sexta-feira, 25 de julho de 2008

Arufe

DOS DICIONÁRIOS:

Ar(ulfi) + (W)u(l)f
Arulfus + Wulf: águia e lobo
.


Arufe, sítio de águias e de lobos. Arufe, lugar de céu e de terra; lugar dos senhores do céu e dos senhores da terra.


Em Arufe tudo é essência e primórdios.

*
Arufe é um vale velho da meseta, quebrado pelas forças que criaram os primeiros continentes. O sítio da fractura foi sendo calcado pelas ribeiras enquanto as montanhas, devastadas pelos ventos e pelas chuvas, se transformavam, lentamente, em planaltos. É por isso que o vale de Arufe é amplo e a serra não oprime.

Às vezes, a Terra mostra as entranhas em barrancos fundos que são úberes floridos, maneira de nos provar que é muito mais do que o chão que permite que pisemos.

A variedade de verdes é quase inesgotável e quando se eleva o olhar vemos o verde estampado num azul tão puro e transparente que custa a acreditar. Os lobos, se fossem ferozes, escolheriam outro lugar para viver.

Arufe é lugar com coordenadas geográficas definidas, possível de alcançar por caminhos de bichos e por caminhos de homens.

A geografia emociona e emudece quem lá chega. Aí, o acto da criação é absoluto, real e concreto: no cheiro da terra fofa, funda e húmida; na fragilidade dos caules da flora rasteira que atapeta os passos dos animais, dá as cores aos sonhos da noite e impregna o sangue com o perfume discreto que dá a respirar; na música da água corrente e sempre presente, temperadora do frio e do calor; na singeleza da roseira brava, do linho bravo, do abrunheiro bravo e de todas as plantas não tocadas por mão humana; na copa heróica de cada castanheiro que se intersecta com a copa heróica de outro castanheiro, ou de um freixo, ou de um olmo, gigantes protectores que coam as inclemências das alturas e são sustento de bichos e homens.


Arufe é permanência. Arufe é o tempo que não muda.

*

Se Arufe é sítio de lobos, a casa é a toca dos homens, lugar onde se abrigam do frio e onde podem pernoitar sossegando o alerta dos sentidos; é espaço de aprendizagem das hierarquias e da linguagem a condizer; é sítio da experimentação dos afectos mais profundos.
Os Homens da casa são lobos na acepção que os lobos farão de si próprios, se nas línguas dos homens formos capazes de lhes traduzir os termos. Amam-se, ensinam-se e sustentam-se, cada um para todos os outros até à extenuação das suas possibilidades. Sendo toca, a casa é lugar de ser-se e pertencer-se.

Em Arufe havia a casa da avó.

A casa fica encravada na boca aberta de uma eira esboucelada. Casa e eira - abrigo e sustento - são território dos homens-lobo.
Tudo tem a cor da terra porque a casa, de granito e xisto, enegreceu por fora e enegreceu por dentro e o telhado fica ao nível do chão da eira. Em Arufe, as construções dos homens são tocas de lobos e só assim são harmonia, e só assim fazem sentido.

Em tempo certo, no justo devir das estações, a casa escura e baixa enchia-se de ramos de amoreira. Nas folhas passeavam-se os bichos-da-seda, no seu vagar de comer que é o vagar da infância.
Mais adiante no tempo, cachos de casulos distribuíam-se pela cozinha ampla e abochicavam-na de ouro. Aos serões, mulheres e raparigas aconchegavam-nos ao seio, não fosse o frio impedir a metamorfose. Só mulheres e raparigas. Às mulheres e às raparigas cumpriu sempre acalentar a vida.

Apenas algumas crisálidas seriam aconchegadas: aquelas às quais estava destinada a perpetuação. O destino das outras cumpria-se longe do olhar das crianças, não por querer poupá-las à dureza da verdade, antes, porque as dobadeiras e tecedeiras da seda seriam de paragens mais longe. Para aqueles que residiam na casa, a vida nunca foi coisa que se escondesse. Mas, pelos casulos que ficavam, os meninos podiam testemunhar a ressurreição!

Os olhos grandes de uma criança de corpo miúdo guardaram cada uma destas imagens. Elas haveriam de tornar-se lastro importante de recordações afectuosas. E se a memória resultar, tão-só, da visualização das palavras de outros, não será menos sua, nem sequer menos possível.

