domingo, 21 de fevereiro de 2010

A VELHA ALDEIA


Por
abcd

Quase sempre vivemos sem entendermos o que procuramos, ou qual o verdadeiro sentido da vida…São raros os momentos em que sabemos – e sabê-lo dentro de nós – o que viemos cá fazer e qual o derradeiro objectivo das nossas vidas. Muito raros, tão raros como as turfas escondidas nos Carvalhais Transmontanos. Mas nesses momentos em que sabemos, em que sentimos dentro de nós o caminho, o único caminho que nos fará feliz, então, tudo se resolve e a vida abre-se como uma flor de Lótus, erguendo-se à semelhança desta, do lodo escuro e profundo onde estávamos metidos. E o que tem mais piada, ou o que é mais misterioso, é que esses momentos vêm agarrados a outros momentos, sendo estes quase sempre sinónimos de tristezas ou de dores próprias ao ser humano. Tais como a morte, as doenças, ou o amor…


E foi num desses momentos, em que a morte veio novamente a Rebordainhos, que senti um frio estranho, era como se algo se desmoronasse à minha frente sem eu poder fazer nada, como se alguém ou algo estivesse a tirar pedra sobre pedra da minha infância, da minha aldeia, da minha vida. Sim, porque as pessoas da aldeia são a aldeia, porque eles que estão lá, que vivem lá, é que mantêm viva a vontade de voltar e de sonhar, porque eles, que são cada vez mais “velhos”, é que são as memórias, os documentos, as imagens, os sons, a alegria da aldeia. E quando Deus decide tirar mais uma pedra à velha aldeia, sinto-me triste, porque são também as pedras do menino que produzem os sonhos ao homem que, agora, sou. São as pedras que esculpiram o meu objectivo de vida, são as pedras onde escrevi a minha personalidade e onde residem as minhas flores de lótus… Mas, e como existe sempre um mas, são estes momentos, como a morte, que nos fazem olhar para o lodo e conseguir enxergar a flor, são eles que nos separam daqueles que desistiram de sonhar porque tiveram medo e preguiça de escavar o lodo. Enfim, apesar de ser sempre difícil e triste ver as pedras da velha aldeia serem tiradas, uma a uma, da nossa infância, e de observar que com o tempo a aldeia vai ficando mais pequena, creio ser importante referir que novas pedras estão a ser esculpidas e que, apesar de não estarem fisicamente na velha aldeia, construirão outras “aldeias” noutro ponto deste mundo desconhecido. E quem olhar para elas, para o seu espírito, verá com toda a certeza aqueles momentos em que sabemos, aquelas velhas pedras, aquela velha aldeia a que chamam Rebordainhos.

6 comentários:

Fátima Pereira Stocker disse...

abcd

Bem sei que generalizou a homenagem a todos os mais velhos de Rebordaínhos, mas a coincidência das datas e a escolha que fez das fotografias com que quis ilustrar o artigo não deixam margem para dúvidas: o principal homenageado é o tio António Piloto. Devo dizer-lhe, aliás, que esperava que alguém o fizesse sem que eu o pedisse. Fê-lo o meu amigo. Bem-haja por isso!

O seu texto é de extraordinária beleza. Parabéns!

Olímpia disse...

LINDO.
Li várias vezes este texto que testemunha uma grande dor.
Simultaneamente, ele transmite-nos tristeza, nostalgia e sobretudo uma grande ternura.
Mesmo sem as fotografias, identifiquei-o logo com o tio António e com todos aqueles que já partiram e que, com essa viagem nos fazem pensar não só a nossa existência, como também aquele mistério chamado infância.
Bem-hajas, abcd
Beijos
Olímpia

Augusta disse...

Belíssimo.
Muito agradecida por mais uma vez nos encantar com os seus pensamentos.
Pedra sobre pedra, se constrói... e pedra, atrás de pedra se vão destruindo estas nossas aldeias. Pedra sobre pedra, vamos construindo outras, mas será também com pedra sobre pedra, que vamos conseguindo manter esta velha aldeia.
E esse seu QUERER está bem explícito nos pensamentos que nos dá a conhecer. Bem - haja por isso.
Um beijo

antonio disse...

Que qualificativo posso eu utilizar, após a leitura do seu texto, caro abcd??? Essas pedras tão importantes para o desenvolvimento, funcionalidade, integração e convivialidade,carenciadas pelo mundo fora...comparo-as àquelas que constituíam o amparo do nosso querido cuzeiro...infelizmente, aquelas de que fala, jamais poderão ser substituidas. É o ciclo da vida...arrepiam os cabêlos percorrer a Aldeia com o coração martirizado pelas recordações, nostálgicas ou de felicidade, e não poder reconstruir, não o passado, pelo menos a manutenção do que foi o orgulho dos nossos entes queridos,
Obrigado por ter voltado com um texto sentido, homenageando com grande eficácia todos os que partiram, e se tal foi a sua intenção, em especial, o Tio António, digno e meritório.Mando-lhe um grande abraço, se mo permite...António Brás Pereira

Anónimo disse...

Como diz o António, arrepiam os cabelos percorrer a aldeia...
O peito enche-se de lágrimas pesadas que parecem inundar os nossos pensamentos. Creio ser um dever social de todos dar a conhecer o motivo desses arrepios e dessas lágrimas. E citando a Augusta, pedra se pedra vamos conseguindo manter a aldeia, para que outros a recordem. E para a recordar temos inevitavelmente de homenagear aqueles que a edificaram, seja com edifícios ou apenas com histórias. Arthur Schopenhauer dizia: "Assim, que desgraça seria para o saber humano se não houvesse escrita e imprensa! As bibliotecas são a única memória permanente e segura da espécie humana, cujos membros particulares só possuem uma memória muito limitada e imperfeita." Obrigado a todos por manterem essa desgraça afastada de Rebordainhos.
abcd

Céu disse...

abcd

Tanto este texto como o anterior são extrordinários.
A homenagem que aqui faz a quem já partiu é de uma sensibilidade imensa e o curioso é verificar como de certa maneira todos temos a mesma maneira de sentir.
Obrigada por nos proporcionar belos momentos de leitura. Aguardo mais pensamentos seus.
Beijos
Céu