O verbo comer é um verbo engraçado e vem a propósito
do muito que manducamos(1) nesta época festiva.
O Latim clássico tinha o verbo edere e só no Latim tardio surgiu comedere, ou seja, “edere” com
alguém: as refeições só satisfazem quando se está acompanhado, digo eu.
Em Latim também existia um tempo verbal que nós não temos:
o Particípio Presente. No caso que nos interessa, aquele que come será o commens e daí virá o nosso “comensal”,
embora com alguma alteração do significado.
O que me traz aqui é a nossa comenência, vocábulo que não vejo registado em lugar nenhum. Mas eu
acho-lhe tanta graça que gastei um ror de tempo à procura da sua origem e,
confesso, andaria perdida se não fosse uma proveitosa conversa com o meu irmão
Evaristo que me alertou para a sua relação com “comer”.
Voltemos ao Latim, onde o sufixo “entia” (entre outros) se
originou a partir do Particípio Presente acrescido de “ia”: confidens / confidentia; credens /credentia,
etc. No nosso caso: commens /
commenentia. Em suma, do verbo nasceu o substantivo.
Tendo o sufixo “ência” valor de “estado”, “qualidade” ou “resultado
de acção”, então a nossa “comenência” significará “estado ou qualidade daquele
que comeu”. Ora, se comer é uma coisa boa, de grande valor, tal significado
parece esbarrar com a acepção que costumamos dar à palavra: coisa pouca, sem
importância nenhuma. A alguém que recebeu um presente sem valor nenhum dizemos “deram-te cá ũa comenência!”
Tenho, para mim, que a ironia é um dos traços mais
marcantes do nosso modo de ser. Lembremos, por exemplo, que lamentamos quem sofreu
um grande prejuízo, exclamando: “tebe cá ũa esmola, o pobre!” Creio que se passa
o mesmo com a comenência: profere-se, querendo afirmar o seu contrário. Eu
metia-me com o Gilberto, chamando comenência a um cão minúsculo que ele tinha… “Onde
está a comenência? – perguntava-lhe.
Em abono do significado de comenência como coisa boa ou
importante lembrei-me que, às vezes, usamos a expressão sem ironia. Nos dias
que correm, posso afirmar sem sombra de dúvida que o meu ordenado não é comenência nenhuma!
_____
(1) Manducar, apesar de alguns dicionários referirem
que é verbo de utilização popular, entrou no Português por via erudita, tão próximo
que está do original: mandūcāre.
A ilustração é uma iluminura do livro de horas do duque do Berry (séc. XV).