terça-feira, 15 de julho de 2008

ARES DA SERRA





II - POTRIQUEIROS

por

António Augusto Fernandes




F. Léger, L'Acrobate et les Jongleurs (1965)


Conversava-se ao desenfado sobre política e políticos no meio daquela gente tranquila das serras do norte. Aproveitando uma pausa nos prolóquios, uma mulherzinha miúda, de atentos olhos de azeviche, envolta nos trapos negros de quem já muito aturara à vida em fomes e pesares, sai-se de lá com a exclamação desenganada: São uns potriqueiros! E a palavra saltou-me, inteira na sua risonha complacência, dos escaninhos das memórias da infância, onde adormecera há que vidas.

Onde iam eles, os potriqueiros!
Nos tempos esganados que se seguiram à Segunda Grande Guerra, não era fácil para um pobre acudir todos os dias aos ladridos da barriga atormentada pela fome e havia que recorrer a almudes de criatividade para rapar o magro pão de cada dia, dia sim dia não. Dentre esses imaginativos salientavam-se os potriqueiros. Potriqueiros lhes chamava o povo do norte, fazendo uso de uma simpática corruptela de pelotiqueiros, significando uma espécie de artistas mais ou menos circenses que faziam jogos malabares com pequenas pelas, cujo diminutivo seria pelotas.

O povo até que gostava deles, dos potriqueiros, seus irmãos na miséria e descendentes de uma longa linhagem de artistas saídos do povo, cujos ascendentes mais remotos se situavam entre aqueles velhos jograis que, no tempo dos afonsinos, percorriam feiras e vilares com seus momos e mistérios, seus cantares e poemas, numa Idade Média que, nas serras do interior, teimou em prolongar-se pelo século XX, tanto no imaginário religioso e profano, como na maneira de lidar com a terra. Com o tempo a palavra foi alargando a sua dimensão semântica e passou a significar também aqueles que mostram capacidade de sobreviver à custa de simpáticas artes e manhas de carácter mais ou menos histriónico.

Esses potriqueiros arribavam à aldeia pelo Outono, quando partiam as andorinhas e o lavrador dava por findas as canseiras das malhas, da arranca das batatas, pois que os ouriços dos castanheiros, ainda não tinham começado de arreganhar. Pelas encostas da serra, acobreavam as ramagens de touças e soutos e as primeiras névoas prenunciavam o repouso da madre natureza exausta da parturição dos seus frutos. Era um tempo de pausa em que as tulhas cheias deixavam o lavrador mais propenso a largar uma malga de grão de centeio ou meia dúzia de batatas nos alforges destes histriões errantes, em troca de uns malabarismos, duas anedotas brejeiras e alguns truques de ilusionismo que lhe fizessem esquecer as canseiras de todo um ano a lutar com uma terra áspera e avara em mimos. Surdiam imprevistamente, não se sabe donde, com suas azémolas tropiqueiras ajoujadas debaixo dos magros trastes da cozinha de campanha, das vestimentas com que encenavam as suas pantominas e, às vezes, o luxo de um velho animatógrafo asmático cujas fitas enguiçavam a cada cinco minutos.

A moçoila mais vistosa da tropa fandanga, de perna ao léu e faces avivadas a lápis lazúli e vermelhão, mais o moço do cornetim, davam volta ao povoado, alagando de alacridade as ruelas bisonhas da aldeia granítica com o seu colorido e as suas notas vibrantes do velho chanfalho e arrastando atrás de si a horda grulhenta do garotio. E um frémito de charme exótico sacudia as grossas gentes serranas.

À noite, no largo da aldeia, com o sobrado de dois carros de bois desembaraçados das engarelas, postos os pinalhos na horizontal, faziam palco para exibição das suas pantominices, ou, se o tempo não estava para folestrias, em palheiro mais amplo lastrado de palha nova, pedido de empréstimo a lavrador mais galhofeiro. E o pessoal acorria a esse Tivoli improvisado, mais basto que pardais a uma eira depois das malhas. Compenetradamente, os artistas tentavam compensar o seu público dos magros tostões desembolsados entregando-se com denodo aos seus jogos de prestidigitação, à declamação histriónica de estrofes mais ou menos fesceninas e à encenação rudimentar de farsas ligeiras herdadas e estropiadas desde os tempos de Gil Vicente.

