Por: ANTÓNIO AUGUSTO FERNANDES
Naquele tempo… quando o destino
nos depositou em Rebordainhos, aí por volta de 1950, meu pai vinha animado de
um fervor de noviço no que a terras dizia respeito. Ele desbravou, ele
surribou, ele plantou, ele fez trinta por uma linha. São dessa altura as maçãeras
que, ainda hoje, bordejam as duas terras de Vale-da-frunha.
Na hortinha da Vale-da-frunha d’além,
conchinha de terra com um poçaco voltada a sul, plantou ele, com toda a
devoção, uma figueira cujos figos nunca chegaram a amadurecer e uma videira cujos
bagos chegavam ao Outono ainda rijos como zagalotes. Ingratas essas terras da
serra! Mas sempre me deu a impressão de que, além dessa hortinha, ele nutria um
especial afecto pelo Catrapeiro. De vez em quando desafiava-me: ─ vamos até ao Catrapeiro? E lá íamos até
ao Catrapeiro, em divagação vadia,
mais ou menos porque sim.
Este nome de Catrapeiro quer-me parecer que deve provir de catapereiro que, além
de ser nome de vinho ribatejano, significa pereiro bravo. De pereiros não tenho
notícia. Mas recordo ainda uma macieira brava que por lá havia, entre a terra
de batatal e o lameiro.
Pois o Catrapeiro era mesmo isso:
um corregozito que na parte de baixo andava de lameiro e, na de cima, dava
batatas quando Deus era servido, umas batatas deliciosas, obedecendo à
filosofia de ─ boa batata, terra granita,
água granita e caganita. Também eu gostava do Catrapeiro, mas era por causa de uma pocita que lá havia para rega
das batatas. Todo o meu regalo, quando a poça estava vazia, era esse milagre da
água a borbulhar do chão, levantando areiazinhas, num fervedouro sem fim. Com a
mão, rapava um pouco de saibro sobre o olho da nascente de maneira a fazer uma
conchinha. Esperava que a água aclarasse e depois mergulhava nela o focinho
para sentir nos beiços o beijo da mãe terra. Água fria que a veia trazia da
Ladeira, em cujo cimo pontificava a Fraga Grande.
E foi no Catrapeiro que, por duas vezes, eu senti a vida a fazer-me agulhas
para outro lado:
Era Agosto e já tínhamos ido a
Bragança para o exame da quarta. Eu andava por ali com a Amélia, que era uma
espécie de nossa irmã mais velha, a guardar os bois no lameiro. E não andava lá
muito contente. O conselho familiar tinha resolvido que eu iria para o
seminário. E, de repente, impôs-se-me esta evidência assustadora: eu já não
pertencia àquilo. O Catrapeiro já não
era meu, ia perdê-lo definitivamente dentro de dias. Sentado na fraga que havia
ao fundo do lameiro (e que ainda deve lá estar, que as fragas são eternas) e
olhando o negrilho tutelar (que a malina levou, que os negrilhos não são
eternos) pasmava para aquilo tudo com uma sensação de estranheza e de angústia
que me sufocava. Do lado de lá da Ribeira, no Ladeirão, uma camarada de
segadores cantava uma toada lenta e desesperada, ressumando uma angústia como a
que apertava a garganta. E de súbito, sem querer, as lágrimas começaram a
borbulhar-me dos olhos, sem querer, como da nascentinha borbulhava a água da
poça. E a canção dos ceifeiros, dolente na tarde calma, soava-me como a
entoação atroz de um adeus definitivo. Ainda bem que a Amélia fazia meia,
sentada à sombra da macieira brava e não deu por nada.
Uns dez anos mais tarde, mais ou
menos pela mesma altura do ano:
Meu pai, que continuava embeiçado
pelo Catrapeiro, guardou as batatas
regadas pela pocinha dos meus enlevos, para encerrar a colheita. Comprou uma
caixa de sardinhas e levou um caldeiro como tralha de campanha. À hora do meio
dia, com um braçado de tanganhos, que nisso as terras sáfaras da Ladeira eram
pródigas, acendeu-se fogueira cabonde a assar um chibo. No caldeiro cozeu-se
uma abada das batatas acabadas de arrancar e sobre as brasas sobrantes
puseram-se as sardinhas a rechinar, gordas como lontras. Eu convalescia de uma
febre tifóide que, com a mania de mergulhar os beiços em tudo quanto era fonte,
apanhara com umas águas inquinadas para os lados de Arouca. Depois de seis dias
de cama, andava escanzelado como cavalo tropiqueiro de cigano, muito enjoadiço,
sem apetite, debiqueiro como donzela fidalga. Pois, meus senhores, ali, junto
da pocinha da minha eleição, sentado como um príncipe sobre um monte de rama da
batateira, com aquelas batatinhas farinhotas a esfarelarem-se como flocos de
algodão, ali imolei dez sardinhas como se fossem a mais delicada dieta de
convalescente para um entanguido das maleitas.
Um mês depois iniciava, em terras alentejanas de Vendas
Novas, a minha longa jornada no ofício da ensinança de que há dez anos me
reformei.
Fotografia retirada
daqui