ii - o caldo e as sopas
Nós não temos
sopa, temos caldo, palavra de pergaminhos porque filha legítima do
latim caldus; palavra fidalga que deveríamos preferir à
burguesa sopa que nos entrou portas adentro quando, por cá, se decidiu que era
muito chic entremear galicismos nas frases (tal como agora é
muito stylish misturar anglicismos
de origem americana).
Se não temos sopa, temos sopas, que é palavra bárbara de origem germânica (suppa),
provavelmente trazida pelos visigodos ou pelos suevos, à qual preservamos o
sentido original: bocados de pão que se deitam em líquidos. A palavra tem
singular, mas porque ninguém se sustenta atirando um único pedaço de pão para
dentro da malga, usamos o termo sempre no plural. É assim que, com toda a
propriedade, comemos as sopas de leite, as sopas de café, as sopas de cacau, ou as sopas
de vinho. Às vezes dizemos ao contrário: leite com sopas, café com sopas,
etc. Quem se não lembra daquela história, passada com um conterrâneo nosso que,
chegando a um café da cidade grande, pediu: “o meu traga-mo com sopas!”
As sopas de leite comíamo-las poucas vezes,
porque as vacas mirandesas – aquelas que tínhamos e nos serviam – não são
leiteiras e o seu úbere era mamado pelos vitelos.
As sopas de café eram servidas de manhã cedo, ao
mata-bicho, em malgas de tamanho proporcional ao esforço de ter de arrancar da
terra o sustento da família.
As sopas de cacau marcavam presença nos dias
importantes da matança, ou da malha, forma de a família agradecer o trabalho de
quem a vinha ajudar, proporcionando-lhe mimos de mesa fidalga.
As sopas de vinho, embora houvesse quem as preferisse às de café, eram
pouco chamadas à nossa mesa, e comidas só pelos homens. Também elas eram
disponibilizadas nas segadas, na malha ou na matança a quem as quisesse.
Mas as sopas, sem outro nome à
frente, eram aquelas fatias de pão, quase transparentes, que a dona da casa
cortava para a malga e sobre as quais derramava água fervida e temperada com
duas areias de sal e um fio de azeite. Como descrever o perfume que se soltava
dessas malgas em que pontuava o agre ligeiro do centeio e a macieza do azeite
puro diluídos na água cálida? Como descrever os círculos da cor do ouro que
dançavam à superfície, ora unindo-se uns aos outros, ora dividindo-se à medida
que a colher mergulhava na tigela? Como descrever a beleza cromática dos tons escuros
da côdea que se vão misturando com os tons mais claros do miolo? E como
descrever a satisfação dos sentidos ao saborear tudo isso?
Havia, ainda, a variante das sopas trigas, porque feitas de pão de
trigo, e das sopas com ovo quando, para
dentro da água em ebulição, era aberto um ovo que se mexia para se desfazer em
fios de gema e de clara. Era prazer em estado puro, ou serão as saudades da infância
a sobreporem-se à verdade?
O caldo
(e era esse o tema único do artigo quando pensei escrevê-lo), para nós, é só
um: o de couves – e couve galega! É verdade que comemos outros, mas dizemos que
é de arroz, de massa, de feijão, etc.
O caldo exige
mestria feita de muito amor, paciência e treino. Todos os dias, a mulher colhe
as couves, olha-as de um lado e do outro, retira o pedacinho da folha onde
esteja um bicharoco, ou marcas dele, sacode uma por uma e, depois, com cuidado para
as não ferir, enrola apertadamente umas nas outras, até obter um manhuço perfeito
e dimensionado ao tamanho da sua mão aberta, mas que arrocha em garra. Depois,
corta os trochos (que servirão para as galinhas) e apara as pontas rebeldes. Só
então estica o avental, ou puxa um alguidar, e começa a segar o caldo, com a mão
esquerda encostada ao peito, que lhe serve de amparo, enquanto a direita
empunha a navalha bem aguçada. Para ser o nosso caldo, as couves têm que ser cortadas
em fios quase tão finos como cabelos. Se forem mais grossas já não servem e a mãe,
que ensina a filha, repreende-a se fizer de outro modo: “olha que isso não é para os perus!”
A navalha não
passa rente à mão; a navalha pressiona a mão, empurrando-a para baixo, de modo a que
o corte seja exactamente da espessura requerida. À medida que vai sendo
preciso, com a mão direita fazem-se subir as couves e, nesses momentos,
aproveita-se para reajustar o manhuço e retocar de novo as pontas rebeldes. Terminado
o primeiro corte, elas voltarão a ser talhadas, desta vez para que os fios fiquem
menos compridos, facilitando a degustação. Só então se mergulham na água, pelo
menos duas vezes. Nessa altura, já as batatas estarão cozidas e prontas a serem
esmagadas com o garfo – também elas, uma a uma. Depois disso metem-se a couves,
verifica-se o sal e tempera-se com uma bela colherada de unto.
Dá-se tempo
para que as couves dêem uma volta na panela, ou no pote, e não mais que isso,
para que o caldo não fique velho. Frequentemente
é preciso acrescentá-lo, que é o
mesmo que dizer, adicionar um copo de água para o tornar menos espesso. No fim
da refeição, é lançado directamente
da panela (ou do pote) para a malga e comido com colher. A minha mãe, contudo,
comia o caldo sempre com garfo. O meu pai gostava de esforgalhar sobre ele algum miolo de pão, para o comer migado.
Hoje já não
temos unto, mas o caldo de couves só me sabe bem em Rebordaínhos.
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Veio-me isto à lembrança por
causa da seguinte passagem de Camilo:
Uma grande parte do clero que pastoreia as almas, pode bem
ser que me não aceite a verosimilhança deste caldo de couves. Espero que desçam
da sua incredulidade, se eu lhes disser que a côngrua e pé-de-altar de S. Julião
da Serra não davam para chá, naqueles tempos em que os direitos da xaropada
chinesa eram enormes, e os paladares genuinamente portugueses, lá daquelas
serranias, se saboreavam de preferência no salutar cozimento de couves adubadas
de saboroso unto. Ora eu, que nesta fidalga e francesa Lisboa tenho sido espectáculo
de riso, pedindo nos hotéis e recomendando aos meus amigos, o caldo verde,
dando à estampa neste lugar e para meu duradouro opróbrio, o panegírico do
caldo verde, caldo de meus avós, e do padre João, e de sua irmã.
In Camilo Castelo Branco, O Bem
e o Mal