terça-feira, 6 de maio de 2008

Camilo

Rebordaínhos há cinquenta anos
Foto cedida pelo Orlando Martins

Corria todas as casas e em todas recebia abrigo, de cá para lá, filho de ninguém, sem terra a que chamasse sua. O Camilo era um bagamundo que o mistério trouxera das Áfricas até Rebordaínhos, há bem mais de cinquenta anos.

De uma caixa de fósforos tirava sons de encantar e ritmos que espantavam quem nunca ouvira tal. Se se sentava, era do banco que fazia tambor, ou do tronco cortado de uma árvore, ou de uma lata largada ao acaso.

Do Camilo sabíamos que dormia em nossas casas, que comia do nosso pão com toucinho e que se prontificava para cumprir um favor que lhe pedíssemos. De nós ele sabia, muitas vezes, até o que cada um desconhecia.

Naquela altura não se via um preto nas redondezas, mas, não sei porquê, a aldeia
aporfilhou-o e eu tornei-o meu companheiro. O Camilo era um Homem negro, negro da noite que vestia, noite negra de igualdades. O medo que inspirava à noite, quando na solidão se refugiava, transformava-o em romaria quando ao nascer do sol se atrevia, lentamente, a tocar, pedir e viver só. Este preto fez crescer em mim sentimentos de amizade e compreensão.

CHEGAVA O COMBOIO

Noite fria esperava cansado
O Preto “Camilo” tamborileiro…esperava…
Enfim… o som “côvado do carvoeiro”…
O comboio chegava…

Eu. Não esperava ninguém…

Na descida incerta ao chão gelado
Na noite da montanha agreste,
Na bruma clara do frio Nordeste,
Ali estava aquele Preto calado…

Chorava um ano de solidão…
Calava saudades de amor…
Esperava-o, …vi-o, e senti a dor.
Da triste alegria de um companheiro só.

O abraço para mim era um laço…
Do partir de mim e ter ninguém…
Do renascer tudo, aqui e além…
Do chegar da noite e ter luz.

O caminho era longo e as conversas…
Conversas, tantas vezes paradas,
Medo de as perder inacabadas
Sem que o fim e as saudades as terminem.

Canto um caminho longo
Chego a casa e prolongo a vida
E logo me ataca a fadiga
E a dor e o amor de dividir.

Eu vou dormir …
Fiquemos aqui…
A noite é minha,
As noites são tuas “Tamborileiro”,
Amigo…

Vamos dormir.

Orlando Martins (2001)

20 comentários:

Anónimo disse...

Bonita poesia, descrevendo uma amizade, e as qualidades de um amigo, sem preconceito, todos diferentes, todos iguais, bonito, gostei, imenso.
Parabens para o Orlando Martins!
Abraço
Manangão

Porca da Vila disse...

Fez-me recordar o espanto e a curiosidade com que a garotada do meu tempo mirava e remirava qualquer preto que aparecesse aqui pela Braganzónia. Coisa então muito rara de acontecer neste cú de mundo!

No início dos anos 60, apareceu por cá um padre, tão preto como amante de um bom jogo de futebol, tão amigo da criançada como homem de carácter excepcional, que veio tomar conta da segunda freguesia da cidade. A partir daí o preto passou a ser olhado com a maior naturalidade deste mundo, e a cor da pele passou a não ter qualquer importância! O padre chamava-se Miguel, e a freguesia era de Santa Maria.

Um Xi Grande

J. Stocker disse...

Cara Amiga PV e caro Amigo J.Manangão

A minha responsabilidada em relação a este post, tem só a ver com a cedência do espaço, o Orlando é o autor e a Fátima a responsavel pela ntrodução.
Gostaria muito que fossem eles a publicar os próprios post, mas , por quqlquer motivo, que eu respeito, não o querem fazer, o meu obrigado mais uma vez a eles e aos meus amigos que nos dão
animo para continuar.
Ainda conheci o Camilo!

