A Vermelha ganhou fama de rispidez e, admito, também tinha algum proveito. Nenhum garoto passava por ela sem ser de mansinho e, assim que lhe dava as costas, pernas para que vos quero, botava-se a fugir até que a esquina mais próxima o escondesse da sua vista. Dos anais não consta, no entanto, que tivesse ferroado alguém com o aguilhão das vacas nem transformado raparigos em laparotos. É daquelas famas porque sim e bastava que batesse os calcanhares e engrossasse a voz ao dizer “anda cá!” para que todos se pusessem em sentido, mais tesos e direitos do que se estivessem à frente do cano da espingarda de um GNR. Até os da sua idade e os mais velhos piavam fininho quando a ela se dirigiam, não fossem ouvir algum remoque que os deixaria com a cara a um lado. À frente da Vermelha tudo era respeitinho, que ela não permitia outra coisa, fosse a homem ou mulher. E foi este sentimento forte que justificou as gargalhadas pela resposta que o Mandinho, tão moço que ainda trazia as calças abertas nos fundilhos, se atreveu a dar-lhe quando lhe perguntou:
– Quem é bruxa, rapaz?
– É bossemecê, é bossemecê, é bossemecê, que até faz dançar as pitas e parar o relógio da taberna!
Naturalmente, ninguém acreditava no disparate, mas ver a fera a ser enfrentada provocou vontade de rir em todo o mundo, como se de um desagravo colectivo se tratasse. Também eu não acredito na textualidade das palavras do fedelho, mas vislumbro nelas uma verdade profunda: a Vermelha foi capaz de realizar o impossível!
Chamava-se Maria da Conceição e vivia no bairro da Portela, ao lado da irmã Olímpia e à frente da irmã Francisca, partilhando com elas trabalhos e confidências no solheiro em que desaguavam as escaleiras exteriores da casa da Francisca. Aí, aproveitando as horas mortas do dia, espadeiravam o linho ou fiavam a lã a que a Francisca, no seu tear, se incumbiria de dar forma. Pudesse ela, como a parca, tecer a vida e tudo seria bem diferente! Três mulheres, três irmãs, três berços de bons augúrios. Eram netas paternas da família dos Bentos o que, na bitola da escassez do cimo da serra, lhes conferia o estatuto de gente abastada e lhes prometia um futuro desanuviado. A vida se encarregaria de escolher outras linhas por onde escrever!
Maria da Conceição nasceu em 1897 e casou-se em 1920, num tempo em que as leis da República já tinham estipulado a igualdade matrimonial entre marido e mulher, embora a notícia disso, se chegou a Rebordaínhos, homem nenhum fez caso dela. Também o seu que, como pinha de casamento, se levara apenas a si e à má índole de que era feito. Ninguém pode dizer que batia na mulher, não por falta a vontade, mas porque o feitio da Vermelha agigantava o metro e meio que tinha de corpo e dava-lhe tal expressão ao rosto e rubor à face que ele não se atrevia. Virava costas e ia-se para a taberna onde jogava e bebia, bebia e jogava. E perdia! Perdia o que não era dele e devia ser sustento dos filhos que, ao fim de uns anos, já eram seis, mais um que era só dele, mas que a mulher acarinhou como se tivesse nascido dela. Umas vezes era o homem que lhe dizia, “perdi tal terra”, outras vezes era o vencedor do jogo da véspera que chamava do fundo das escadas e a informava: “sr.ª Maria, olhe que a sua junta de vacas agora é minha!” “E como vou eu lavrar a terra para dar pão aos filhos?” – teria ela perguntado – “Peça às suas irmãs, que lhe não negarão amparo”.
Depois de deitar os filhos, as horas do serão alongavam-se e davam-lhe tempo para pensar na vida. Concentrava-se melhor enquanto, cadenciadamente, desenhava semicírculos no ar, colocando o polegar de uma mão sobre o indicador da outra e fazendo-os girar alternadamente e em sentido inverso, como quem troca os passos num jogo de roda. Outras vezes descansava a mão esquerda sobre o regaço e acariciava-a com a direita, num movimento dirigido da ponta dos dedos para o punho que lhe fazia arrepanhar ligeiramente a pele e essa carícia era como uma súplica que lhes dirigia: nunca me falteis!
Embora com a casa em desmedrança, ainda tinha com que matar o bicho aos filhos antes de irem para a escola onde, naquele tempo, já leccionavam os dois irmãos Ribom, vindos de Bragança. Apesar de lhe fazerem muita falta para o trabalho, seguira o conselho do cunhado Ramos para quem a aprendizagem das letras era tão importante que até às filhas obrigava a frequentarem a escola. “Um homem tem de saber assinar o seu nome – ter-lhe-á dito – e às mulheres não lhes faz mal nenhum! Não deve ter sido difícil convencê-la, sobretudo porque, em seu entender, filhos instruídos dariam homens melhores do que o pai. A despesa extra lá se pagaria, poupando em tudo o resto.
Desde que os filhos entraram para a escola, a rotina passou a ser outra. A sala, antes só usada nos dias de festa, era agora lugar de estudo, porque a janela que se abria para Norte a tornava na divisão mais iluminada da casa. Nunca a Vermelha faltou a uma sessão de estudo dos filhos. Depois de merendarem, um por um, obrigava-os a recitar a lição do dia e a cumprir os deveres marcados. Espreitava-lhes as lousas onde desenhavam, uns as letras e os algarismos, outros as frases e as contas e comparava tudo com o que vinha nos livros. Só quando via perfeição se dava por satisfeita e permitia que fossem para a rua brincar com os amigos. Nunca confessou se tinha sido premeditado ou se fora obra do acaso, mas de tanto os acompanhar, aprendeu ela própria a ler. Os filhos foram a sua escola!
