domingo, 28 de fevereiro de 2010

ECOS DE UMA LUTA




Já que estamos em maré de memórias…

Janeiro de 1975. A sigla PREC mal começava a ouvir-se porque o "Verão quente" do "companheiro Vasco" ainda demoraria alguns meses. Na imprensa as palavras acusam o tom da revolução que florira não havia, ainda, um ano. Os jornalistas buscam marcas da opressão salazarista pelos quatro cantos de Portugal e, no canto do Nordeste, chegam a Rebordaínhos, uma das terras que dera luta aquando da expropriação dos baldios durante os idos de 1958. Escrevem: “O que foi a repressão sobre a resistência heróica dum povo que lutou sozinho, mas unido, conta-no-lo Jaime Fernandes, que se manteve fiel à vontade dos seus vizinhos e irmãos de trabalho e preocupações”. Talvez tenha sido esta a primeira vez que, na História longa da sua existência, o povo de Rebordaínhos falou para leitores de Portugal inteiro através das páginas da revista Flama (de inspiração católica), uma das mais lidas no País. O Sr. Carlos e a D. Maria Teresa guardaram essas páginas e fizeram o favor de as oferecer para as podermos publicar, com o Rui a servir de medianeiro. Que nos dizem os porta-vozes da nossa gente?


Para que serviam os baldios?

Quando os baldios eram do povo nós vivíamos bem. Serviam para cultivarmos a batata de semente (de superior qualidade), o centeio, para pasto do gado e para cortar lenha. A Junta de Freguesia arrendava ao povo por parcelas de terreno. Com o dinheiro dessa renda melhorávamos os caminhos, a igreja, o cemitério (tio Jaime).

Esta casa do Povo foi feita com esse rendimento. Custou-nos aí cem contos há 25 anos (Sr. Carlos Chiote).

Só gados eram nove de ovelhas e treze de cabras (tio António Atilano).


A revolta contra o confisco dos baldios:

O povo reagiu quando o Estado se quis apoderar dos baldios, depois de estar tudo arroteado à força de enxadão e arado. O povo reagiu e foi lá escacar tudo. Partiram-se aí dezoito mil pinheiros (tio Jaime).

Fomos todos a Bragança, mas nada se resolveu (Sr. Carlos).

Foi uma medida para desgraçar a povoação. O engenheiro Matos foi o pior. Prendeu o meu pai e obrigou-me a pagar uma multa de dois contos porque eu andava com o gado na floresta. Falámos sempre no roubo que nos fizeram. Poucos trabalhadores da terra iam para lá trabalhar porque ninguém gostava daquilo. A primeira vez obrigaram o povo a ir plantar os pinheiros. Na primeira plantação cada um fazia o pior que podia para aquilo não ir para diante. Os Serviços florestais obrigaram-nos a plantar e nós quase o fizemos com a raiz para o ar (tio Eurico).

Fui preso pela PIDE porque não quis declarar quem tinha tocado o sino – e também nunca ninguém o declarou –, por ter acompanhado o povo na luta e, também, porque fui denunciado pelo guarda. Ele tinha má vontade contra mim, porque eu tinha um comércio e queria que eu lhe fiasse e eu não lhe fiava. A PIDE veio por mim e levou-me e ao Raul Pereira no jeep para a esquadra em Bragança. Ali nos tiveram dois dias e depois levaram-nos para o Porto (tio Jaime).


Esperanças

Não tenho coragem de pegar naqueles pedaços de texto. Leia cada um e conclua para si. Tanto lutou a gente por terra para, agora, haver tanta terra sem gente para a ter ! Atente-se nas fotografias. Quantos são os sobrevivos? Eu nem sei o que dói mais, se as saudades dos que partiram, se a constatação de um futuro que não veio.

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Quem me diz onde foi tirada aquela fotografia publicada na pág. 4? É que não faço a mínima ideia!

domingo, 21 de fevereiro de 2010

A VELHA ALDEIA


Por
abcd

Quase sempre vivemos sem entendermos o que procuramos, ou qual o verdadeiro sentido da vida…São raros os momentos em que sabemos – e sabê-lo dentro de nós – o que viemos cá fazer e qual o derradeiro objectivo das nossas vidas. Muito raros, tão raros como as turfas escondidas nos Carvalhais Transmontanos. Mas nesses momentos em que sabemos, em que sentimos dentro de nós o caminho, o único caminho que nos fará feliz, então, tudo se resolve e a vida abre-se como uma flor de Lótus, erguendo-se à semelhança desta, do lodo escuro e profundo onde estávamos metidos. E o que tem mais piada, ou o que é mais misterioso, é que esses momentos vêm agarrados a outros momentos, sendo estes quase sempre sinónimos de tristezas ou de dores próprias ao ser humano. Tais como a morte, as doenças, ou o amor…


