XIII - FOI POR ALTURA DAS SEGADAS…
por
ANTÓNIO AUGUSTO FERNANDES
por
ANTÓNIO AUGUSTO FERNANDES
Ela não tivera culpa, coitada. A vida, sim, a vida é que tivera a culpa toda, madrasta como sempre lhe fora.
Já de pequenita, a caminho da escola, trilhava o carreirão agreste dos Pereiros até à vila, bisonha, sempre apartada do grupo barulhento dos companheiros. No intervalo das aulas, aperreando o corpito esgalgado nos vestidos de chita pobre, raramente renovados, sumia-se pelos cantos do recreio, sorumbática, como se em todo o lado estivesse a mais, trincando a merenda de malápios ou nozes com o carolo negro de pão centeio. Escanifrada, muito morena, de olhos negros encovados nas olheiras roxas, as pernas magras como canelos afundando-se nos socos de amieiro, nunca os gaiatos travessos e precocemente industriados nos mistérios da vida lhe puxaram as tranças, nunca lhe atiraram nenhum dos piropos ambíguos com que a sua brutidão serrana brindava as mais mimosinhas.
Sem mãe que a apaparicasse e criada com o pai viúvo, eram-lhe desconhecidas as louçanias feminis do trapo mais arranjadinho ou do laçarote garrido no cabelo aos domingos e dias festivos. Mal aprendera a escrever o nome e a desembaraçar-se com as quatro operações, o pai tirou-a da escola, que lhe fazia míngua para o arranjo da casa e levar as duas cabras a pastar pelas bermas dos caminhos. Perdida no corrume monótono dos dias, dos meses, das estações, enclausurada na cozinha negra a cozer as batatas ou a remendar os trapos de cotio, quase só saía para ir à horta buscar um caldo ou para a missa dos domingos, quando a havia. Nem coragem tinha, sequer ao menos, para se atrever a sonhar com o mágico príncipe encantado com quem a todas as moças é permitido sonhar.
Assim, quando o Felisberto começou a rentar-lhe a porta, rondando já os trinta, presa ainda a uma donzelia muito serôdia já para os hábitos procriadores dos Pereiros, foi, naquele pobre peito, um alvoroço de aleluias, galreiras como bando de estorninhos quando o Outono começa a acobrear as ramagens pelos montes.
Tinha fama de fraca rês, o Felisberto. Era torvo de figura, atarracado, cambo das pernas e a pelagem negra e hirsuta quase se emaranhava nas sobrancelhas espessas. Mas era homem, o primeiro homem a olhar para ela como mulher. Alvoroçaram-se-lhe os sentidos e na cardenha do velho Firmino ouviram-se pela primeira vez as endechas dolentes com que é costume as donzelas apaixonadas embalarem os seus queixumes de amor. Suspendia por momentos o arrastar da vassoura de giestas pelo sobrado ou o estreloiçar dos cacos da ceia no alguidar de lavar a loiça e suspirava, devaneando, incrédula ainda destes assomos de felicidade.
Transcorria interminável e tristonha a década de sessenta num Portugal que a guerra de além-mar e a emigração iam dessorando da sua juventude. E até por aquele fim do mundo dos Pereiros, enterrados naquela prega da serra de Nogueira, perpassou o arrepio do eldorado de França. Os moços desapareciam misteriosamente numa qualquer noite e, ao fim de dois ou três anos, apresentavam-se ao volante de velhos chaços asmáticos que, as mais das vezes, já não resistiam à viagem de regresso e deixavam as carcaças a enferrujar pela berma dos caminhos para gáudio da canalha que primeiro os esfandegava de tudo quanto era amovível e depois os usava para esconderijo no jogo do rou-rou. Uma dessas carcaças bem que a aproveitou a Ludovina do Inácio para poleiro das suas pitas que nos estofos do banco traseiro fizeram criação.
Era uma nova fauna que bulia com a quietude das aldeias, arrotando postas de pescada pelas tabernas, muito anchos nas estranhas vestimentas trazidas lá de fora e batendo com estrondo sobre o balcão, roxo de muitos tintos, as notas de cem e até de quinhentos mil-réis com que pagavam as romeias de vinho e cervejas aos patrícios a quem mingara a coragem para deixarem as courelas magras e desafiarem os caminhos do mundo.
