Se ainda não chegou, o prazo da Serra das Velhas estará para chegar, na esperança de que se cumpra a tradição.

A cerimónia da
Serra das Velhas que, entre nós, surge associada à do
Casamento das Novas, é mais uma prova daquilo que foi dito sobre o significado profundo do Entrudo: encerra-se o ano velho (manifesto na queima do entrudo e no serrar das velhas) e celebra-se a entrada do novo ano que se deseja fértil (casamento das novas). As datas, tão distantes do calendário civil, marcam o compasso da Natureza que, tendo morrido durante o Inverno, ressuscita na Primavera, oferecendo-nos uma terra reverdescida que anuncia abundância. As raízes destas cerimónias devem ser tão antigas como as primeiras sociedades agrárias que, aqui no nosso cantinho português, datarão do quinto/ quarto milénio antes de Cristo. Do cimo da Serra, a nossa anta vela, desde então, para que o ritual se cumpra.
Dado que no ano passado escrevi sobre o
Casamento das Novas, este ano escreverei sobre a Serra das Velhas. Velha, lembremo-nos, é toda a mulher que tem netos.
Os rapazes juntam-se e, munidos de embudes, de caldeiras ou caldeiros (fingindo que são de madeira ou de cortiça) e de uma grande serra, percorrem o povo todo (esta cerimónia é acompanhada pelos raparigos). À porta de cada mulher a serrar, gritam:
– Vamos serrar a Senhora...?
– Vamos!
– Para o que é que há-de servir o corpo dela?
– P'ra umas varas para o carro (ou cabos de navalha; engarelas; estadulhos; portas; caixilhos da janela...)
Enquanto serram a mulher, fingindo serrar o caldeiro (ou a caldeira), os rapazes proclamam em altas vozes para os garotos presentes:
– Chorai, filhos da cadela,
...Que vos morreu a avó da Portela!
Na noite desse mesmo dia, dois rapazes tratarão de casar as novas. Agora, alguém que esclareça como se faz a escolha do noivo: são os rapazes todos ou são só aqueles dois que combinam entre si? E quando é que se tomam as decisões? No próprio dia, dias antes, ou na própria da hora? Fico à espera da resposta.
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Creio que calha bem falarmos, aqui, das atraganices do Entrudo que, lembro, prometi acrescentar.
Durante os três dias do Entrudo, casa em que se descuidassem com a porta aberta era casa marcada: cântaros de barro repletos de cinza e imundícies eram lançados lá para dentro, escaqueirando-se e espalhando a porcaria. Tempos antes, a rapaziada – é de festa de rapazes que se fala em se tratando do Entrudo – ia tomando nota do sítio onde houvesse um cântaro para roubar. Quantas vezes não era um filho da própria casa a fazê-lo!
Quanto mais proenta e bem apessoada fosse a rapariga, maior o assédio para lhe estrampalhar a figura. Nas palavras do Sr. Américo,
as raparigas eram sacrificadas porque os rapazes perseguiam-nas com ovos, farinha, cinza, fuligem, graxa e ainda uma composição de cortiça queimada com azeite. Os rapazes não descansavam enquanto a não pusessem numa lástima. Diz-nos o Tonho do tio Arnaldo que, certo dia,
ele, o Ferreira, o Zé Maria, o Jorge Pilatos, o Artur Carteiras e o Pintassilgo fizeram um cerco à casa do tio Alípio para lhe apanhar a filha Fátima que andava sempre bem vestida e penteada. Avisada, ela ainda se escondera, mas de nada lhe valeu e a brincadeira deixou-a num estado deplorável. Tenho a certeza de que a zanga por se ver enfuliçada e descomposta foi superada pelo riso que tal caricatura suscita!
Que tudo isto não passa de brincadeira – mas brincadeira de rapazes – está nesta história que vou contar. Certo Entrudo, os meus sobrinhos pequenos chegaram ao pé de minha mãe e pediram-lhe:
– Ó avó, dê-nos farinha!
– Para que a quereis?
– Para atirar às raparigas!
– Ai sim?! Então, tomai lá também os ovos!
Vendo o sucesso dos primos, as sobrinhas decidiram fazer o mesmo pedido, mas ouviram em resposta:
– Não, porque isso é só para os rapazes!
Pelos vistos, o folguedo até deu origem a nomeadas: “Farinhoto” foi nome que recebeu o Alexandre do tio Alípio, por ser tão amigo de enfarinhar e o padrinho foi o Alfredo da tia Celeste!
Os disfarces eram, quase, uma obrigação. Os risos que provocavam e as anedotas a que davam origem seriam pateados durante muito tempo, animando a quietação do Inverno. Ningém levava a mal! Conta o Tonho:
Uma vez disfarcei-me de velhinha e, juntamente com dois ajudantes novos para me ampararem, fomos a casa da minha madrinha a tia Maria. Varri-lhe a cozinha toda com um vassouro de giesta, sem que ela me reconhecesse. No fim, puxou da carteira par me dar uma coroa dizendo: “Obrigada, minha senhora... ainda não estava muito suja, mas já fica varrida para amanhã...”