*

Desapareceram os potriqueiros. Desapareceram levados pela correnteza do imparável tempo que tudo consigo arrebata. E, com eles varreu-se a palavra mágica, potriqueiros, que nem sequer o Houaïss nem o Dicionário da Academia registam.

21 comentários:

Anónimo disse...

Tonho

Não te dou novidade nenhuma, mas é para (indo de encontro às tuas preocupações) os leitors se afazerem ao "rebordainhês".

Ora, no tempo dos afonsinos que tu citas, os jograis, avoengos dos potriqueiros, escreviam e cantavam assim para divertir a populaça e as cortes régias:

"Esta outra cantiga fez a Pero Rodrigues Grongelete de sua mulher que havia prez que lhe fazia torto"

Pero Rodrigues, da vossa mulher,
não acrediteis no mal que vos digam.
Tenho eu a certeza que muito vos quer.
Quem tal não disser quer fazer intriga.
Sabei que outro dia quando eu a fodia,
enquanto gozava, pelo que dizia,
muito me mostrava que era vossa amiga.

Se vos deu o céu mulher tão leal,
que vos não agaste qualquer picardia,
pois mente quem dela vos for dizer mal.
Sabei que lhe ouvi jurar outro dia
que vos estimava mais do que a ninguém;
e para mostrar quanto vos quer bem,
fodendo comigo assim me dizia.

Martin Soarez (ou Martim Soares), Jogral (a cantiga está, evidentemente, adaptada, mas não sei por quem).

Anónimo disse...

Agora o teu texto

Tiradas memoráveis e associações supreendentes de palavras, como aquela dos "almudes de criatividade".

Não conheci os poriqueiros, ou então, era muito miúda para me poder lembrar. Mas de certeza que a malga de grão da paga, que se não sentia na tulha, era preço justo dos malabarismos que fizessem e textos que declamassem.

Quanto ao registo nos dicionários... do da Academia não me espanta, mas espanta-me o Huaïss e o José Pedro Machado. Nem o Viterbo!

Muito obrigada por mais este bocadinho tão saboroso e apelativo dos sentidos.

Beijos

Augusta disse...

Tonho:
Estes teus potriqueiros fizeram renascer umas memórias que há muito estavam arquivadas. De facto, tenho uma ténue lembrança destes potriqueiros que, se bem me lembro, costumavam actuar no prado.
Felizmente cá apareces tu para nos ajudares a eternizar essas recordações. E que bem o fazes!... Por isso, e mais uma vez, te estou eternamente grata. E, faz-nos um favor a todos. Não deixes de escrever e, continuar a deliciar-nos a todos.
Beijos

J. Stocker disse...

Caro António

Mais um belo registo, consegui visualizar a cena no prado de Rebordaínhos.

Parabéns

Anónimo disse...

Uhm... cheira-me a férias... ó eu, tadinha de mim, ainda estou a trabalhar!
Augusta

Anónimo disse...

correcção:
digo: só eu e não ó eu
Augusta

Anónimo disse...

Só tu, uma ova!

Mas que já pensei o mesmo, isso já!

Beijos

Isamar disse...

J.Stocker

Um excelente texto, este que o António Fernandes aqui nos deixou. Que me perdoem os meus mui estimados Torga e Aquilino mas senti-me um pouco em sua casa. E devo dizê-lo que cheguei a recorrer ao dicionário para entender alguns vocábulos que o sul já aventou das tardes de chalanga sob o alpendre ou em torno do cepo que lentamente se consumia no "fogarelo" feito ao lusco-fusco depois de um dia de frio e labuta na leira de couves, de batatas, de alhos...
Passar por esta casa é quase uma obrigação que me impus embora por vezes me falte o tempo para comentar.
Por aqui, ainda se trabalha e férias nem vê-las.

Veja só, J., que ainda não fui à praia este ano. Nunca me acontecera!

Um abraço

J. Stocker disse...

Sophiamar

Eu bem gostaria de ver estes textos do amigo António publicados, intercaladas com poesias de Orlando.
Se a amiga precisa de dicionário, o que direi eu, quem me vai valendo é a Fátima.

Ainda não foi à praia, eu não vou ao barco fez na Páscoa um ano, que saudades, infelizmente não é por falta de tempo.