Como pedra em poço fundo, caiu-lhe na alma a pergunta da tia Florinda. De atarantada nem atinou que responder. Dar-se-ia o caso de o mandicante ter abalado sem dizer água-vai, sem ao menos lhe deixar um beijo de despedida? Ela bem que lhe estranhara os modos ainda mais esquivos nos últimos tempos… E, na verdade, já não lhe aparecia há mais de duas semanas… Mas atribuíra o caso às esquisitices do feitio sorumbático. Com que então, sempre tinha largado a salto para França com a malta do Chancas! Tentou recompor-se, serenar os nervos eriçados:
– Não, ainda não recebi nada. Mas, mais dia, menos dia, as notícias hão-de chegar.
Não havia dúvidas. Mais dia, menos dia, ele ia dar notícias.
Só que as semanas, lentas, passavam atrás de semanas. Já lá iam dois meses e… nada. Acabaram as cantorias naquela casa e a negra cozinha enevoou-se do antigo ar soturno de endoenças.
– Ó alma do diabo, tu que terás que pareces uma seresma!?... – atirava-lhe o Firmino numa efusão de amor paternal, à noite, à hora caldo.
Ela, muda, esvaída nas sombras do lançadouro, engolia lágrimas e enchia-lhe a malga. Mas só passados três meses, já o cuco cantava alvissareiro pelos soutos, quando o saiote começou de lhe apertar a barriga e o Felisberto teimava em não dar novas, é que a alma se lhe vestiu de luto pesado.
Então é que amaldiçoou o dia em que se lembrara de ir ao nabal prós lados de Teixedo. O mariola aparecera, fingindo um feliz acaso, afagando-a com súbitos gestos de ternura. E ela, a grande tola, tonta de felicidade, enliçada pelas promessas de casamento, deixara-se ir arrastando para a curriça do Tem-te-não-Caias. E ali mesmo, sobre um monte de feno, embeiçadinha de todo, caíra em lhe dar a esmola antes do padre-nosso.
Agora, tudo isso lhe aparecia longínquo, delido na bruma dos dias, agora que sentia aquela vida a palpitar dentro de si. E mais lerdas ainda, mais peganhentas, as horas se escoavam e cada dia puxava por outro dia como um alcatruz puxa outro inundando-o de lágrimas, sem que sequer ao menos lhe chegasse uma palavra de esperança…
Os dias cresceram, os pães alouraram nas belgas e ela já nem saía de casa. Só pela noitinha, cosida com as paredes e diluída nas sombras do entardecer, se atrevia a ir encher o cântaro à fontela da aldeia, sem se atardar em conversas com as demais moçoilas, roída pela vergonha do seu estado e mais ainda pelo desespero do abandono a que se via votada.
O ar abafadiço queimava nos pulmões. No mormaço da tarde, o vento suão soprava em golfadas brutas, soltando gemidos de moribundo nas fisgas do telhado. E, no pasmo deserto das ruelas, soavam os estalidos secos de alguma portada ou cancelo sacudidos pela rajada. No céu torvo, gralhavam gralhas de mau agouro, pontilhando a negro a gaze esgarçada das nuvens altas raiadas de sangue a anunciarem volta no tempo. Depois de uns momentos de acalmia em que o silêncio pesava como chumbo, de novo o súbito sibilar do vento na telha vã. E, logo a seguir, o silêncio coagulava -se outra vez sobre as coisas, mais espesso ainda. O entardecer ia submergindo a aldeia, a escuridão tomava conta da quelhas tortuosas, povoando-as de sombras erradias, prenhes de presságios.
Pobre Paula, imersa na solidão da tarde e no seu abandono!
Onde diabo se metera toda a gente que não se via vivalma?!...
E aquele maldito que não havia maneira de mandar uma linha que fosse!...
O ar abafadiço sufocava-a e as plangências do vento esvoaçando sobre os telhados estraçalhavam-lhe os nervos.
E a estaporada da carta que não havia maneira de chegar!
Nas intercadências do silêncio, de longe, das encostas do Blagoto, chegavam-lhe fiapos desgarrados das cantigas dos segadores, mais arrastadas e dolentes que a ementação das almas nas névoas de Novembro. Eram trovas doridas que falavam das andanças do destino, da fatalidade de se ser pobre, de amores desgraçados, de mágoas mais negras que a morte. E essa melopeia dos segadores, assim desamparada na solidão e nas penumbras da tarde, sufocava-a mais ainda que as rajadas do suão.
Rais partissem a vida de um pobre!
Em vão.
Lá fora a noite cerrara de todo e nas talisgas do telhado o vento gemia a sua ladainha de má sorte.
