domingo, 2 de maio de 2010

ARES DA SERRA


O CANTINHO DO SEVERA: parte 1


por

ANTÓNIO AUGUSTO FERNANDES




Vocês lembram-se do Cantinho do Severa?

Não, já ninguém se lembra, porque os que o habitaram na infância fizeram-se à vida pelas variadas veredas do vasto mundo. E o cantinho desapareceu há muito para dar lugar à casa onde moram o tio Zé Luís e a Tia Assunção. Era ali o Cantinho do Severa. Mesmo no ângulo formado pelo palheiro antigo e a escada, havia um pedaço de rocha sobre o qual assentava a parede e onde nos sentávamos à vez. Encostado ao muro da cortinha do tio Zé Foguete, elevava-se a escada de blocos de granito esconso até ao patamar donde se subia para a horta e se entrava para o palheiro do tio Amadeu. Aí fora em tempos a casa do Severa que deixou o seu nome ligado ao cantinho. E era o Cantinho do Severa, protagonista de uma longa e trágica história.

Aquele cantinho era domínio privativo da criançada do bairro da Portela. Era pequeno, a findar em inho, mas era nosso, o pequeno paraíso perdido das nossas brincadeiras de crianças.

Nas manhãs agrestes de geada forte, ou quando os nevões começavam a derreter, o sol, que andava baixo e mal despegava da linha do horizonte que corre de Miranda para o Mogadouro, esse sol, amigo dos pobres, batia naquele recanto abençoado de manhã à noitinha. E a ganapada disputava-o aos pardais, que também são bichos friorentos e iam para ali em cata dos grãos de centeio tombados dos cuanhos que o tio Amadeu guardava no palheiro.

O muro que sustinha as terras do tio Zé Foguete, mais todo aquele espinhaço de monte que dali grimpava até ao Castelo, como então se chamava (e creio que ainda se chama) ao talefe da Fraga Grande da Ladeira, abrigavam o Cantinho do vento da Sanábria, o vento papa-feijões, que corta como navalhas, greta os lábios e deixa os renovos triscados como tabaco. Nessas manhãs de cieiro, não havia em Rebordainhos canto abençoado como aquele para sentir na pele a carícia do sol friorento de Inverno que pouco aquenta, mas acalenta como mão de mãe.

Como ficava sobranceiro à via ápia que vinha de Rossas e seguia para trás da serra, prestava-se também para paiol magnífico das nossas munições e excelente barbacã nas denodadas guerras travadas à lapada entre o Bairro de Cima e o Bairro de Baixo. E era também um miradouro de primeira ordem, donde se avistava até ao fundo do Prado, que é como quem diz, o Rossio da aldeia. Pela manhã era dali que lobrigávamos os professores, a Senhora D. Maria emparelhando com o mano, o Sr. Francisquinho Ribom. Mal despontavam, em seu caminhar compassado e fidalgo, no ângulo do Prado, junto à casa do tio António Piloto, corríamos a casa, a talhar um carolo de centeio de viático para a meia manhã, apanhar a sacola com a lousa e o livro de leitura e ala que se faz tarde até ao patim da Casa da Aula onde os dos Pereiros já tinham acendido a braseira para desengaranhar os dedos antes do ditado.

Era igualmente a nossa sala de estudo. Para ali vínhamos, à tardinha, soletrar o bê-à-bá fugiu a burra e lutar energicamente com as contas de dividir e multiplicar sobre a lousa negra de ardósia.

No Verão, esse muro da cortinha do tio Zé Foguete desentranhava-se em azedas, arroz e copilos, a matéria-prima para brincar às casinhas: sobre os degraus e patamar que levavam ao palheiro do tio Amadeu, feitos cozinha e sala de jantar. Aí nos banqueteávamos com faustosos jantarinhos de arroz, azedas e bolinhos de terra amassada servidos nos copilos. E, para sobremesa, as silvas do talude desentranhavam-se em amoras gordas e sumarentas como cerejas. E quando era sazão, assaltávamos as ginjeiras do tio Foguete que generosamente se debruçavam sobre a vereda.

Por tudo isso nós estimávamos o Cantinho do Severa como o nosso paraíso privativo e nossa segunda casa.

Mas o Cantinho do Severa guardava um segredo terrível que deixara um sulco fundo na memória colectiva da aldeia, lembrado pela porta da loja voltada para a serra de Bornes, toda cravejava de chumbos. Era uma escumilha miúda como se a porta tivesse sido atacada das bexigas loucas. No momento morno do entardecer, já cansados das correrias, dos jogos da roça e da bilharda no pátio da Escola, íamos com a ponta da navalha desenterrar esses chumbos que guardávamos nos bolsos como testemunhos remotos e misteriosos que nos falavam de uma história velha e sombria de crime e castigo.

Nenhum de nós sabia a origem de tais chumbos, mas para a nossa imaginação eles eram o sinal remanescente desse caso de terror e morte a que andava associado o nome do Severa.

(continua)

6 comentários:

Fátima Pereira Stocker disse...

Tonho

Creio que nunca ouvi falar do cantinho nem da pessoa que lhe deu o nome, mas deixaste-me sem fôlego à espera de conhecer o caso de terror e morte de que nos deixas suspensos.

Bem-hajas por continuares connosco!

Beijos

[À falta de melhor, ilustrei as tuas palavras com a porta de uma das casas dos Pereiros que tenho fotografado]

Augusta disse...

Não fazia a menor ideia que esse cantinho tivesse tal nome. Por vezes ouvia os meus pais falarem do severa, mas também não sei quem foi.
Tal como a Fátima, estou cheia de curiosidade em saber como termina a história.
E, mais uma vez, obrigada por estes belíssimos presentes que tão gentilmente nos ofereces.
Um beijo

Olímpia disse...

Que saudades tinha de te ler!
Bem-hajas António


Bjos

Olímpia

Olímpia disse...

Por onde andará o outro António?
Há muito tempo que não comenta ou dá "os ares de sua graça".

Olímpia

Céu disse...

António

O cantinho do severa é bem conhecido por todos quantos vivem ou viveram na Portela.
Cantinho abrigado como bem dizes, onde os adultos se juntavam para conversar e a garotada para brincar. Era ali que jogávamos a pedrisca ou a macaca, ao rou-rou e tantos outros jogos dos nossos tempos.
Sempre ouvi falar do severa à tia Laura, mas nunca ousei perguntar quem era e o que lhe acontecera. Fico a aguardar a publicação da 2ª.parte para finalmente perceber quem era o severa.
Mais um obrigada pela transmissão das tua incrível memória.
Beijinhos
Céu

Fátima Pereira Stocker disse...

Céu

O meu avô vivia Portela, mas a casa dele era o único lugar que eu frequentava do bairro de cima (como lhe chamava, às vezes, a minha tia Helena - não sei se todos os outros também). Não frequentar não deveria significar desconhecer, mas no caso é mesmo assim: nunca ouvi falar!

Beijos e sê muito bem regressada!