Não sei precisar o ano, nem se
era Dezembro, Janeiro ou Fevereiro. Tenho, no entanto, muito presentes na memória
duas imagens.
1. Fazia um frio de escacha-pessegueiro que piorara durante a manhã.
Calhara-me a mim, nesse dia, levar para a escola as brasas que, uma vez postas
na braseira, aqueceriam as meninas, classe por classe, pois assim éramos chamadas,
à vez, pela Senhor Dona Maria. Não tenho ideia de sermos chamadas de outra
forma, mas a minha irmã Amélia recita a expressão da senhora professora: “vêm
primeiro as dos Vales, que já andaram uma légua!” Se assim era, bem estava!
As ruas ainda não estavam
calcetadas e, porque chovera nos dias anteriores, à medida que o frio crescia, todo
aquele lodo ia enrijecendo. A carambina que se formou trataria de conservar o
registo daquilo que, ou de quem, fora o último a passar: carros de bois, pitas,
perus ou gansos, pessoas, enfim, como se de esculturas rasas se tratasse. Não
eram esculturas de gelo, porque essas são transparentes; eram esculturas de
lama preta gelada. Nas poças mais fundas, a água choca brilhava.
Durante o Inverno, todos
calçávamos os çocos que o tio Grilo nos fazia à medida – os das crianças
protegidos com preguinhos; os dos mais velhos cravados com brochas. Trazíamos
os pés enxutos, era o que importava, se bem que preguinhos e brochas sobre chão gelado
fossem chamariz do perigo.
Assim me vi, de çocos nos pés e
lata das brasa vazia na mão, a enfrentar a caminhada de regresso a casa à hora
de almoço. Com tanto garoto na escola, certamente estaria acompanhada, mas não
me lembro de ninguém. Recordo, sim, que, mal chegando ao Prado, deixei de ser
capaz de me equilibra em pé e tive que fazer o resto do caminho de gatas,
ferindo mãos e joelhos naquela carambina cortante e enlameada. O que vale é que
o pote das casulas, acabadas de cozer, me reconfortou corpo e alma, sensação
que só um transmontano consegue imaginar.
2. Foi no mesmo dia, da parte da tarde. Quando chovia, dos bairros
de cima corriam autênticos rios para os bairros de baixo. Em alguns lugares, onde
a lama era pouca e a água muita, o carambelo era transparente. Assim se
mostrava ele, encostado às escadas dos senhores professores, meus vizinhos,
também junto à casa da Senhor Dona Denérida, na parte que dava para a taberna
de cima e junto à eira de à Chave. Estava a realizar-se um enterro e lembro-me
bem do esforço enorme que faziam os homens que transportavam a urna, apesar de
terem embrulhado o calçado com aquilo que tinham à mão, palha ou plásticos. A
certa altura, não aguentaram mais: desequilibraram-se e o esquife lá foi,
sozinho, esbarando pelo carambelo.
Hoje, se conto estas coisas, não é
por ter saudades delas, é para lembrar o quanto caminhámos em quarenta anos de
democracia e para dizer aos arautos da inevitabilidade que a pobreza é uma
coisa muito triste.
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A lindíssima fotografia que ilustra o artigo é da Milita, a quem agradeço, apesar da sem-cerimónia de lhe não ter pedido autorização. Mostra o lado belo do frio.