Ela cumpria com rigores de fiel alguns ensinamentos dos romances que, de quando em vez, chegavam às mãos das mulheres de Rebordaínhos. Não que se encafuasse em casa e só visse o mundo por detrás dos caixilhos das janelas, posto que a vida a tal não asava, antes, porque o seu ser donairoso se moldava pouco ao resguardo de quatro paredes. Gostava de ser admirada e sabia que marcava a diferença com a sua pele de uma alvura imaculada que o sol não tinha permissão de tocar. Senhora de si, enfrentava os dias e o trabalho com a sombrinha aberta numa mão e o cabo da enxada na outra. A sombrinha e também o lenço da cabeça, mas a esse deixava-o tombar sobre a nuca mostrando a cabeleira farta enrolada em crucho descaído e as arrecadas de ouro que, pendentes das orelhas, lhe emolduravam o rosto. Nem quando a torreira de Agosto frigia a carne ela descalçava as meias "para que as pernas me não fiquem pretas", justificava-se entre risos, reconhecendo que a vaidade era o motivo.
Era uma figura e tanto, a tia Etelvina! Nem teria metro e meio de altura, mas que importava isso, se a mulher se quer como a sardinha e a natureza fora pródiga nos atributos que lhe concedera? Nunca se vira menear de ancas como aquele nem colo onde as sete voltas do cordão de ouro assentassem tão plenamente. Jamais saía à rua sem as maçãs do rosto resplandecentes de pó-de-arroz e, aos domingos, avivava os lábios de carmim. A ganapada, que ainda mal aprendera a vergonha, perguntava-lhe só para se poder rir da resposta que já esperava:
- Ó tia Telbina, a senhora porque é que pinta a cara?
- Ora andor! Metei-vos lá na vossa vida!
Nos domingos de estio vestia-se de seda, um fatinho florido e fresco de saia e casaco que se ouvia roçagar. Calçava as meias de vidro e os sapatos finos de ir à cidade e, à hora da missa, dobrava em quatro o tapete vermelho sobre o qual se ajoelharia para que as frinchas das tábuas ou alguma areia escapada da varredura da véspera lhe não ferissem os joelhos. A garotada, que de tudo faz motivo de brincadeira, se a apanhava distraída, surripiava-lhe o genuflexório para se poder rir à socapa enquanto ela se desunhava a saber dele, inquirindo as mulheres à sua volta. Impávido, o Sr. padre João continuava a celebrar a missa, mas à roda da tia Telbina era tudo risos sufocados.
Todo o lixo a enojava, brio superlativo numa terra de gente habituada a conviver com lama e fumo, a meter a mão no estrume seco para o espalhar na terra e a cofiar o pelo de vacas e de porcos. Enquanto caminhava pelas ruas no seu andar de balancé, com os botins pretos de borracha de ir à rega, arremessava para os cantos qualquer porcaria que lhe atrapalhasse o passo. "Que gente tão porca!", resmungava. Certo dia, passando em frente à casa da Maria Fecisma, sentiu os pés enrolados num farrapo e lá veio a exclamação inevitável enquanto atirava o benairo sobre o sequeiro encostado à casa. Prosseguiu o caminho, foi regar as batatas, mas à volta sentiu a falta da combinação que mulher nenhuma se esquecia de vestir. Procurou-a por todo o lado e, não a encontrando, veio-lhe à ideia que antes de ir à rega estivera em casa do João Fouce. “Ó João, eu não deixei aí a minha combinação?” perguntou, inocente, do fundo das escadas. O Fouce, que normalmente era brincalhão, naquela altura gostou pouco da pergunta e retrucou indignado: “O diabo da mulher é maluca, ou faz-se?!” Foi então que a tia Telbina se lembrou do benairo que arrojara sobre o sequeiro da Fecisma. Foi lá ver e encontrou a sua combinação a que se tinham escochado as alças e lhe deslizara corpo abaixo sem ela dar por isso, a não ser quando, já no fundo das pernas, lhe atrapalhou o passo.
São muitas as histórias da tia Etelvina associadas aos seus requisitos higiénicos. Gostando de luzir no corpo, tinha as mesmas exigências no que ao seu Casimiro e à casa dizia respeito. Não era no brilho argênteo dos potes energicamente esfregados com areia que se distinguia das outras mulheres de Rebordaínhos, porque os potes luzidios eram o orgulho de todas elas, prova maior do seu asseio e demonstração segura das suas virtudes domésticas. Não. O que distinguia a tia Etelvina era a atenção aos pormenores, às coisas a que mais ninguém dava importância. “Ai que me esqueci de esfregar as tenazes! Ó garotos, esperai aí por mim!” pediu à quantidade de gente que, empoleirada no atrelado do tractor do Manuel Nelzeira, se preparava para ir a um funeral a Vale de Nogueira. Estava dado o mote para a risota do caminho, espécie de esconjuro do motivo triste da viagem.
Levava a vida sossegada. Sem filhos, afeiçoou-se a sobrinhos e vizinhos, não dando mostras de que a falta de descendência lhe inquietasse os dias ou desse noites mal dormidas. Garantia a juventude recorrendo às novidades que os contactos com Bragança permitiam chegar à serra, por isso, mal a queda dos dentes lhe começou a fazer encovar o rosto, tratou de pôr dentadura que lhe permitisse um sorriso imaculado. Nem à hora da morte se esqueceu dela, pedindo às mulheres que a rodeavam que lha pusessem. Deus nosso Senhor, afeito às coisas belas, gostaria de ver um rosto perfeito à Sua frente. E a ela, a
Santa, nomeada que herdara do pai, por motivos acrescidos, o Todo Poderoso haveria de exigir perfeição.
O que mais a zangava era que lhe perguntassem a idade. A tia Ascensão Gralha, regressada havia pouco de África e esquecida de tais pruridos, um dia em que sossegavam nas escadas da Teresa e do João Fouce, atreveu-se a fazer-lhe a pergunta fatal. “Quantos anos tem, já, a senhora, tia Telbina? “Quarenta e cinco!” foi a réplica que ouviu, a mesma que escutavam todos quantos a queriam ver arreliada e se divertiam com a resposta. “Tem quarenta e cinco, tem! A senhora é mais velha do que o nosso assador!” sentenciou o Zé Garrano do tio António Piloto, garoto desbocado e de saídas hilariantes para quem, naquela tenra idade, o assador de castanhas cheio de buracos devia ser mais que centenário.
Como qualquer mortal amante do que tem e desconfiado daquilo que está para vir, a tia Etelvina amou e quis a vida até ao último instante. No leito de morte, ainda teve fôlego para uma tirada da mais profunda filosofia e, na sua voz nasalada, sentenciou para as mulheres que tentavam sossegá-la com as promessas de vida eterna:
Vós bem falais, mas eu morro e vós ficais!