domingo, 30 de novembro de 2014

MODO DE VIDA: UM OLHAR EXTERIOR



     “Não há, talvez, nada mais absurdamente demagógico no Portugal Salazarista dos anos 30 do que o discurso ideológico, conservador e agrarista sobre o mundo rural e a vida camponesa.” É desta forma que o historiador Fernando Rosas inicia um capítulo dedicado ao mundo rural durante o Estado Novo. A certa altura, referindo-se à região do Barroso, e citando o Inquérito à habitação Rural que lhe serviu de fonte, escreve: (…) “as casas dos camponeses menos pobres, «simples quanto possa imaginar-se», eram cobertas de colmo, sem chaminés (…) «janelas quase as não há», com um andar térreo para a «corte dos porcos» e um primeiro andar só com uma cozinha e um «sobrado». O mobiliário da primeira resumia-se a «uma mesa e dois ou três bancos», os «escanos», e os utensílios eram «tão-só os precisos e bem primitivos». «O sobrado é o dormitório colectivo da família. Aí estão as camas, as mais das vezes tarimbas de madeira, onde dormem pai e mãe, filhos, genros, noras e avós. (…) Algumas cadeiras, mesas toscas, um ou dois lavatórios nos mais abastados são toda uma mobília. (…) Obviamente, não há electricidade, nem água canalizada ou sistema de esgotos. As «necessidades» dentro de casa eram feitas para um buraco que ligava a cozinha à pocilga.
     Passavam-se as coisas desta forma «na camada mais elevada». No caso das famílias mais pobres, os «cabaneiros», as casas só tinham rés-do-chão, e as duas divisões (cozinha e sobrado) davam lugar a um compartimento que ocupa toda a extensão da habitação, a qual é de pavimento térreo.” (1)
     Mais adiante apresenta um quadro com algumas estatísticas. Poupo-vos à leitura, deixando-vos com as médias (estando os valores actualizados para 1994):

Rendimento anual: 2 526$61
Valor do recheio da habitação:
Móveis – 222$84
Utensílios – 50$70
Louças – 17$55
Roupa – 227$34
Total – 508$44

Metade de um conto de réis era quanto valia tudo quanto se possuía em casa! 

Do rendimento anual diz-se que entre 80% e 87% era consumido com a alimentação; cerca de 13% com o vestuário e 2% com a habitação; somente 1% com a higiene.

Tal rendimento só permitia a sobrevivência e, mesmo essa, limitada ao não passar fome.
A realidade descrita será muito diferente daquela que nós conhecemos e vivemos?

Para todos uma boa semana
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(1) Fernando Rosas, História de Portugal, sétimo volume, dir. de José Mattoso, Círculo de Leitores, 1994

domingo, 23 de novembro de 2014

ARES DA SERRA

a mosca

por antónio augusto fernandes


Mais mês, menos mês, o pai metia-nos (quer dizer, a mim, o menos desastrado) cinco c’roas na mão e: ─ Ala, cortar essas repas!

Era uma caminhada toda cheia de peripécias e de largos rodeios ─ seguindo o preceito de Eça de Queirós que diz que a distância mais curta entre dois pontos é uma curva vadia ─ desde o Prado até à Cabecinha, onde se situava o estabelecimento do Fígaro da aldeia. Subíamos até à Fonte Grande, onde, por desfastio se molhavam os beiços e reciprocamente nos encharcávamos. A corrida, passando pela Fonte do Espinheiro, com o seu belo arco de pedra lavrada, ia dar nuns saltos aos ramos mais baixos da amoreira do Sr. Lopes Direito, saltos mais que inúteis, pois os ramos baixos estavam mais colhidos que ramo de cerejeira no mês de Janeiro. Outra corrida à poça do Covelo, onde os parrecos da tia Ana Costa levantavam grasnido de esparvoar o povo inteiro. Passávamos em deslado da casita da avó Tonha (hoje totalmente refeita pelo Gilberto, e já estávamos na Eira da Cabecinha. Antes do corte ainda íamos bisbilhotar o que acontecia lá em baixo, em Rossas, se adregava de passar o misto espirrando novelos de fumaça ou quantos carros se avistavam na estrada de Bragança... Por fim, lá subíamos a escada que conduzia ao suplício.

─ Boa gente, esses da Cabecinha! ─ dizia-se pela aldeia.

E eram-no de facto. Desde os pais, o tio António da Eira e a tia Laurinda até aos três manos: o Horácio que ainda apanhei na escola, a Aninhas a nossa amorável catequista e o Armindo, babeiro em chefe. Ao que recordo, todos eles cordatos e mansos como a terra.

Lá íamos para o quartinho onde o Armindo executava a sua arte: máquina, tesoura, navalha e a malguinha de alumínio onde repousava o pincel com a codeazinha de sabão azul.

Primeiro entrava o mano, o mais insofrido. E não havia maneira de parar quieto o raio do miúdo, a coçar a nuca, a sacudir-se por causa dos pelos que lhe entravam pelas costas e que mais entravam quanto mais se sacudia.

─ Está quieto, Zé, que inda te corto uma orelha! ─ acudia o Armindo com toda a paciência deste mundo.

Estava lá agora!

Ora a saleta tinha um janeleco virado a norte, que dava para um horteco do tio Alfredo Guerra. E era aí que me colava em contemplação: colados na vidraça havia três ou quatro desenhos a lápis cujo tema já não recordo. Mas, entre eles, salientava-se uma mosca desenhada na perfeição, distinguindo-se os dois olhos enormes, as patecas peludas e até as nervuras das asas. E tal mosca nunca mais me saiu do entendimento. Alguém me disse, ou sonhei, que a mosca era da autoria do Horácio. E eu longamente invejei a arte do Horácio, esse rudimento de um Miguel Ângelo a vir.

Já lá vão mais de sessenta anos e ainda hoje vejo a mosca do Horácio com a nitidez da Mona Lisa.

Ó Horácio, se leres estas linhas, tira-me lá desta dúvida. Sempre foste tu quem desenhou a dita mosca? Se sim, palavra que devias ter ido para Belas Artes e não para a GNR que, tanto quanto sei, é mais dada à arte da multa que à arte do desenho.
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Imagem daqui