quinta-feira, 6 de maio de 2010

ARES DA SERRA


O CANTINHO DO SEVERA: parte 2



por

ANTÓNIO AUGUSTO FERNANDES



Ao que consta, que eu já não o conheci, bom sujeito, caladão e muito metido consigo mesmo, o Severa não era de grandes folias, mas era estimado pelos vizinhos. Morrera-lhe a mulher, morrera-lhe também a filha que tinha casado lá para os Pereiros, por isso vivia sozinho. A maior parte do tempo passava-o para os lados do Atalho, onde tinha umas territas aninhadas naquele córrego que chamam de Atalho porque era por ali que os dos Pereiros atalhavam direito à Quinta do Sepúlveda quando iam para Rossas ou a caminho da feira dos Chãos, sem terem de passar pela Vila.

Talhada no meio de touças e soutos, longe de tudo, quase no extremo do termo e no seio do silêncio que apazigua a alma, onde só se aventuravam os pastores mais dedicados ou algum caçador, mas abrigadinha do vento galego, com uma poceca de água de nascente, a fazendinha era a menina dos seus olhos. Ali se davam todos os mimos precisos para o governo de uma casa. Dali comiam o coelho, o melro, o texugo e ainda sobrava para o dono que ali passava o melhor dos seus dias.

Ora um dia, de repente, o Severa deixou de aparecer. Como vivia sozinho, a princípio ninguém deu pelo caso. Não aparecia pela taberna, nunca mais foi visto ao cimo das escadas a merendar o seu cibo de pão com queijo ou presunto.

Ao segundo dia, os vizinhos chamaram à porta, não fosse por lá ter dado alguma coisa ao homem. Era escusado, que a porta estava fechada por fora com o caravelho, que naqueles tempos sadios podia-se confiar nos vizinhos como em família chegada. Entraram. Lá dentro, ninguém. Tudo em ordem como se o homem tivesse acabado de sair a algum recado. Comunicaram para os Pereiros, para casa do Tato, o genro, viúvo também, e nada: − que o não via há um ror de tempo.

A primeira ideia foi ir procurá-lo para os lados do Atalho não lhe tivesse por lá dado coisa ruim. E lá avançou um grupo encabeçado pelo Tato, que entretanto chegara dos Pereiros. Na horta nenhum vestígio nem do Severa nem de luta ou tão pouco de pegada fresca: as couves e os feijões vicejavam indiferentes a dramas e apenas um pouco murchos porque a água começava a faltar-lhes. Voltaram para trás e iniciaram uma busca mais minuciosa. A partir das poulas de Penacan, entraram pelo souto dos Pereiros, embrenham-se pelo mato sombrio do Cabeço Cercado, desceram para os lados do Cano, até que a noite os obrigou a suspender a investigação. Voltaram no dia seguinte em grupo mais numeroso, sempre encabeçado pelo Tato que começava já a lamuriar-se: − Ai meu rico sogro, que era tão meu amigo!

Resolveram ir vasculhar mais minuciosamente o Souto dos Pereiros, onde o carvalhal era mais denso e mais difícil de devassar, mas o Tato insistia que não valia a pena voltar ao já vistoriado, e voltava ao lamento: − Ai meu rico sogro, que era tão meu amigo! E ia-os empurrando para os matagais de Vale-das-Vinhas.

O grupo estranhou a insistência perturbada do homem e entrou de ficar sorumbático, ainda por cima perseguido pela toadilha lamurienta do Tato: − Ai meu rico sogro, que era tão meu amigo!

− Ó homem, cala-te, c’os diabos, que até dás azar!

E começavam a ficar encanzinados com a ladainha, tanto mais que toda a gente sabia que eles andavam de candeias às avessas, quase nem se falavam, desde que o Severa começara a falar pelas tabernas em vender uma das melhores terras: o corpo já lhe pedia descanso… e tinha o que comer até ao fim dos seus dias. Ao Tato, que vivia na esperança de herdar, na qualidade de genro embora viúvo, não agradaram tais falações. E deixaram de se falar. Não se falavam, era lá com eles, cada um tem o feitio que tem e toca a sua vida para diante como muito bem entende e pode. − Agora vir com a cantilena de serem amigos, porra, bole com os nervos da gente!... − alvitrava um mais inconformado.

O outro acusou o toque:
− Lá por mal nos falarmos não quer dizer que não me amofine. E ele que era tão meu amigo!… E às vezes até me dava uma chouriça para levar de merenda…

Este pormenor da chouriça deixava-os intrigados. A que propósito, num momento de tanta aflição… Ouve-se cada uma!...

As buscas continuaram ainda, cada vez mais desalentadas e acabaram por findar sem qualquer resultado.

Mas logo no dia seguinte, andava o Zé Tiago a fazer lenha numa touça que tinha para aqueles lados, quando o rafeirozito que o acompanhava por todo o lado lhe aparece a saltaricar em volta como quem traz recado. Não tardou a reparar que o bicho desinquieto tinha o focinho emporcalhado de viscosidades negras. Sentiu um aperto no estômago. Dar-se-ia o caso?...