E foi num desses momentos, em que a morte veio novamente a Rebordainhos, que senti um frio estranho, era como se algo se desmoronasse à minha frente sem eu poder fazer nada, como se alguém ou algo estivesse a tirar pedra sobre pedra da minha infância, da minha aldeia, da minha vida. Sim, porque as pessoas da aldeia são a aldeia, porque eles que estão lá, que vivem lá, é que mantêm viva a vontade de voltar e de sonhar, porque eles, que são cada vez mais “velhos”, é que são as memórias, os documentos, as imagens, os sons, a alegria da aldeia. E quando Deus decide tirar mais uma pedra à velha aldeia, sinto-me triste, porque são também as pedras do menino que produzem os sonhos ao homem que, agora, sou. São as pedras que esculpiram o meu objectivo de vida, são as pedras onde escrevi a minha personalidade e onde residem as minhas flores de lótus… Mas, e como existe sempre um mas, são estes momentos, como a morte, que nos fazem olhar para o lodo e conseguir enxergar a flor, são eles que nos separam daqueles que desistiram de sonhar porque tiveram medo e preguiça de escavar o lodo. Enfim, apesar de ser sempre difícil e triste ver as pedras da velha aldeia serem tiradas, uma a uma, da nossa infância, e de observar que com o tempo a aldeia vai ficando mais pequena, creio ser importante referir que novas pedras estão a ser esculpidas e que, apesar de não estarem fisicamente na velha aldeia, construirão outras “aldeias” noutro ponto deste mundo desconhecido. E quem olhar para elas, para o seu espírito, verá com toda a certeza aqueles momentos em que sabemos, aquelas velhas pedras, aquela velha aldeia a que chamam Rebordainhos.

terça-feira, 16 de fevereiro de 2010

PEREIROS

A eloquência do autor deste artigo deixa-me impressionada e gostaria muito de conhecer o nome que se esconde por detrás da sigla: G. E. - o mesmo que assinou a crónica sobre Rebordaínhos. Nesta escrita existe grandeza porque o pensamento foi amadurecido e as palavras escolhidas com critério. Tudo tão longe da jactância e da pouca gramática que os jornais nos oferecem hoje em dia! Este homem (suponho que seja homem...) bem merecia ver reunidas e publicadas em livro as maravilhas que assinou sob o título genérico de "Pelourinho".

Agora, os Pereiros, povoação onde reside o único fidalgo do concelho (estou pronta a alterar esta frase se me provarem que o Sepúlveda morava na "Quinta"). Era dia da festa de Santo Amaro. Há cinquenta anos, talvez fosse, ainda, o Sr. P. Amílcar a presidir à missa em honra do santo padroeiro. Ou seria, já, o Sr. P. João? O sino tocava no mesmo "timbre honrado e limpo" que hoje lhe conhecemos mas, se o tempo estava de dilúvio, é provável que se não ouvisse em Rebordaínhos.

A igreja dos Pereiros sempre me encantou. Tem uma arquitectura sóbria mas de estilo seguro, escapando à construção tradicional das redondezas. A arquitectura e a dimensão - grande para o número de pessoas da aldeia - mostram que, ali, ou houve abundância, ou existiu algum patrono dedicado. Mesmo assim, a terra continua a dar "a pedir de boca"; só não há gente, porque essa não nasce da terra, apesar de nos dizerem que viemos do pó.

Novidade, para mim, é o uso extemporâneo do adro como cemitério. Essa prática foi proibida em meados do séc. XIX e até deu origem a uma guerra-civil, que foi a Maria da Fonte, e a um romance ternurento que é A Morgadinha dos Canaviais de Júlio Dinis. É caso para fazer pensar muito!

Os garotos dos Pereiros (e, já agora, os dos Vales) eram verdadeiros heróis. O que eles tinham que trepar para chegar à escola! Aquela estirada, serra acima, é de cortar o fôlego e os caminhos assustam em certos dias de Inverno, quando a água corre brava pelos barrancos e o vento do Norte assobia medos por entre as carvalheiras. Mas eles tudo venciam e metiam-se a caminho, segurando os livros numa mão e a sacola da merenda na outra. Só a neve de mais de metro os fazia faltar. Eram uns valentes e bem merecem o elogio.

A gente dos Pereiros distingue-se pelo azul dos olhos. É um azul profundo e intenso como o céu dos dias mansos de Verão. Olhos assim tão belos, só me lembro que fossem os do meu avô. Como poderia não lhes querer bem?
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Nota de edição: se alterar aquilo que escrevi, os comentários ficam sem sentido. Faço aqui a devida ressalva: o "Fidalgo" dos Pereiros era-o, tão-só, de nomeada e as pessoas tratavam-no por "Sr. Imbertinho", alfaiate de profissão. Talvez daí lhe viesse a fidalguia, do não sujar as mãos na terra.
Nova ressalva - o Carlos Pereira corrigiu o nome do "fidalgo": é sr. Emílio! Desta vez não há que duvidar, porque antes de fazer esta emenda consultei o povo de Rebordaínhos (actual. em 20/04/2010).
De ascendência verdadeiramente fidalga era o Sr. Sepúlveda cujos avoengos são referidos por Camões em Os Lusíadas (e também na História Trágico-Marítima). Pelos vistos, tinha residência fixa na Quinta de Vila Boa e era pessoa dada ao convívio com toda a gente.
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Reparo que ninguém me corrigiu num erro que cometi propositadamente: queria "provar" como, nas nossas cabeças, Rebordaínhos continua a existir com a ancestralidade de concelho. Nenhum de nós (nem os nossos pais) vivemos essa realidade que, apesar disso, está vincada em nós com o valor das certezas. Registe-se, assim, que o tempo das nossas ideias está desfasado século e meio do tempo político da divisão administrativa do País. Isto não faz de nós seres estranhos, pelo contrário, demonstra uma certeza da História, a de que não existe um tempo, mas sim vários tempos em simultâneo. Queiram desculpar a rasteira e a prelecção.