A certo tempo a casa esvaziou-se de gente e os bichos-da-seda deixaram de contar com os afagos de mãos cuidadosas. O interior, que o lume deixou de alumiar, queda-se em negrume de fuligem. Cá fora, as amoreiras vão perdendo o viço, como se quisessem dizer que já não servem para nada. Nas paredes da casa medram fetos e ervas do "arroz" e dos "roquelhos", agora poupadas às brincadeiras que a canalha inventava com elas. A eira deu-se ao descanso. Nas suas bordas, figueiras e medronheiros podem crescer sossegados. Reina o silêncio.

É estranho falar de silêncio quando a eira se enche dos cantos da bicharada: toutinegras, pardais, rouxinóis, pintassilgos, rolas... até o cuco se aproxima, esquecido da timidez. E à noite há corujas e mochos. A passarada multiplica-se, agora que nenhum ganapo lhe persegue os ninhos, em hora de lazer e de lazeira lambona. Há também as preguiças e os vaga-lumes e isto só para falar nos animais que os homens são capazes de ouvir! Falar de silêncio, no meio de tamanha sinfonia, é como dizer-se que só a voz dos homens pode dar corpo ao ar. É presunção do homem que deixou de ser lobo e se assenhoreou de toda a vida.

A casa, se perdeu a gente, ganhou perfume: a essência fresca e delicada das maçãs. As maçãs de inverno, colhidas no Outono, são lá depositadas. E as paredes negras de fuligem ganham tal luminosidade, que é como se um sol pequeno estivesse dentro da casa, a brilhar só para elas.


Arufe é terra de viventes, mesmo que já não estejam connosco.



Fátima Stocker, Ago./ Nov. 2004

21 comentários:

Augusta disse...

Arufe é calma, sossego e paz.
Arufe é aconchego, apesar dos ventos que sopram lá em cima
Arufe é o cheiro da maçã reineta da horta da capela.
Arufe é o odor do feno arrecadado no palheiro.
Arufe é a memória do comboio na curva da linha, e que tanto medo provocou na Ruça.
Arufe é o caminho da teixeira e do labanho.
Arufe é o pladar das maçãs do múrio.
Arufe é...MÃE e PAI.

Beijos, mana

Augusta disse...

E amanhã lá estaremos em mais um passeio convívio da freguesia. Desta vez vamos "para fora, cá dentro". Vamos até à senhora da Lapa em Sernancelhe e, de regresso, passaremos por Lamego.
Está prometida a reportagem.
Para vocês que ficam, bom descanso e... divirtam-se. A nossa diversão está garantida.

J. Stocker disse...

Fátima

Excelente texto este de Arufe, a realidade de Arufe é mágica, tal como os vales, a aldeia dos Pereiros e tantos outros locais da Freguesia..
Penso que a Junta a e a ASCRR, bem podiam promover uns passeios pedestres pela mesma.
Da nossa parte constatamos que precisamos de efectuar mais recolha de fotos para o nosso arquivo, para este post teriam sido de grande utilidade.

J. Stocker disse...

Augusta

O teu comentário está muito bonito, gostaria muito de o ver publicado a seguir ao post da Fátima, é no meu entender o lugar certo para o mesmo! E a Fátima se nos ler que coloque juntamente com ele a informação que deu à Regina sobre os forais!
Que o vosso passeio tenha sido bom!

J. Stocker disse...

Já que estou com a mão no teclado, aproveito para perguntar se alguém sabe por onde anda o Orlando, Rui e a Fininha, esta ultima levou o Portátil para o Algarve, já regressou e ainda não veio aqui, será que arranjou algum "Mouro"? De certeja que deve ter tirado a ferrugem toda da lingua!

Olímpia disse...

Que belo texto, Fátima.Todo ele, é uma bonita poesia onde percepcionaste o real através dos sentidos.Soubeste recreá-lo com nitidez captando-o através da cor, da luz, do movimento, dos sons, dos cheiros...
Fizeste-me lembrar Cesário Verde.
Também eu, sinto Arufe como tu e como a Augusta.
Arufe, é PAI e é MÃE.
Parabéns às duas.
Bjos
Olímpia

Anónimo disse...

Garota

Arufe é tudo isso, dizes bem.

Beijos e cá espero o artigo sobre o passeio.

Anónimo disse...

