quinta-feira, 17 de dezembro de 2009

ARES DA SERRA

Este artigo é uma republicação. Mas a história é tão linda e está tão bem contada que bem merece uma segunda (terceira, quarta...) leitura. Tenho a certeza de que todos concordarão comigo. Ao Tonho da tia Lídia, a nossa vénia!


VII - O PRESÉPIO DO DOUTOR CALEJA
(…aqui havia uma fraga…)

por
António Augusto Fernandes

O vinte e quatro de Dezembro amanhecera límpido, sem amostra de nuvem que maculasse o espelho azul do céu. A geada rebrilhava intensamente nos telhados e na erva dos lameiros. As vozes das raparigas a caminho da fonte retiniam no ar translúcido com vibrações de cristal e o trroc- trroc dos socos ferrados de brocha larga sobre a lama congelada tinha ressonâncias de passos ecoando em catedral vazia. A névoa recalcada atulhava, lá em baixo, o vale da Ribeira dos Pereiros, como um mar de algodão onde apetecia rebolar-se a gente, alastrando desde a ladeira das Ribas até aos contrafortes da serra de Bornes. Mas, pela tarde, o mar de algodão foi-se evolando numa gaze fina de névoa a marinhar pela encosta da Fraga do Berrão. Num repente a luminosidade do dia amorteceu e o céu ficou zúbio, num anoitecer precoce que polvilhava tudo de tristeza.

– A névoa subiu à serra, Doutor. Senhas de neve! Temos aí neve da grossa, e não tarda! – dizia o Jaime, especado no traço da porta da Taberna de Baixo.
– Pori... – respondia o Zé Bernardo, estacando o passo … E, apontando o nariz batatudo para o céu cor de chumbo, rematava: − É bem capaz.
Isso queriam eles! porque, nevão caído, perdidos e achados era pelos montes, atrás dos coelhos engaranhados pelo frio ao toro das urzeiras ou tolhidos na corrida pela neve ainda fresca. E perdiam-se num silêncio de divagações cinegéticas…

Fosse por esse comum amor pela caça, fosse pela identidade de feitios, ambos de poucas palavras, ambos um tanto de candeias às avessas com a vida, ou até pelo vago parentesco, entre eles nascera uma cumplicidade quase fraterna. De tal maneira que o Jaime o convidava amiúde para cear lá em casa, sobretudo em vésperas de caçada, quando se tratava de escolher pólvora e chumbo e de meter nos cartuchos as buchas de papelão. Era também o Doutor quem o acompanhava quando ia de longada até à Terra Quente, em demanda do bom vinho, que a serra não o dava e o das redondezas, valha-o Deus! gelava nas pipas com o sincelo. E quando os tremenhos da vida o chamavam a algum lado, não hesitava em confiar o governo do soto ao Zé Bernardo: mercearia, ferragens, chitas, vinho incluído, que o Zé Bernardo… é como quem guarda almas – rematava o Jaime a sublinhar a confiança que depositava no seu lugar-tenente. E era! Se, por um acaso muito provável, a alma lhe pedia meio quartilhito, emborcava-o, sim senhor, mas depositava na gaveta dos trocos a paga. À noite, quando o dono tornava das suas voltas, o Zé Bernardo, que não sabia ler, apresentava um papel pardo de cartucho repleto de hieróglifos que só ele entendia, e desfiava o rol de todas as transacções havidas ao longo do dia.

Retomavam a conversa:
– Pelos vistos, já levas aí a consoada… − observava o Jaime.
– É verdade – tornava o outro, voltando a cabeça e fitando com desvelo a enorme troncha que trouxera da sua belguita do tamanho de uma sala, talhada no baldio, à Ribeira do Catrapeiro. A couve acogulava a cesta dependurada do cabo da sachola que trazia ao ombro e enchia-o daquele orgulho que só sabe sentir quem é proprietário pobre de dois palmos de terra que se trazem mais limpos e escarolados que o chão de casa.

– Ouve lá, ó Doutor, porque é que não trazes a couve e vens comê-la connosco na Portela? – convidava o Jaime, adivinhando-lhe o desconsolo de uma consoada repassada de solidão e cismas em frente das brasas, na furna negra da sua choupana.
– Nã… nestes dias, cada mocho a seu souto. – E rumava já em direcção ao barraco de pedra solta que negrejava, encostado a uma fraga descomunal.

Com certeza se lembram ainda daquela fraga do Prado que o povo se habituara a ver como um ex-libris da aldeia, postada no topo nascente do Prado e que o progresso estilhaçou como estilhaça sempre muitas outras coisas na sua caminhada!... Bem no centro da aldeia, ali resistira desde sempre como símbolo da fibra serrana, de antes quebrar que torcer. A fraga com o olmo e o freixo que morreram de velhos marcavam a singularidade do velho Largo do Prado. Modernizado o Largo do Prado, ficou apenas mais um largo, parelho doutro largo qualquer.
***
Era ali que morava o Zé Bernardo, naquela lojita de terra batida e telha vã, delimitada por três paredes adossadas à Fraga do Prado. Sem janelas, o dia só ali entrava pela porta ou alguma talisca deixada por telha arrancada pelo temporal e as paredes negrejavam mais que o caldeiro de cozer a vianda dos porcos.