Já de pequenita, a caminho da escola, trilhava o carreirão agreste dos Pereiros até à vila, bisonha, sempre apartada do grupo barulhento dos companheiros. No intervalo das aulas, aperreando o corpito esgalgado nos vestidos de chita pobre, raramente renovados, sumia-se pelos cantos do recreio, sorumbática, como se em todo o lado estivesse a mais, trincando a merenda de malápios ou nozes com o carolo negro de pão centeio. Escanifrada, muito morena, de olhos negros encovados nas olheiras roxas, as pernas magras como canelos afundando-se nos socos de amieiro, nunca os gaiatos travessos e precocemente industriados nos mistérios da vida lhe puxaram as tranças, nunca lhe atiraram nenhum dos piropos ambíguos com que a sua brutidão serrana brindava as mais mimosinhas.
Sem mãe que a apaparicasse e criada com o pai viúvo, eram-lhe desconhecidas as louçanias feminis do trapo mais arranjadinho ou do laçarote garrido no cabelo aos domingos e dias festivos. Mal aprendera a escrever o nome e a desembaraçar-se com as quatro operações, o pai tirou-a da escola, que lhe fazia míngua para o arranjo da casa e levar as duas cabras a pastar pelas bermas dos caminhos. Perdida no corrume monótono dos dias, dos meses, das estações, enclausurada na cozinha negra a cozer as batatas ou a remendar os trapos de cotio, quase só saía para ir à horta buscar um caldo ou para a missa dos domingos, quando a havia. Nem coragem tinha, sequer ao menos, para se atrever a sonhar com o mágico príncipe encantado com quem a todas as moças é permitido sonhar.
Assim, quando o Felisberto começou a rentar-lhe a porta, rondando já os trinta, presa ainda a uma donzelia muito serôdia já para os hábitos procriadores dos Pereiros, foi, naquele pobre peito, um alvoroço de aleluias, galreiras como bando de estorninhos quando o Outono começa a acobrear as ramagens pelos montes.
Tinha fama de fraca rês, o Felisberto. Era torvo de figura, atarracado, cambo das pernas e a pelagem negra e hirsuta quase se emaranhava nas sobrancelhas espessas. Mas era homem, o primeiro homem a olhar para ela como mulher. Alvoroçaram-se-lhe os sentidos e na cardenha do velho Firmino ouviram-se pela primeira vez as endechas dolentes com que é costume as donzelas apaixonadas embalarem os seus queixumes de amor. Suspendia por momentos o arrastar da vassoura de giestas pelo sobrado ou o estreloiçar dos cacos da ceia no alguidar de lavar a loiça e suspirava, devaneando, incrédula ainda destes assomos de felicidade.
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Transcorria interminável e tristonha a década de sessenta num Portugal que a guerra de além-mar e a emigração iam dessorando da sua juventude. E até por aquele fim do mundo dos Pereiros, enterrados naquela prega da serra de Nogueira, perpassou o arrepio do eldorado de França. Os moços desapareciam misteriosamente numa qualquer noite e, ao fim de dois ou três anos, apresentavam-se ao volante de velhos chaços asmáticos que, as mais das vezes, já não resistiam à viagem de regresso e deixavam as carcaças a enferrujar pela berma dos caminhos para gáudio da canalha que primeiro os esfandegava de tudo quanto era amovível e depois os usava para esconderijo no jogo do rou-rou. Uma dessas carcaças bem que a aproveitou a Ludovina do Inácio para poleiro das suas pitas que nos estofos do banco traseiro fizeram criação.
Era uma nova fauna que bulia com a quietude das aldeias, arrotando postas de pescada pelas tabernas, muito anchos nas estranhas vestimentas trazidas lá de fora e batendo com estrondo sobre o balcão, roxo de muitos tintos, as notas de cem e até de quinhentos mil-réis com que pagavam as romeias de vinho e cervejas aos patrícios a quem mingara a coragem para deixarem as courelas magras e desafiarem os caminhos do mundo.
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– Então, rapariga, o Felisberto já te mandou notícias lá de França?Como pedra em poço fundo, caiu-lhe na alma a pergunta da tia Florinda. De atarantada nem atinou que responder. Dar-se-ia o caso de o mandicante ter abalado sem dizer água-vai, sem ao menos lhe deixar um beijo de despedida? Ela bem que lhe estranhara os modos ainda mais esquivos nos últimos tempos… E, na verdade, já não lhe aparecia há mais de duas semanas… Mas atribuíra o caso às esquisitices do feitio sorumbático. Com que então, sempre tinha largado a salto para França com a malta do Chancas! Tentou recompor-se, serenar os nervos eriçados:
– Não, ainda não recebi nada. Mas, mais dia, menos dia, as notícias hão-de chegar.