Um abraço para todos

Isamar disse...

Mais um post excelente,uma " co-produção" Fátima e Orlando. Excelente. Eu recuei umas boas décadas e recordei um tal Zacarias, doce homem, da cor da noite, de olhos esbugalhados,bom cozinheiro, cuja vinda para a Europa nunca soube explicar.
Devido à sua compleição física nunca o relacionei com a música. Constatei mais tarde que uma coisa e outra não são incompatíveis.
Beijinhos

Anónimo disse...

Sophiamar

Desta vez o João exagerou e nem reparou que a introdução estava escrita na 1.ª pessoa. De mim, apenas alguns pozinhos, por isso desta vez os elogios são todos para o Orlando. Mas eu agradeço na mesma.

Um abraço

Fátima

Anónimo disse...

Caríssima PV

Atá à minha vinda para Lisboa, o Camilo foi único preto que eu jamais vira: era Rebordaínhos, não Santa Maria, a minha paróquia.

Tem razão, a minha amiga, em dizer que gente assim grande nos faz ultrapassar o receio nascido da estranheza e de algum preconceito.

Um abraço

Fátima

Anónimo disse...

Santa mãe do céu, ando a ler coisas a mais da Idade Média: "atá" já foi, pois que agora é "até"!

Fátima

Anónimo disse...

Olá João e Fátima

Parabéns! O blogg está bem fixe!
Quando os oiço dizer que estão em Trás-os -montes nunca imaginei "Rebordainhos". Agora já começo a conhecer a terrinha da Fátima e diga-se de passagem que ao ler o blogg fico com alguma "inveja" de não ter tido oportunidade na minha infância de ter ido mais vezes ao Larinho.
João depois de ver isto tens mesmo que me ajudar na concepção do meu blogg! Força para continuares rebordainhos!
aninhas

J. Stocker disse...

Aninhas

Agradeço a rua visita ao nosso cantinho, ainda só tem 3 meses de vida.
Quanto à ajuda, concrtrza que ela será prestada, alias já começou a ser.

Beijinhos

Olímpia disse...

Linda poesia.
Obrigada, Orlando.
Com a poesia "Camilo", fizeste-me lembrar os tempos da infância.Aqueles tempos que julgava já ter esquecido.O tempo das férias grandes. O tempo em que os nossos olhos ganhavam reflexos, o tempo de matar saudades.
Tocávamos e cantávamos canções.Lembras-te?
És capaz de lembrar os tempos da nossa infância e adolescência?
O tempo da casa velha (" a casa de além"), da escola (quando, fortuitamente e às escondidas,saltávamos o muro para brincarmos ou,em segredo me ensinavas as contas), da guarda das medas, das malhas, do tanque da Srª D.ª Graça onde, tomar banho era uma delícia?
Respirávamos o ar perfumado das flores campestres e, saboreávamos os deliciosos frutos campestres.
Corríamos pelos campos verdejantes e, víamos as lagartixas fugirem para os seus buraquitos.
Lembras-te?
Lembras-te daquele senhor que usava muitas gravatas ao pescoço?(Aquelas que os estudantes lhe ofereciam)E daquela senhora que transportava sempre consigo um caldeiro? ( Ou seria um pote?)
Foi quando li a tua poesia ,que comecei a recordar algo que julgava já teres esquecido...que eu já esquecera também.

Anónimo disse...

Juventude!!!

Agora deixaste-me com um grande nó na garganta que se vai apertando de lembranças e sobe até às glândulas lacrimais.

Humrrumm...

É preciso respirar.

Obrigado.

Este espaço, tudo isto é nosso, de todos os transmontanos e portugueses, vamos vivê-lo, ou revivê-lo.

Tu já cá estás. Pimba....

Em breve vais ter o teu "touch down".

E para terminar, muito "obrigado", (raios partam a garota), à Fatima por me teres deixado a obrigação deste comentário para a "Liloto".

Já ninguém se ofende com alcunhas de infância, pois não?