Morava sozinho. A mitigar-lhe a solidão, em tempos, fizera-lhe companhia uma cabra, a famosa cabra do Doutor, que ele atrelava a si com uma guita quando ia por lá a ganhar a jeira. Enquanto ele derrancava o esqueleto agarrado ao cabo do enxadão, a cabra fazia pela vida tasquinhando a erva bravia que crescia na berma dos caminhos ou nas poulas dos baldios, presa pela guita ao toro de uma giesta. O animal, que era manso como o pão e tinha alma de gente, dormia a um canto sobre uma fachoca de palha e dava-lhe o leite do mata-bicho. E tão asseado era que até parece que nem apestava o raio do bicho que tinha artes de se aliviar enquanto andava por lá! Já velha e durázia, não teve coragem de a matar: vendeu-a a um peliqueiro de Carção pelo preço da pele.

E ali se mantinha num passadio frugal que envergonharia S. Pacómio, anacoreta no deserto. Da mãe, a tia Camila Carroucha herdara a sombra das paredes, o nariz batatudo e uma tez morena mais que a conta que lhe valera a alcunha de Carroucha. Agreste alcunha era essa: mas soava mais agreste ainda na bárbara pronúncia do tch galaico-português que na serra se mantivera desde os tempos em que daqueles cerros se rechaçara a mourama: Carroutcha. E de tal modo se lhe colou a alcunha que poucos na aldeia sabiam que o Zé Carroucho trazia da pia baptismal o nome cristão de José Bernardo. Até que um dia o Jaime da Taberna de Baixo o rebaptizou de Doutor Caleja, vá-se lá saber porquê. Talvez para lhe despir a bárbara alcunha de Carroucho, talvez por ter nascido na mais esconsa caleja da terra, lá para os lados do Covelo. O novo chamadouro pegou, sancionado pela fama de um médico de Macedo de Cavaleiros que dava pelo nome de Dr. Calejo. E assim passou a ser o Doutor Caleja para vizinhos e amigos. Com o andar dos tempos, por mor da brevidade, ficou apenas o Doutor.

Como quem nada tem nada perde, no tempo em que o Brasil ainda fazia dinheiro, o Doutor também arriscou uma saltada até à banda de lá. Mas, como cão sem coleira que não aceita dono, não se acadimou a medir tempo e litros de feijão preto atrás de um balcão na Tijuca. Mordiam-no saudades dos caminhos desimpedidos da serra, dos roquelhos que medravam nas touças pelo Outono, da lazarina com que ia avezando o seu coelhito pelos montes e, mal se pilhou com o dinheiro da passagem, veio retomar o senhorio da sua choça, mais sereno, mais ascético, mais despojado de ambições. Quando, à tardinha, se sentava num calhau em frente do tugúrio, esmoendo com os vagares de quem é dono de todo o tempo do mundo um cibo de bacalhau cru sobre o carolo de pão centeio e meia cebola, tinha o ar vagamente enfadado de Diógenes ou, sabe-se lá, de suserano dos vastos reinos que se estendiam do Prado até ao monte da Cabeça, onde ele conhecia todas as luras de raposa e todos os tourais onde os coelhos vinham bater o fandango em noites de luar.

Caladão, muito cordato, apenas abria a boca para contar alguma larota de caçador em que nem ele mesmo acreditaria lá muito. E só aos domingos, de quando em quando, saía deste comedimento para apanhar a sua cardina catártica. E então, muito tartamudo, com a beiçola gorda e roxa de vinho descaída para o queixo, soltava palavrão de fazer corar um preto. Até que a mocidade, que por ali se juntava no jogo do fito e do calhau, condescendia em lhe despejar uma romeia de água fresca pelo toutiço abaixo para aclarar as ideias. Mas na segunda-feira, logo à-pormanhã, com grandes papos sob os olhos e a beiça gorda ainda arroxeada da carraspana mal curtida, retomava o passadio austero dos dias ronceiros: agarrava do enxadão e ia e dar mais uma jorna a quem lha requisitara. A Lídia do Jaime, que o estimava como a parente chegado, repreendia-o com brandura: − Ó Zé, tu porque é que te emborrachas assim e és tão malcriado? O Zé Carroucho, cândido como criança travessa repesa da traquinice, assumia em voz sumida e sem levantar os olhos: − Lá calha…
***
Pois a névoa da manhã dera em marinhar pela encosta da Serra dos Pereiros e a noite cerrara muito temporã sob um céu de chumbo. Aquelas galinhas de aldeia, que incansavelmente esgaravatam o ciscalho das ruas e eram de uma inegável sensibilidade meteorológica, tinham recolhido ao poleiro ainda mais cedo que de costume, enganadas pela treva cediça. A pardalada grulha e zaragateira, adivinhando a neve, acolhera-se também aos medeiros onde a palha, além do agasalho, oferecia ainda algum grão perdido nas malhas. E a gente chegara-se também ao afago da fogueira onde cozia o pote da consoada. Como aos picos da serra a electricidade não arribara ainda, nem luzinhas multicolores salpicavam a treva, nem o silêncio era quebrado pelas melopeias natalícias que adocicam a azáfama mercantilista das grandes urbes. Um silêncio denso e mole gasalhava o casario agachado na treva, repleto de quietude e mistério − era a epifania dos grandes nevões.