ENTRUDO

Hoje é dia de entrudo. Diz-nos o dicionário que "entrudo" vem do Latim "introitu" que significa entrada, começo. Entrada da Quaresma, portanto. Apesar da tradução, o entrudo é muito mais do que essa espécie de antecâmara da Quaresma, sobretudo, porque a contradiz e parece metido a talhe de foice no calendário litúrgico. Eram tempos de grande sabedoria aqueles em que a Igreja, percebendo que não podia combater todos os rituais do paganismo, os acolhia, adaptando-lhes o significado e a simbologia, tornando-se mais plural e mais vívida, porque mais próxima dos sentimentos profundos das gentes - do povo, como nós gostamos de dizer.

A prática do interdito está intimamente associada à folgança desses três dias. Entre nós, porque somos concelho velho com hábitos de igualdade entre os "vilãos", a paródia raramente assume o aspecto de acinte dirigido aos poderosos, porque os não há. Assume outras, como as de cariz sexual, pois matrafonos e matrafonas não hesitavam em se travestir e em ostentar símbolos fálicos, alvo principal da chacota. Há a pilhéria aos acontecimentos do ano; não falta o carro do entrudo e, sobretudo, não falta o entrudo, o boneco de palha que incendeia o ânimo de quem, ao acordar, o vê à porta de casa e que está condenado porque, nesse mesmo dia, lhe será feito o enterro. É por causa desse enterro que o entrudo, mais do que ofensivo, é testemunha de um tempo passado porque simboliza o fim do ano velho e o começo de um novo ano. A Igreja acolheu a festa porque, tal como o entrudo introduz um novo ano, a Quaresma anuncia um tempo novo que é o tempo dos cristãos consubstanciado na ressurreição da Páscoa.

Agradeço que, quem puder, descreva as práticas carnavalescas de que se lembra, para que possa acrescentar este artigo. Obrigada, desde já.
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Amanhã, ou depois, publicarei um artigo sobre os Pereiros, saído no Mensageiro, na rubrica "Há 50 anos" e que o Rui fez o favor de me enviar. Peço desculpa aos restantes colaboradores que têm artigos à espera de serem publicados. Fá-lo-ei assim que conseguir escapulir-me das exigências profissionais.

segunda-feira, 8 de fevereiro de 2010

MONTARIA

Aqui fica a notícia para quem tem tempo e gosta... Por mim, ofereço-me para comer (o Bino habituou-nos de tal maneira que já nem pergunto se há almoço; digo que quero almoçar...)!
Aos participantes, um dia bem passado e produtivo.

Obrigada ao Rui Freixedelo pela notícia e pelo cartaz.

sexta-feira, 5 de fevereiro de 2010

CORES E O MAIS QUE FOR

Na literatura chamam-lhe sinestesia mas não tenho ideia se na fotografia existe algum termo que lhe possa ser equiparado. Atentemos, porém, na quantidade de sensações que se apoderam de nós quando olhamos para esta fotografia: de imediato, a nossa memória acrescenta extensão àquele emaranhado de silvas que coroam o muro da terra do Sr. Lopes e que acolhem nas suas vergônteas as peças de roupa que as mulheres acabaram de lavar. As mais alvas reflectem a luz do Sol, como se fossem luas pequenas. Qanto esforço terá sido feito a batê-las e a esfregá-las para ficarem assim? Estais a ouvir? Lá estão elas, as mulheres, ora esfregam, ora batem, depois enxaguam e torcem. Se for lençol, é certo e sabido que estará uma em cada ponta, torcendo em sentidos opostos. A água sairá em pequenas bolhas que transportam o ar. Ambos ficaram sem espaço, tão grande é o arrocho. Ar e água murmuram, zangados. Estais a ouvir? Agora sacodem o lençol, erguendo os braços e agarrando o rolo pelo meio, para que não toque o chão. Será estendido de imediato e o Sol vai aclará-lo ainda mais. Tudo rescende a lavado e a frescura. Nas nossas mãos sentimos aquela sensação boa do contacto ligeiramente áspero do linho de que é feito o lençol. O conforto apodera-se de nós. Não sentis? A garotada, por momentos livre da atenção da mãe, corre e grita, trepa à fonte e esgaça a roupa. O lombo da fonte é um escorrega e deixa-se cair com gosto, porque o tombo será amparado pelos tufos de junco que lhe crescem ao pé.

Vejo, cheiro, oiço e sinto e percebo como é bom. E vós?

Hoje deu-me para isto. Tende lá paciência!

Já agora, quem é a garoteca encarrapitada no cimo da fonte?
É a Zeza do Rafael e da Ester!