Ditas agora são manisfestações de carinho e amizade.

"Já s'tá"

Tás a ver Olímpia?

Até breve

Orlando Martins

Anónimo disse...

Vocês já viram os dotes escondidos desta menina?

Já viram bem?

Ora releiam...

Orlando Martins

Anónimo disse...

Orlando

Já vi, já! Já li e reli aquele texto em nostálgica prosa poética. Mas como te era dirigido, chegando-me atrás empurrei-te para diante. Fiz bem ou não? - Pergunta retórica porque já respondeste!

Beijos

Anónimo disse...

Liloto

Vê lá se te animas. Tens assuntos sobre os quais escrever e sabes como fazê-lo bem. Gastar tempo com estas escritas não é roubar tempo ao importante, é subtrairmo-nos, nós próprios, às chatices que os dias fazem o desfavor de nos apresentar.

Escreveste um texto muito bonito, repleto de memórias vividas. E há tantas mais: o rou-rou desde o lusco-fusco até ser noite cerrada que nos fazia, às vezes, bater de caras em algum morcego; há a gritaria do "chobisca chobisca...", a pelotada... e fico-me por aqui porque, senão, ainda escrevo um livro inteiro.

Vá, pega nas maozinhas, puxa da memória e começa.

Beijos

Anónimo disse...

Mas ninguém pega na fotografia? Terei de ser eu, que não integro o "elenco" do blog, a dizer alguma coisa sobre ela?

Quem avança?

Augusta disse...

Só hoje, porque os afazeres profissionais assim me obrigaram, é que estou "a por a escrita em dia"...
E esta é para ti, menina Fátima: achas que me esquecia do 13 de Maio? De qualquer dia 13?
A minha actividade profissional ao longo desta semana tem sido mais que intensa, mas não ao ponto de me esquecer de tal dia.
Já dei o recado. Está dado.
Mas quanta coisa aconteceu na minha ausência! estou estupefacta.
O menino pirlandas que se deixe de exéquias, e que comece a fazer por si próprio, aquilo que tão bem sabe fazer. Ao liloto, digo o mesmo.
Já está
Augusta

Augusta disse...

A fotografia de Rebordaínhos traz-me a lembrança,o tempo em que, no inverno, as ruas eram cobertas de palha (as estrumeiras), que, depois de pisadas por pessoas e animais, depois de acrescentadas com os mais diversos desperdícios, eram na altura de começar a tratar dos campos, aproveitadas para estrumar os mesmos.
Claro que, do trabalho não me lembro tão bem como das brincadeiras, e dos saltos que cada um de nós ia experimentando fazer, cada vez de um degrau mais alto, até chegarmos ao patamar das escadas da casa da tia Mª Cândida, e que é hoje da tia Alzira.
Por vezes, a brincadeira não corria lá muito bem! Que o diga a nossa Tina com os seus dois golpes transversais na língua...
Beijos

Anónimo disse...

Garota

Leia-se: Augusta

Sei bem que não, por isso já apaguei. Foi uma espécie de desabafo à "Mafaldinha". Lembras-te quando ela ia ter um irmão? A certa altura diz: "É curioso, de repente senti que me entrou uma pedrinha na alma!" Mas foi só um repente.

E fazes tu muito bem em insistir com aqueles dois!

Aquilo que escreveste sobre a fotografia merece transformar-se em artigo. Não queres, em tendo tempo, dar-lhe o tratamento devido?

Beijos

Augusta disse...

Só não apago o meu porque sou ignoranta nestas coisas da informática.
Beijinhos

Olímpia disse...

Às vezes, acontecem-me destas coisas.Não sei bem como.Reli o texto e não vi nada de especial.Apenas uma palavra trocada(Queria dizer "frutos silvestres").
Tenham mas é juízo.
O culpado disto tudo, é o menino Orlando que, depois de falarmos ao telefone, me fez reviver bonitos momentos da infância.
Obrigada a todos.
Beijos
Olímpia