Olhe que as férias são precisas!

Um abraço grande

Anónimo disse...

Belo texto do A.A.Fernandes, descrevendo aquilo que era a cultura e entretenhimento do povo, dessa época, aqui nos arredores de Lisboa na aldeia onde nasci(Porto Salvo)recordo que lhes chamava-mos Saltinbancos, tinham uma cabra que conseguia por as quatro patas em cima do gargalo duma garrafa, e, costumava tambem vir o galego com a máquina rotativa manual passar filmes mudos, que eram relatados por ele próprio, o ecram era caiado na parede de um palheiro, os bancos chamados de mochoseram emprestados pelo taberneiro, naquele tempo trabalhava-se até á noitinha, acontecia estar-mos a ver um filme, e tinhamos de nos levantar para dar passagem aum carro ou uma junta de bois.
Tudo isto se passava á volta do ano1948/50 a 20Km da de Lisboa e do Estoril.
Abraço amigos

Anónimo disse...

Olá primo,
Antes de mais, parabéns atrasados, mas no teu dia não estava cá.
Obrigada por nos avivares a memória com um texto tão verdadeiro e transparente.
Eu, além de tudo o que tu mencionas, lembro-me ainda de uma palavra engraçada e que também não consta no dicionário.
Quando os forasteiros arribavam, ouvia-se dizer: Esta noite há "estrelóquio" no prado.
Continua a escrever, ficamos à espera de mais contos e histórias que tão bem sabes transmitir.
O meu obrigada.
Regina

Anónimo disse...

Céu

A do esterlóqui já o Tonho ma tinha dito, mas ainda bem que a lembraste. Mas explica-me lá: só se falava em esterlóquio quando chegavam os potriqueiros? Não se usa a palavra noutras situações?

Desde já, obrigada pela resposta.

___
Então o António é de Julho? E não disse nada?

J. Stocker disse...

Caro António

Volto aqui para lhe deixar os meus parabéns, sem eles não fica!
Creio que deve estar de férias, pela sua ausência, aproveite bem as mesmas.

J. Stocker disse...

Amigo Manangão

Aqui venho agradecer sua visita ao blog as palavras ao texto serão para o autor agradecer quando regressar da sua ausência, penso que de férias.
Só lhe queria dizer que também me lembro, de em Algés (a poucos Km de Porto Salvo) quando criança, por lá passarem os saltimbancos com as cabras e o homem"cospe fogo".
Esse grupo que passava por lá quando eu era criança tinha uma particulariedade os homens e mulheres montados nas andas a anunciar o espectaculo! Que susto que apanhei, um dia de verão , criança, quando vi um a espreitar para dentro do quarto,.

Um abraço

Anónimo disse...

Fátima

Eu só me lembro de se falar no estrelóquio nessas ocasiões. No entanto vou tentar saber mais sobre o assunto, junto de pessoas mais antigas.
E já agora precisava da tua ajuda para tentarmos fazer um trabalho sobre Rebordainhos.
Sabes em que ano foi concedido o foral?

Anónimo disse...

Céu

Desculpa a demora na resposta. Não foi falta de tempo nem descuido, antes, muita procura. Se ao menos tivesse resultados!

Estive o dia todo de ontem e a manhã toda de hoje à procura de referências ao foral de Rebordaínhos. Revirei, salvo seja, o Abade de Baçal, espiolhei o "Índice dos Foraes..." e obtive "Uma mão cheia de nada"

Usando as variantes da grafia propostas pelo Abade de Baçal, encontrei no dito Índice":

"Revordinos", termo de Gravelas (Caravelas)com foral doado por D. Afonso III em 1220.

"Rebordinho", incluído no foral do Barreiro onde se trata do foral de várias povoações, nomeadamente "Rebordinho", e que integra o Livro dos Foraes Novos da Beira e foi doado por D. Manuel em 1514.

Nem um nem outro me parecem o nosso Rebordaínhos. Baseio-me na transcrição que o abade de Baçal faz de um excerto das inquirições de D. Afonso III em que se diz o seguinte:

Itm: freguesia de Santa Maria de Revordayos; a aldeya que chamem Revordayo he provado que soya seer foreira d'el Rey e de Bragança e que lhy peitavam vooz e cooima e outros foros; e ora trage-a toda o arcebispo de Braga e Castro d'Avelãas e o espital por sua e por honrra des o tempo d'El Rey dom Sancho prestumeiro que nom fazem ende a el Rey Rem nem a Bragança e nom dizem as testemunhas per que razom. Seja toda devassa e entre hy o andador de Bragança pollos dereitos d'El Rey sobre la compra e ganhadia."