Não havia dúvidas. Mais dia, menos dia, ele ia dar notícias.
Só que as semanas, lentas, passavam atrás de semanas. Já lá iam dois meses e… nada. Acabaram as cantorias naquela casa e a negra cozinha enevoou-se do antigo ar soturno de endoenças.
– Ó alma do diabo, tu que terás que pareces uma seresma!?... – atirava-lhe o Firmino numa efusão de amor paternal, à noite, à hora caldo.
Ela, muda, esvaída nas sombras do lançadouro, engolia lágrimas e enchia-lhe a malga. Mas só passados três meses, já o cuco cantava alvissareiro pelos soutos, quando o saiote começou de lhe apertar a barriga e o Felisberto teimava em não dar novas, é que a alma se lhe vestiu de luto pesado.
Então é que amaldiçoou o dia em que se lembrara de ir ao nabal prós lados de Teixedo. O mariola aparecera, fingindo um feliz acaso, afagando-a com súbitos gestos de ternura. E ela, a grande tola, tonta de felicidade, enliçada pelas promessas de casamento, deixara-se ir arrastando para a curriça do Tem-te-não-Caias. E ali mesmo, sobre um monte de feno, embeiçadinha de todo, caíra em lhe dar a esmola antes do padre-nosso.
Agora, tudo isso lhe aparecia longínquo, delido na bruma dos dias, agora que sentia aquela vida a palpitar dentro de si. E mais lerdas ainda, mais peganhentas, as horas se escoavam e cada dia puxava por outro dia como um alcatruz puxa outro inundando-o de lágrimas, sem que sequer ao menos lhe chegasse uma palavra de esperança…
Os dias cresceram, os pães alouraram nas belgas e ela já nem saía de casa. Só pela noitinha, cosida com as paredes e diluída nas sombras do entardecer, se atrevia a ir encher o cântaro à fontela da aldeia, sem se atardar em conversas com as demais moçoilas, roída pela vergonha do seu estado e mais ainda pelo desespero do abandono a que se via votada.
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Era por altura das segadas...O ar abafadiço queimava nos pulmões. No mormaço da tarde, o vento suão soprava em golfadas brutas, soltando gemidos de moribundo nas fisgas do telhado. E, no pasmo deserto das ruelas, soavam os estalidos secos de alguma portada ou cancelo sacudidos pela rajada. No céu torvo, gralhavam gralhas de mau agouro, pontilhando a negro a gaze esgarçada das nuvens altas raiadas de sangue a anunciarem volta no tempo. Depois de uns momentos de acalmia em que o silêncio pesava como chumbo, de novo o súbito sibilar do vento na telha vã. E, logo a seguir, o silêncio coagulava -se outra vez sobre as coisas, mais espesso ainda. O entardecer ia submergindo a aldeia, a escuridão tomava conta da quelhas tortuosas, povoando-as de sombras erradias, prenhes de presságios.
Pobre Paula, imersa na solidão da tarde e no seu abandono!
Onde diabo se metera toda a gente que não se via vivalma?!...
E aquele maldito que não havia maneira de mandar uma linha que fosse!...
O ar abafadiço sufocava-a e as plangências do vento esvoaçando sobre os telhados estraçalhavam-lhe os nervos.
E a estaporada da carta que não havia maneira de chegar!
Nas intercadências do silêncio, de longe, das encostas do Blagoto, chegavam-lhe fiapos desgarrados das cantigas dos segadores, mais arrastadas e dolentes que a ementação das almas nas névoas de Novembro. Eram trovas doridas que falavam das andanças do destino, da fatalidade de se ser pobre, de amores desgraçados, de mágoas mais negras que a morte. E essa melopeia dos segadores, assim desamparada na solidão e nas penumbras da tarde, sufocava-a mais ainda que as rajadas do suão.
Rais partissem a vida de um pobre!
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E só quando não aguentou mais a dor das entranhas desfeitas pelo veneno para o escaravelho da batata é que berrou o aqui d’el-rei que alarmou as duas vizinhas atadas ao escano da lareira pelo reumático. Ainda lhe acudiram, uma com o Cristo crucificado, outra com meia malga de azeite que lhe alimpasse o estômago.Em vão.
Lá fora a noite cerrara de todo e nas talisgas do telhado o vento gemia a sua ladainha de má sorte.