− Busca, busca, Farrusco … − e o cachorro desandou por onde tinha vindo, seguido do dono.

Adentraram-se cão e dono pelo Souto dos Pereiros e não tardou muito, o animal parou a ladrar para um vulto informe mal encoberto por umas giestas. O intenso fedor a mortulho que alastrava em volta dizia o resto.

Àquele tempo, era regedor da terra o tio Ramos, o ferreiro da terra. Homem espadaúdo e de voz tonitruante, mas bom homem no fundo, tinha a sua forja na rua da Portela, ali a dois passos da Fonte Grande, e à porta, para temperar os aços, enorme pia de pedra cavada num monólito de granito. Grandes momentos pasmei à porta a contemplar o sopro hercúleo do fole enorme que levantava fagulhas até ao tecto ou a ver dobrar à força de marra as grossas fitas de ferro incandescente que depois eram aplicadas nas vastas rodas dos carros de bois, largando em densas baforadas o cheiro bom do freixo queimado.

Ora o tio Ramos, tendo ficado com a pulga atrás da orelha desde as cenas enfuscadas das buscas, não hesitou na decisão a tomar, quando o Zé Tiago lhe veio com a novidade. No dia seguinte, logo à pormanhã, correu a casa do Moreno e nomeou-o, mais um vizinho, cabos de ordens, como então era de uso e direito. Arrancaram os três para os Pereiros. Foram dar com o Tato a regar umas couves ao pé de casa e logo ali, sem mais aquelas, lhe deu voz de prisão.

O homem, apanhado de surpresa, começou a tartamudear sem que dissesse coisa com coisa, até que, amarelo que nem cidra, desatou em choro convulso e acabou por confessar a feia acção: sabia que o sogro, naquele dia, andava para o Atalho e fora ter com ele apenas para terem uma conversa de homem para homem, ainda sem qualquer intenção maldosa. Só quando o apanhou desprevenido a beber debruçado sobre a nascentinha da horta é que uma coisa má lhe passou pela ideia e, levado pela paixão que o recozia por causa da venda das terras, desferiu-lhe à queima-roupa uma machadada no pescoço.

O Regedor e os seus homens entreolhavam-se estupefactos: − E então as buscas?... E ele continuou: que escondera o cadáver à pressa, no meio do mato, à espera de uma ocasião propícia para o fazer desaparecer. Entretanto, todas as noites se dava ao trabalho de o carregar às costas para os sítios onde já se tinham realizado as buscas, para assim despistar quem o procurava. Pensava mesmo que essa noite seria o momento azado para o devolver à terra, antes que lobos e corvos dessem conta do cadáver.

Por essa altura de tempos apertados, os transportes eram mais escassos e lerdos que nos tempos que correm, mas a justiça mais lépida. Como a essa hora já o misto tinha passado há muito tempo em Rossas, o tio Ramos não esteve com meias medidas: entregou uma caçadeira a cada um dos cabos de ordens e despachou-os de imediato para Bragança. − Que iam da parte do Ramos de Rebordainhos e o entregassem à Guarda. As armas não tinham licença, mas na esquadra ninguém lhes haveria de perguntar por ninharias atendendo ao caso e a quem os mandava ir! A butes, como então não era raro fazer-se, tomaram o caminho da Tergaça, Eiras fora, passaram em deslado de Viduedo e foram apanhar a estrada de Bragança junto ao Remisquedo, em vez de irem por Rossas, que sempre se poupava uma data quilómetros.

− Mas então não é, que chegados à esquadra − contava mais tarde o Moreno − o alma do diabo começou por negar tudo o que tinha confessado ao Regedor, nos Pereiros!

Como em Rebordainhos não havia telefone, nem luz, nem estrada − um cu de Judas! − deixaram o homem entregue à Guarda e, antes que anoitecesse, atiraram-se de novo ao caminho a contar ao tio Ramos as juras de inocência do Tato quando se viu diante do oficial de serviço.

(continua)

15 comentários:

Fátima Pereira Stocker disse...

Tonho

Estou para aqui a fazer-me de novas, mas tu mandaste-me a história toda... que não conhecia, que é de assustar e que tu nos contas de um modo tal que não nos deixa despegar a vista dela!

Beijos

Augusta disse...

Agora sim, lembro-me da história tantas vezes contada pelo meu pai.
E tu, menina Fátima, não achas que chega de suspense?
Apetece-me ler até ao fim!
Beijos

Fátima Pereira Stocker disse...

Augusta

O editor respeita as instruções do autor. Mas, cá para nós, está-me a saber muito bem fazer render o peixe: por uma vez soube alguma coisa antes dos outros!!!!

Beijos

Eumesmo disse...

