segunda-feira, 21 de dezembro de 2015

ESTE NATAL

Caravaggio: Repouso durante a fuga para o Egipto

Numa história antiga, de cerca de dois mil anos, um certo rei malvado mandou matar todas as crianças para que uma delas, anunciada como rei, lhe não roubasse o trono. Para salvarem o filho, os pais dessa criança, virando costas ao medo, fugiram para o Egipto que se tornou, para eles, terra de refúgio. É verdade: Jesus começou a vida como refugiado, mas pôde sobreviver porque uma terra estranha o acolheu, impedindo a vitória de quem semeava o terror para garantir o poder.
São histórias de ontem que se cruzam com histórias de hoje, sendo ambas eternas porque simbolizam a luta do bem contra o mal. As pessoas que hoje nos pedem que as acolhamos fogem do mal e é nosso dever dar-lhes guarida, provando que não cedemos ao medo, mesmo que sejamos alvo de ataques vis.

Que este Natal, tal como o primeiro, sirva para nos lembrarmos que a dignidade é intrínseca a cada ser humano e que cada um de nós nasceu para ser livre e feliz. Sejamo-lo, pois, e festejemos.

Boas-festas

quinta-feira, 10 de dezembro de 2015

NO CATRAPEIRO

Por: ANTÓNIO AUGUSTO FERNANDES


Naquele tempo… quando o destino nos depositou em Rebordainhos, aí por volta de 1950, meu pai vinha animado de um fervor de noviço no que a terras dizia respeito. Ele desbravou, ele surribou, ele plantou, ele fez trinta por uma linha. São dessa altura as maçãeras que, ainda hoje, bordejam as duas terras de Vale-da-frunha. Na hortinha da Vale-da-frunha d’além, conchinha de terra com um poçaco voltada a sul, plantou ele, com toda a devoção, uma figueira cujos figos nunca chegaram a amadurecer e uma videira cujos bagos chegavam ao Outono ainda rijos como zagalotes. Ingratas essas terras da serra! Mas sempre me deu a impressão de que, além dessa hortinha, ele nutria um especial afecto pelo Catrapeiro. De vez em quando desafiava-me: ─ vamos até ao Catrapeiro? E lá íamos até ao Catrapeiro, em divagação vadia, mais ou menos porque sim.

Este nome de Catrapeiro quer-me parecer que deve provir de catapereiro que, além de ser nome de vinho ribatejano, significa pereiro bravo. De pereiros não tenho notícia. Mas recordo ainda uma macieira brava que por lá havia, entre a terra de batatal e o lameiro.

Pois o Catrapeiro era mesmo isso: um corregozito que na parte de baixo andava de lameiro e, na de cima, dava batatas quando Deus era servido, umas batatas deliciosas, obedecendo à filosofia de ─ boa batata, terra granita, água granita e caganita. Também eu gostava do Catrapeiro, mas era por causa de uma pocita que lá havia para rega das batatas. Todo o meu regalo, quando a poça estava vazia, era esse milagre da água a borbulhar do chão, levantando areiazinhas, num fervedouro sem fim. Com a mão, rapava um pouco de saibro sobre o olho da nascente de maneira a fazer uma conchinha. Esperava que a água aclarasse e depois mergulhava nela o focinho para sentir nos beiços o beijo da mãe terra. Água fria que a veia trazia da Ladeira, em cujo cimo pontificava a Fraga Grande.

E foi no Catrapeiro que, por duas vezes, eu senti a vida a fazer-me agulhas para outro lado:

Era Agosto e já tínhamos ido a Bragança para o exame da quarta. Eu andava por ali com a Amélia, que era uma espécie de nossa irmã mais velha, a guardar os bois no lameiro. E não andava lá muito contente. O conselho familiar tinha resolvido que eu iria para o seminário. E, de repente, impôs-se-me esta evidência assustadora: eu já não pertencia àquilo. O Catrapeiro já não era meu, ia perdê-lo definitivamente dentro de dias. Sentado na fraga que havia ao fundo do lameiro (e que ainda deve lá estar, que as fragas são eternas) e olhando o negrilho tutelar (que a malina levou, que os negrilhos não são eternos) pasmava para aquilo tudo com uma sensação de estranheza e de angústia que me sufocava. Do lado de lá da Ribeira, no Ladeirão, uma camarada de segadores cantava uma toada lenta e desesperada, ressumando uma angústia como a que apertava a garganta. E de súbito, sem querer, as lágrimas começaram a borbulhar-me dos olhos, sem querer, como da nascentinha borbulhava a água da poça. E a canção dos ceifeiros, dolente na tarde calma, soava-me como a entoação atroz de um adeus definitivo. Ainda bem que a Amélia fazia meia, sentada à sombra da macieira brava e não deu por nada.

Uns dez anos mais tarde, mais ou menos pela mesma altura do ano:

Meu pai, que continuava embeiçado pelo Catrapeiro, guardou as batatas regadas pela pocinha dos meus enlevos, para encerrar a colheita. Comprou uma caixa de sardinhas e levou um caldeiro como tralha de campanha. À hora do meio dia, com um braçado de tanganhos, que nisso as terras sáfaras da Ladeira eram pródigas, acendeu-se fogueira cabonde a assar um chibo. No caldeiro cozeu-se uma abada das batatas acabadas de arrancar e sobre as brasas sobrantes puseram-se as sardinhas a rechinar, gordas como lontras. Eu convalescia de uma febre tifóide que, com a mania de mergulhar os beiços em tudo quanto era fonte, apanhara com umas águas inquinadas para os lados de Arouca. Depois de seis dias de cama, andava escanzelado como cavalo tropiqueiro de cigano, muito enjoadiço, sem apetite, debiqueiro como donzela fidalga. Pois, meus senhores, ali, junto da pocinha da minha eleição, sentado como um príncipe sobre um monte de rama da batateira, com aquelas batatinhas farinhotas a esfarelarem-se como flocos de algodão, ali imolei dez sardinhas como se fossem a mais delicada dieta de convalescente para um entanguido das maleitas.

Um mês depois iniciava, em terras alentejanas de Vendas Novas, a minha longa jornada no ofício da ensinança de que há dez anos me reformei.

Fotografia retirada daqui