A terça de Entrudo era o dia mais animado e, à tarde, o povo reunia-se para assistir a uma pantomina. Diz o senhor Américo que
qualquer acontecimento com graça servia de motivo para ser representado nosdias de carnaval. Em geral toda agente admitia a brincadeira mas houve um caso que tomou proporções dramáticas. Recordo o meu primo Toninho(emigrou para o Brasil), filho do tio Benjamim, que dançava em casa com uma dobadoura. Isto veio para a cena e com sucesso correu o povo, até que o Toninho apareceu e daí o espectáculo virou em grande pancadaria. O Tonho lembra-se de um cortejo (certamente de meados dos anos 70 porque alude à contratação do futebolista Cubillas pelo FCP), mas diz que o habitual era fazerem-se peças de teatro, destacando uma, representada à porta da Casa do Povo,
cujo tema era a ida à tropa, entre um capitão e um soldado da família Vascos. Dessa peça, diz-nos a Céu, ficou célebre uma frase:
"Bem-haja o tiu soldarado, que boubou por onde é q'ou boubo". Confesso que, se não fosse a explicação da Céu, não teria percebido patavina desta frase que deve ter tido muita graça para ter ficado na memória de quem a ouviu. Para quem ficou tão atrapalhado como eu, aqui fica a descodificação:
O soldado pediu um copo de água a uma senhora e quis beber pelo mesmo copo por onde ela bebia. A senhora ficou contente pelo facto de ele não ser "esquisito" e, batendo palmas, quis dizer: Bem haja o tio soldado que bebeu por onde eu bebo".
Diz, também, o Sr. Américo (o que é uma novidade para mim, mas ele é que deve saber bem) que havia caretos no Entrudo! Quanto aos caretos nos dias de carnaval havia sim e às vezes mais que um. Os protagonistas mais conhecidos eram o tio Aniceto, o tio Virgílio (o Pássaro) e ainda o Zé Carroucho. A tia Purificação (emigrada para o Brasil) dominava as brincadeiras com um grande rol de marafonas. A tia Carroucha, uma das animadoras, aparecia com a sua concorrência. Lembro-me da quadra de sua autoria:
.........................Não cortes a flor ao feto
.........................Nem a raiz à serralha
.........................Que é o sustento das moças
.........................Enquanto não se sega a palha.
Além da Casa do Povo, as peças podiam ser representadas no Prado ou na Casa da Aula. Do elenco fazia parte toda a mocidade. Os desfiles contavam com dançarinos vestidos a preceito: calças pretas e camisa branca. Um lenço enfiado numa caixa de fósforos fazia de gravata. As meninas iam sempre lindas (maquilhadas, quase sempre, pela tia Etelvina), de saia rodada e garrida, lenços de diversas cores na cabeça e blusa raiada ou às bolas, coisas que despertassem a atenção dos muitos presentes, radiantes com as anedotas e cantares. Os cortejos integravam cantigas e o Tonho mandou duas que foram cantadas algumas vezes. A primeira conhecia-a como jogo de roda, mas a segunda, que servia de despedida, desconhecia-a em absoluto. A métrica, a rima e o vocabulário fazem-me suspeitar da origem delas, por não parecerem nascidas do povo (e é tão estranha aquela má gramática do quarto verso da primeira cantiga…). São estas, as cantigas:
...............Viva Rebordainhos, terra de beleza
...............Aldeia do Norte com tanta riqueza
...............Marcha de alegria nos traz o desejo
...............De nós festejar este lindo cortejo
...............Até nos nossos cantares,
...............Ao longe tudo espanta
...............Parece querer imitar
...............Com seu murmurar
...............As canções que a gente canta
...............Com o meu par bem enfeitado
...............Andamos de braço dado
...............Pelas ruas a marchar..
...............Ai! sendo assim desta maneira
...............Levarei a vida inteira
...............A rir e a cantar!!!
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...............Rebordainhos terra branquinha
...............Ao pé da serra a brilhar
...............És uma bela donzela és uma alma a rezar
...............Ao pé da fonte brilhante
...............Com seu manto de ternura
...............Olhas os pais confiante
...............E para os pobres com ternura
...............Trazemos todos a saudação
...............A este povo que é nosso irmão
...............Aqui viemos com fé em Deus
...............Senhores e Senhoras dizemos-lhe adeus!
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Nota explicativa: embora me tenha sido enviada para exemplificar os teatros de entrudo, a fotografia que ilustra a última parte deste artigo mostra um teatro que se realizou para celebrar o dia da casa do povo (em data que não pude precisar). As actividades desse dia realizaram-se a pedido do tio Jaime (e do sr. Herculano?). Além do teatro que a fotografia captou num instantâneo que o documenta, fizeram-se, também, danças folclóricas cuja fotografia já tinha sido publicada por nós.