João

Obrigada. Confirmo a necessidade que sentes. Embora poucas e em ruínas, é necessário que fotografemos as casas de Arufe. E as fontes e ribeiras. A fonte junto à casa da avó está tão cheia de fetos que mal se vê. Mas a água era tão fresca como a da fonte grande.

Anónimo disse...

Garota Olímpia

Deixaste-me engasgada com o elogio. Até corei!

Beijos

Anónimo disse...

Fátima,
O teu texto é magnífico, parabéns!Obrigada por partilhares connosco toda essa beleza natural que é a nossa terra.
Eu também sou a favor pelos passeios pedestres...
Beijos
Lurdes

Anónimo disse...

Lurdes

Obrigada, eu!

E que bom é voltar a ver-te por aqui!

Beijos

António disse...

Coisa linda a recriação destes lugares quase míticos,onde se escondem silfos e elfos deixados pelos germânicos. E há muitos outros: a Teixeira, o Múrio, a Fonte-do-Sapo... onde por certo ainda "andam faunos pelos bosques"... à espera que alguém os descubra.
Parabéns.

Anónimo disse...

Tonho

Muito obrigada pelas tuas palavras.

Tenho a certeza de que os faunos estão à nossa espera, protegidos no sono pelo musgo que vai crescendo nas pedras. Assim eu fosse Aquilino.

Beijos

Anónimo disse...

Tiene todo el aspecto de ser tierra de dóciles canes "podengos portugueses"........

Anónimo disse...

Como Montalegre......

Anónimo disse...

Filomeno

Não há lá muitos cães, mas é terra verde e de muita paz.

Como paisagem, tem razão, é parecida com Montalegre. Ambas são terras transmontanas, mas não muito próximas (Arufe pertence a Bragança e Montalegre a Vila Real).

Obrigada pelas suas palavras.

Anónimo disse...

Arufe!

Quem diria que a minha terra tinha um blog ...
Acho fantástico, é pena não haver mais fotos. Porque a alguns quilómetros de distância é sempre bom ver as paisagens que nos trazem tantas recordações dos tempos em que não havia tanta preocupação... dos tempos de criança que jamais se esquecerão... da vida sem stress com que nos deparamos diariamente...Embora de vez em quanto vá a Arufe para "encher os pulmões de ar puro" e voltar para esta poluição...Parabéns a todos
Germana Martins

Augusta disse...

Germana.
Que bom! São cada vez mais os nossos conterrâneos que visitam esta casa que é de todos.
Arufe, diz-nos muito a mim e aos meus irmãos.
Que pena eu não me lembrar quem é. Pode avivar-me a memória?
Eu sou a Augusta do tio João Fouce.
De qualquer forma, receba beijos desta conterrânea, e continuamos a contar com as suas visitas
Augusta

Fátima Pereira Stocker disse...

Ó Germana, diga-me lá: quem são os seus pais? Eu sou a mais nova da tia Teresa e do tio João fouce. De de Arufe tenho as mais belas recordações - das pessoas e dos lugares.

Deixou-me cheiinha de curiosidade. Às tantas ainda brincámos aos cantinhos, em garotas...

Quanto às fotografias: no corpo do blog é difícil colocar mais, porque sobrecarrega a página. Em todo o caso, há artigos com muitas fotografias que pode pedir para visualizar. Na aba lateral do blog, cá mais para baixo, encontra , sob o título "fotos enviadas para o blog" uma série de links para outras imagens.

Um abraço

Anónimo disse...

Olá

Também não sei muito bem quem você é, eu sou mesmo de Arufe sou filha da srª. Ana e do Srº. António, (que faleceu o Ano Passado) lembro-me dos seus pais e talvez tb a conheça mas não consigo associar o nome à pessoa.... já saí daí há 15 anos, já muita coisa mudou e mesmo nós tb mudamos bastante.. andei na escola primária de Rebordainhos e tenho muitas saudades desses tempos...
Talvez nos conheçamos ...Vou bastantes vezes ver a minha mãe, ainda conheço muita gente, mas há alguns que já não vejo há muito tempo...
Um abraço
Vou continuar a consultar o Blog...
acho o Bolg o máximo..
Germana Martins

Anónimo disse...

olá o blog está um pouco diferente, também já faz uns tempos que não o visitava....realmente Arufe é um paraíso.... principalmente de ar puro.... só se ouvem os passarinhos a cantar... não há stress... em breve estarei lá de novo para passar mais uma semana de férias...

um abraço
Germana Martins