Nem enquanto a prole estudava, o marido lhe dava sossego. Já restavam poucas leiras dos bens que ela herdara dos pais quando, certa noite, depois de ter perdido nova junta de vacas, lhe chegou com a novidade:
– Dizem que em França se consegue fazer bem pela vida… eu vou para lá e o dinheiro que ganhar mando-to, para sustentares a família!
– Vai! Quem to proíbe? Lá, poderás perder ao jogo, mas ninguém me entrará em casa a buscar aquilo que é meu. Se mandares dinheiro, tanto melhor, não fazes mais do que a tua obrigação! – Deve ter sido esta a resposta que deu.
E ele foi, deixando os filhos tão pequeninos que, na expressão dela, “cabiam todos debaixo de um cesto”. Passados uns meses escreveu uma carta a dizer que ainda não tinha arranjado trabalho; passado quase um ano escreveu a dizer que não podia mandar nada porque estava doente e não podia trabalhar. Foram essas todas as notícias que deu até que, já velho e doente, garatujou um pedido de que o recebesse de volta. Não queria mais nada!
A Vermelha não sentia a falta do homem, mas a sua noção de dignidade fazia-a roer-se por dentro. A repulsa era enorme. Macaco! Nem pelos filhos tinha amizade! O pior estava, no entanto, para vir. Apesar da ajuda que as famílias das irmãs lhe davam no amanho das terras, ela era uma mulher sozinha com seis filhos seus e mais um do marido para criar. Os mais velhos já tinham terminado a escola e urgia dar-lhes um destino. A solução era pô-los a servir como criaditos numa casa qualquer. Dois foram para Vale de Nogueira, outro para Rabal, enfim, cada um seguiu o destino da terra onde pudesse trabalhar e ganhar algum sustento. Separar-se deles era matá-la por dentro, mas teve que enfrentar essa dor uma vez… e outra… e outra… Só o mais novo, o António Honorato, ficaria por Rebordaínhos, porque arranjou trabalho na moagem do Santo velho. Data dessa altura, certamente, a carapaça de dureza com que as gerações mais novas sempre a conheceram: apesar da vontade de chorar, era com determinação que encarava as lágrimas dos filhos à saída do ninho. Se ao menos tivesse uma menina que pudesse conservar em casa como companhia! Mas não, Deus oferecera-lhe, somente, aquela meia dúzia rapazes!
Não tinha filhas mas tinha sobrinhas e afeiçoou-se-lhes como o náufrago se agarra ao lenho, mormente à Teresa que até era sua afilhada e em quem via muito do seu vigor. Ternamente, referia-se a ela como a “çafra”, numa alusão à arte do pai (çafra/safra é bigorna) e ao destemor com que encarava qualquer trabalho que era preciso fazer. Tal amor cresceu ainda mais quando os filhos, já homens, começaram a emigrar, uns para o Brasil e outros para França. A família que a Teresa, entretanto, constituíra tornou-se a sua e reinava nela com direitos reconhecidos de matriarca. Mais tarde, após o casamento do seu António Honorato com a Celeste, haveria de dividir essa soberania entre a casa do filho e a da sobrinha, visitando-os todos os dias e levando para dormir consigo, alternadamente, ora a Maria do Rosário, sua neta, ora a Amélia, sua sobrinha-neta. Eram estas, também, que lhe faziam o agrado de lhe esfregar o sobrado ou os potes, mas nunca saíam sem a recompensa de umas moedas metidas carinhosamente na mão. Foram, elas também, a testemunha de que, apesar de tudo quanto penou, não ganhou rancor à vida nem a ninguém. Certo dia, contam, tendo almoçado juntas depois de uma manhã inteira a apanharem batatas, a tia Vermelha, colocando as mãos sobre o regaço, saiu-se com esta: “assim estejam os nossos piores inimigos!”
Os filhos mantiveram-se fiéis e escreviam-lhe com muita frequência. Ela recebia as cartas, beijava-as e recolhia-se para as ler sozinha, não aceitando compartilhar esse momento íntimo com ninguém. Para alguma coisa aprendera a ler! Mas não sabia escrever, por isso, socorreu-se da Teresa e, mais tarde, das filhas desta, para poder dar a resposta. Exigia sempre que a carta acabada de escrever fosse relida, não faltasse alguma das palavras que ditara. No fim, mandava que se acrescentasse: “esta carta foi escrita por … a quem deves agradecer”. E os agradecimentos lá vinham sempre, e era essa a única parte que ela aceitava partilhar com alguém.
A Vermelha nunca vestiu senão saias rodadas e compridas, embora gostasse da blusa justa e do seio moldado pelo corpete. Nos pés calçava botins, invariavelmente. Era, pois, uma mulher do século XIX e só isso justifica que, ao tomar conhecimento do passamento do marido, se tenha vestido de luto e decidido celebrar-lhe missa fúnebre. Parece que ainda perguntou aos netos porque não choravam, se era seu avô, mas estes responderam-lhe que tal homem lhes não era nada. Por causa do luto, e vez única na vida, a Teresa atreveu-se a repreender a tia – que lhe obedeceu.
Maria da Conceição faleceu faz este mês trinta e oito anos. Espero, eu que a tenho como exemplo, ter sido capaz de lhe prestar a justa homenagem. O orgulho de lhe pertencer à família é todo meu.