Caramba, tenho uma vaga impressão que nunca escutei essa história, mas para ser sincero também não lembrava mais para onde ficava o atalho. Depois de dar algumas voltas à "mufa" acabei descobrindo que ainda carreguei algumas vezes lenha e guardei umas vaquitas num lameiro por lá. Penacan, ainda estou dando voltas, mas não atino mais onde seja, no entanto fiquei mais que curioso quanto ao desenrolar da narrativa restante.
Desculpem me a franqueza, mas penso que isso de fazer render o peixe é fruto do egoísmo de uma dupla malvada, hehehe...
Obrigado pelos momentos de cultura, reflexão e exercício da paciência

Eu

Amélia disse...

Antes dos outros não Fátima! Lembro-me muinto bem desta hitória contada tantas vezes pela madrinha tia vermelha e pela mãe. O Tato tinha a machada do crime escondida no esterco numa loge dos animais.
Obrigada Tonho da Tia Lidia. Mesmo sabendo do sucedido adorei ler.

Fátima Pereira Stocker disse...

Eumesmo

Ah!Ah!Ah!Ah!

Pencan fica por cima do Múrio para os lados dos Montes. O meu avô tinha uma terra lá, por isso vou sabendo (agora é só esperar que o Tonho, as minhas irmãs ou o Anónimo venham gozar comigo a dizer que troquei lados dos sítios... e eu bem gosto de ser corrigida quando erro).

Beijos

Fátima Pereira Stocker disse...

Amélia

Corrijo, então: por uma vez não fui a última a saber de alguma coisa: isto de ser mais nova traz muitas desvanatagens nos assuntos do blog!

Beijos (e até que enfim deste um ar da tua graça!)

Olímpia disse...

António:
Estás mesmo a atiçar-nos a curiosidade!...
Embora tivesse ouvido contar este episódio à minha mãe e ao meu pai, francamente não me lembro do final.Assim,a curiosidade é muito grande. Faz-me lembrar aqueles tempos em que não tínhamos acesso à televisão e esperávamos anciosamente pelo desenrolar dos episódios dos romances da Emissora Nacional.

Mais uma vez, um bem hajas por continuares a partilhares connosco as tuas memórias e a tua sabedoria.

E tu Fátima,és mesmo a mais nova...

Bjos
Olímpia

X disse...

Por onde andam os comentadores?
Estou com saudades dos tempos de altas discussões entre os elementos...
Também notei o sumiço de vários que não são da aldeia, como Isamar, Lina Warren e por aí vai...
Anónimooooooo, por andarás tu?

bjs

Anónimo disse...

Ando no raio que o partam Sr.X! Que rica maneira de esconder a entidade!.. Também você não deixa de ser um anónimo lá por ter posto um (X)! Ao menos podia ter posto um CH que era de chanfrado!.Dá-me bontade de rir com estas babosices todas.
A deus Sr. XXXX.

Fátima Pereira Stocker disse...

X

As pessoas vão e vêm, sem obrigação de marcar o ponto!

Beijos

Fátima Pereira Stocker disse...

Anónimo

São várias as pessoas que entram como anónimas nas caixas de comentários. Deduzo isso, essencialmente (posso estar errada), pelo modo como escrevem. Este meu pressuposto leva-me a perguntar-lhe: tem a certeza de que é a si que o X se refere?

Concordo que X é outra forma de anonimato, dissimulado em pseudónimo.

Não vejo qualquer acinte na intervenção do "X" e é por isso que a sua resposta me parece desproporcionada. Peço-lhe que, por favor, se modere um bocadinho.

Beijos

Fátima Pereira Stocker disse...

X
Anónimo

Vejo com tristeza que estão a deixar de lado a única coisa que importa: o magnífico texto do Tonho da tia Lídia. Gostaria muito de vos ouvir falar sobre ele e sobre o acontecimento que lhe deu origem.

fico, então, à espera.

Beijos

X disse...

Senhor Anónimo, peço perdão se minhas palavras tanto o irritaram, pois não tive a menor intenção de irritar ou ofender alguém, além de que, pelo vernáculo utilizado em sua réplica, é bem fácil deduzir-se que não era a vossemecê que eu me dirigia.
Não escondo a minha entidade, apenas procuro não revelar minha identidade, usando um pseudónimo registrado em algum sítio na rede.
Adeus senhor anónimo irritado. Procure não levar as coisas tanto ao pé da letra, pois esta vida são três dias: Um pra nascer, um pra usufruir se divertindo e, por último, um pra morrer. E aí pegamos sete palmos de terra em cima e nada mais levamos daqui.
À Fátima deixo meu pedido de deculpas por ter usado este espaço indevidamente, mas quero esclarecer que a intenção foi apenas de animar e tentar dar um gás nos frequentadores do espaço.

bj

Augusta disse...

Caro X e caro anónimo:
Sejam bem aparecidos. Venham sempre e, já agora, se quiserem acrescentar mais algum conhecimento acerca da nossa aldeia, não hesitem. Certamente que será publicado com muito gosto.
Este espaço, permite-nos o contacto apesar das distâncias. Assim, vamos todos tornar estes momentos aprazíveis?
Beijos aos dois