Diz-se, então, que desde D. Sancho II (prestumeiro) Rebordaínhos não presta contas ao rei nem a Bragança, estando dominada pelo clero (arcebispo de Braga, mosteiro de Castro de Avelãs e Hospitalários). D. Afonso III repôs a ordem.

Aqui não se diz quem concedeu a liberdade (foral) a Rebordaínhos, mas fica a saber-se que a tem ao tempo de D. Sancho II (R. 1223-1248).
____

O mais engraçado no meio disto tudo é a seguinte passagem do tal “Índice” que referi acima:

“Arufe – [Foral] Dado em Coimbra a 25 de Outubro de 1266. Livro I de doações do Sr. Rei d. Afonso III f.84 col.2 de princípio. E outro dado por rui Martins, alcaide de Bragança em Bragança a 29 de Maio de 1304; e confirmado na Guarda a 12 de Abril de 1308. Liv. IV de Doações do Sr. Rei D. Dinis f.47 col.2”

Tenho pena de ter ajudado tão pouco…

Beijos

Olímpia disse...

Não me lembro dos potriqueiros mas, com este extraordinário texto, consegui visualizar a cena em todo o contexto.Até lhe acrescentei algumas mulheres a fiarem, a dobarem ou a fazerem meia.
Obrigada, António.
bjos
Olímpia

Anónimo disse...

Fátima
Obriga pelo teu enorme esforço para nos ajudar.
De facto não conseguimos encontrar esse registo e lugar nenhum.
Há ali uma lacuna que parece difícil desvendar.
Mas é sempre muito valiosa qualquer informação que nos possas dar.
Mais uma vez obrigada
Céu

Anónimo disse...

Tonho

A gente procura uma coisa e acha outra. Na "Revista Lusitana (XXVIII) está a seguinte nota de José Leite de Vasconcellos:

NOTA À MARGEM DA 3.ª EDIÇÃO DO “DICIONÁRIO” DE CÂNDIDO DE FIGUEIREDO

As sucessivas edições do «Dicionário» de Cândido de Figueiredo têm sido enriquecidas com muito vocabulário novo, isto é, não constante das edições anteriores.
Contribuindo pela minha parte com pequena parcela para a 4.ª edição, mais ampliada, aí vai uma série de vocábulos colhidos na quási totalidade nos arredores de Viana do Castelo, principalmente na frègusia de Outeiro, dispensando-me esta informação de indicar para cada palavra o local onde foi colhida, excepto quanto às que tenham procedência diversa.”

Ora, chegando à letra P encontramos:

“POTRIQUEIRO, m – pessoa de poucas forças. Pessoa que se julga alguém mas pouco vale.” (p. 273)

Ficamos,então, a saber que em Outeiro também usam o vocábulo dando-lhe, embora, significado diferente do nosso, embora se aproxime bastante na segunda acepção.

Que me dizes a isto?
___
Não pude consultar o Cândido de Figueiredo - não o tenho e não o acho disponível na internet.

Beijos

António disse...

Fátima:
Em defesa dos nossos POTRIQUEIROS, outro dia, numa conferência em Moimente da Beira, utilizei potriqueiro como forma de ironizar os POLITIQUEIROS. O vereador da cultura, que estava presente e é da Lapa, contou o que tu já tinhas contado, que, em pequeno, a mãe lhe chamava potriqueiro com o sentido de trampolineiro; repara que a palavra (de trampolim) se situa na mesma zona semântica das artes circences.

Anónimo disse...

Tonho

Sê bem aparecido!

Obrigada pelo acrescento e pela utilização que fazes das nossas palavras em circunstâncias de mais cultura.

Lembrei-me, agora, de outra situação em que a potrica é usada, a daquele jogo de roda que reza assim:

"Linda borboleta deita-te a voar
E a menina... já se quer casar
Já se quer casar (não?) quer morrer donzela
Já se quer ir prá POTRICADELA"
(...)

Beijos