II
Iam já distantes os tempos em que, menino, recebia
um tostão do P.e Amílcar a quem, todos os dias, ajudava à missa. Tudo somado,
se alguma vez o tivesse juntado, daria o lauto salário de três escudos ao mês,
o que o habilitava a ser o garoto mais abonado das redondezas, capaz de ter o
gesto magnânimo de comprar cigarros para, com os colegas de escola, celebrarem
o seu aniversário. Mas isto sou eu a falar depois de ter lido histórias que
outros já aqui contaram.
À data dos novos acontecimentos era um homem feito
e, naquele dia, estava com a família a vimar no Fetal quando apareceu o Sr.
Eliseu. Partiu tal e qual como estava e ao fim de três dias passava a fronteira
com Espanha, país que atravessou encafuado num camião de transporte de cimento.
Iam mais de cem pessoas nesse camião mas, porque era fechado, entrou em França
sem dar conta disso.
Há coisas que custa perguntar, por isso, embora
tivesse curiosidade, abstive-me de inquirir sobre o como dormiam, como se
alimentavam, enfim, como respondiam às necessidades básicas da existência. Não
custa, no entanto, imaginar, pois continuamos a ler histórias dramáticas de
emigração clandestina que acontecem nos nossos dias. As pessoas terão outra
origem, mas o sofrimento é o mesmo e as circunstâncias semelhantes.
Mal se abriram os portões do camião, deram de caras
com quatro polícias armados de metralhadoras que os obrigaram a sair e os
conduziram para o interior de um salão grande onde teriam a grata surpresa de
constatar que, afinal, as polícias dos países não eram iguais umas às outras.
Ali, foram alimentados e, um por um, interrogados sobre quem eram e para onde
iam. Mas algum dos cem falava francês? Ninguém. Entendiam-se por gestos.
Saciada a fome, foram metidos em camionetas e conduzidos até Paris de onde,
cada qual, partiu à procura dos contactos que tinha.
O Jorge dirigiu-se a Tours, de carro de praça, pois
claro, que ele não era bruxo para adivinhar quais os transportes que poderia
apanhar. Valeu-lhe o sr. José Pereira, mundialmente conhecido por “Chochelas”,
que pagou o frete ao taxista e lhe arranjou trabalho. O Sr. José, aliás, foi a boa
alma que acolheu e orientou alguns dos naturais de Rebordaínhos que demandaram
terras gaulesas – como o meu irmão Artur, por exemplo. Como o sr. José, outros
terão existido, estando na origem da criação de uma rede informal de solidariedade que
amparava os emigrantes nos seus primeiros passos, angariando-lhes trabalho e
desbridando o processo de obtenção dos documentos necessários à legalização.
Os tempos em França também não eram fáceis: em 1956,
esse país perdera Marrocos e a Tunísia, em 58, a Guiné e, para evitar
mais complicações, em 1960, o general De Gaulle deu a independência a
quase todas as outras colónias, por decreto. O seu problema grave era a Argélia,
território africano com uma importantíssima colónia branca aí nascida: os “pieds-noirs”.
A guerra da Argélia, que durou oito anos, só terminou em 1962 e a França viu-se
a braços com a necessidade de receber e de absorver cerca de um milhão de “pieds-noirs”,
pouco mais de dois lustros volvidos do fim da II Guerra Mundial e da razia económica
provocada pelos nazis. Isto tudo serve para explicar que, apesar dos dinheiros
do “Plano Marshall”, a França talvez não pudesse preocupar-se com as condições
de vida que concedia aos imigrantes, pois tinha muito onde gastar esse
dinheiro.
Tal como quase todos os outros, o Jorge foi
trabalhar num estaleiro que punha à disposição dos operários condições precárias
de existência: uns barracões em cujo chão eram espalhados alguns colchões. A
higiene corporal e a lavagem das roupas era feita numa bacia; todos se serviam
de uma latrina exterior. Trabalhavam, em média, dez horas por dia, mas eram
pagas como extraordinárias todas quantas ultrapassassem a jornada das oito
horas. A semana tinha seis dias. Os operários comiam em conjunto e as refeições
eram feitas por quem calhasse. Parece que o Jorge tinha jeito para a coisa.
O primeiro patrão foi quem lhe “arranjou os papéis”
e, com eles, veio um contrato de trabalho por um ano, renovável. Não o quis
renovar e foi-se em busca de melhores condições. Aguentou-se em Tours mais
cinco anos, três dos quais na Michellin e depois foi-se para Angoulême onde o
ordenado lhe saía limpo, já que alojamento e alimentação em hotel estavam a
cargo da empresa. Melhorou de vida, razão última da emigração e anseio de todo
o ser humano.
Eras novo. Então, as diversões e os amores? A
resposta veio na forma de um sorriso maroto, modo gentil de me dizer que me
metesse na minha vida. Eu assim fiz.