Vendido o último quartilho de azeite para temperar o bacalhau da consoada e o último litro de tinto para o empurrar, como não esperasse mais clientes, o Jaime entendeu por bem fechar o soto. Chamou o filho mais novo que por ali cirandava:
– Ó Zé, leva essa peixota de bacalhau ali ao Doutor, e… toca para casa, que está a arrefecer.

O miúdo atravessou o Prado fazendo rodopiar a peixota do bacalhau dependurado pelo rabicho. Com a familiaridade de visita assídua, empurrou a porta perra da cabana do Doutor e despachou o recado:

– Ó ti Zé, tome lá que manda o meu pai. – E atirou a encomenda para cima da mesita de pinho onde o Doutor refeiçoava.

Desincumbido do recado, desandava já, quando atentou no coto de vela que ardia ao fundo do cortelho. Aproximou-se a fariscar: ora, sim senhor! O Doutor Caleja também tinha armado o seu presépio!

E de facto, sob a bênção suave do coto de vela surripiado na sacristia depois de despir a opa de tirar a esmola, o veludo de quatro farrapos de musgo macio almofadava o tampo gorduroso da arca onde guardava o pão e o toucinho de adubar o caldo. Sobre a macieza do musgo, à direita, uma estampa de Nossa Senhora da Serra que o Doutor trouxera da última festa que a nove de Setembro se celebra logo ali, no píncaro da serra da Nogueira. Que mais dá que seja Nossa Senhora da Serra ou outra? É Nossa Senhora e bonda! À esquerda, como não constava que nos arredores se armasse romaria em honra de S. José, figurava outra pagela que informava: imagem do milagroso Santo Ambrósio que se venera na sua capela de Vale-da-Porca – outra das devoções aceites pelo Zé Bernardo. O bordão e as longas barbas tanto assentavam no Santo Ambrósio como no S. José … o carapuço de bispo é que não vinha a calhar, mas paciência! Quem faz o que pode… Ao centro, sobre um manhuço de palhas centeias, sob o olhar atento da Senhora da Serra e do Santo Ambrósio de Vale-da-Porca, repousava o pequeno crucifixo que o Doutor, muito pragmático, desenganchara do seu rosário.

O pequeno, muito pasmado, ainda se dispunha a transigir com as outras inovações introduzidas na iconografia natalícia ao arrepio da tradição… mas esta do Menino Jesus deixava-o perplexo:
– Ó tio Zé… e... então o Menino Jesus? Isto assim não vale!
– Não tenho. – E quedou-se um momento de olhos postos nas largas labaredas da giesta que lambiam o bojo negro do pote da consoada. Depois, com ar de quem filosofa sobre a vida, com muita vida já vivida e muitas maleitas curtidas, sacando as palavras a custo, como quem as puxa nos alcatruzes do entendimento, acrescentou:
– Olha, Zé… tanto monta que o Menino esteja a nascer nas palhinhas ou já a morrer na cruz. Mal nascemos, já estamos de catrâmbias para a cova… E mal se morre já se está a nascer outra vez…

Calou-se, cansado de tão profunda tirada metafísica. Depois, de olhar parado nas brasas que remexia com um guiço, rematou:
– E diz lá ao teu pai que muito obrigado pelo bacalhau.

4 comentários:

Fátima Pereira Stocker disse...

E diz lá ao Tonho que muito obrigada por nos aquecer o coração.

Tonho

De tão bela, esta tua história é um milagre de Natal que nos lembra que o lugar de Deus é o coração dos simples. Deus te abençoe por ela.

Um grande beijo

Augusta disse...

Não me canso de saborear este Natal do dr Caleja. Aquece-nos realmente o coração. E para amenizar as temperaturas negativas que temos aguentado nestes dias, que bem sabia mais um calorzinho vindo do Tonho!
Um beijo para tia, garota pela lembrança da publicação. Um beijo grande ao Tonho, pela partilha.

Anónimo disse...

Um Santo Natal a todos os que comungam o gosto deste blog.
Agradeço a todos os que escrevem sobre a aldeia, e a partilha que fazem desse conhecimento.
Um bem haja.
Eduarda

Anónimo disse...

Então, o Primacho nº2 não comenta o texto do Primacho nº1?.