoço. O Cesário, tendo já comido as magras batatas acompanhadas de umas cangas e peles de bacalhau, aprestava-se para atacar a malga do caldo de couves, quentinho e saboroso, que a “Magrila”, sua esposa, sempre fazia. Mexia o caldo com vagar e, à medida que ia mexendo, ia ficando perplexo com a cor avermelhada que via. Não tirava os olhos do caldo, mas o seu rosto ia ficando tenso e o gesto trémulo. Decidiu-se pela pergunta:

– A tua mãe cozeu chouriça no caldo?
– Cozeu, cozeu! Respondeu o rapaz, enquanto se ia afastando, não fosse o padrasto dar pela marosca.

O Cesário que, enquanto perguntava, levou a colher ao fundo da malga, viu aparecer à tona uma grande e gorda vaca-loura, como se fosse um camarão cozido.

– Ah ladrão que me querias matar! …
O moço não quis palha nem grão, desatou a correr e fugiu. O casal já dormia quando, muito tarde, o Corrécio se atreveu a entrar em casa.

Continua...