domingo, 8 de novembro de 2009

O DEVIR DAS ESTAÇÕES


A nossa terra está assim: linda nos matizes outonais. A chuva que escasseara durante o ano lembrou-se de aparecer, permitindo o reverdescer do chão já agradado. Lombos e chãeras, solheiros e absedos tingem-se de cor, última garridice antes que o Inverno instale a sua austeridade cromática.

Temia-se o pior, mas, não sendo de fartura, o ano trouxe colheita bastante de castanha. E porque caiu bem, apanhou-se depressa, por isso não deve tardar muito a chegar o rebusco. A tradição do rebusco é, para mim, uma das mais belas da nossa terra, porque reflecte a partilha com quem nada tem dos bens que estão em nossa posse. Mostra, ainda, respeito para com a natureza que se não deve exaurir: os frutos deixados para trás serão uma espécie de sacrifício ofertado a Deus e à Terra que nos sustenta.

Penso que o rebusco tem o seu fundamento na seguinte passagem da Bíblia:

Quando tu segares a seara dos teus campos, não cortarás rés do chão o que tiver crescido sobre a terra; nem enfeixarás as espigas que tiverem ficado.
Não recolherás também na tua vinha os cachos que ficaram da vindima, nem os bagos que caíram; mas deixá-los-ás tomar aos pobres e aos peregrinos.
(Levítico, 19, 9-10)

Não colhas tudo o que Deus pôs à tua disposição, partilha com os pobres e com quem, por ser estrangeiro, precisa de sustento - eis a súmula desta passagem. O rebusco é uma bela materialização da lei de Deus.

Os mais atentos perdoar-me-ão a escolha de versão tão arcaica do texto bíblico, opção que justifico, exclusivamente, pela poesia que lhe está intrínseca e que sinto ausente de algumas traduções mais modernas.
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Fotografias da Olímpia (Nov. 2009)

9 comentários:

António Brás Pereira disse...

Reparo que não perdeste tempo, na tua passagem rápida por Rebordainhos. Ainda bém que as castanhas estão a chegar ao fim, as minhas costas não aguentavam mais; mas é tão agradável juntar-se entre familiares e amigos, em volta de um magusto...Parabéns à Olímpia pela ilustrção. Quanto à parte Bíblica, que lhe chamem como quiserem, mas é a realidade vivida por muitos de nós: apanhar espigas depois da ceifeira passar, galelos esquecidos pelos vendimadores, rebusco de castanhas, única maneira de as comer para quem não possuia castanheiros, ou batatas que a chuva descobria depois da arranca. Parabéns e obrigado. beijos

Olímpia disse...

Fátima,
Embora actualmente já não se adeqúe tão bem, faz sentido a tua fundamentação bíblica.
Bjos
Olímpia

Olímpia disse...

António,
Apesar de só ter andado dois dias às castanhas, (verdade verdadinha, quatro bocados),também eu cheguei a Lisboa com uma tremenda dor de pernas e...não só.
O magusto, não o chegámos a fazer.
Em contrapartida, matei saudades de "rocas" assadas.Que bem que me souberam.
Bjos
Olímpia

Augusta disse...

Pois é. Hoje acabámos a nossa empreitada. E verdade, verdadinha, já não havia vontade para mais. Por outro lado, o facto de revermos velhoa amigos, o convívio que temos, faz com que esta canseira se transforme num dos melhores períodos do ano.
beijos

António disse...

Olá Fátima:
Já vi que sempre que sobes à Serra voltas cheia de inspirações telúricas - e esta repleta de espírito bíblico, com a magnífica citação do Levítico que eu desconhecia (e Saramago com certeza também, já que não tem sabor a manual de iniquidades e acode em defesa dos pobres).
Andava com saudade de ir fazer um magusto a Rebordainhos, mas ainda não foi desta, mas registei e guardei as imagens da Augusta.
Parabéns a ambas por manterem acesa esta chama sagrada do amor à terra...
e um abraço

António

Fátima Pereira Stocker disse...

Tonho [Braz]

Obrigada por aquilo que, aqui, lembraste e que acrescenta muito ao que escrevi. Em todos os casos que referiste há um deixar para trás de propósito e isso é muito bonito, sobretudo da parte daqueles que deixam ficar parte do pouco que têm. Em Rebordaínhos não seriam muitos aqueles a quem sobrava alguma coisa!

Suponho que já terás as costas mais descansadas, prontas a sacudirem-se com o riso de uma velada à roda de um assador de castanhas. Saboreia alguns bilhós por mim, porque aqui não sabem ao mesmo.

Beijos

Fátima Pereira Stocker disse...

Olímpia

Pois é, as máquinas vieram acabar com isso. As máquinas e não só: felizmente, a miséria já não é o que era.

Beijos

Fátima Pereira Stocker disse...

Augusta

Lá isso é verdade. Do pouco que pude partilhar, há um sabor bom que fica: adormecer de corpo cansado mas de cabeça leve.

Beijos

Fátima Pereira Stocker disse...

Tonho

O chão da nossa serra tem o condão de nos fazer nascer raízes na alma...

O Saramago é autor que leio religiosamente (espero que ele me não tome à letra) e não lhe faço a desconsideração de abrir cada um dos seus livros e escolher bochechos para, a partir deles, elaborar uma tese cheia de absolutos sobre a sua obra e a sua pessoa. Pelos vistos, é assim que ele faz com a Bíblia e isso fica-lhe mal. Esse não é o caminho certo para encontrar o Deus que ele tanto procura e sempre que O nega e invectiva está a gritar o fracasso da sua busca e a dar-nos conta do desespero que lhe vai na alma. Para Saramago Deus é mau porque protege alguns e persegue outros - ou abandona-os. Ele sente-se um dos abandonados, porque se lhe não revela! Enfim, isto sou eu a meter a foice em seara alheia.

Um grande beijo, agradecendo a bondade de dizeres que não conhecias aquilo, seguramente, sabes bem melhor do que eu.