segunda-feira, 10 de maio de 2010

ARES DA SERRA


O CANTINHO DO SEVERA: parte 3



por

ANTÓNIO AUGUSTO FERNANDES



O tio Ramos, descoroçoado com o rumo que os acontecimentos tomavam, foi consultar o vizinho, o Sr. Rogério, que os da minha criação já não conheceram, marido da Sr.ª Aninhas, que era polícia em Bragança. Este, já com longo traquejo em lidar com as manhas dos serranos, matutou, matutou…

− Deixa lá, Ramos! Amanhã vamos para Bragança, tu, eu, mais os cabos de ordens. A coisa há-de se aclarar.

No dia seguinte, o detido foi chamado por um guarda a depor novamente diante do Regedor e dos cabos de ordens. Com a maior desfaçatez jurava e trejurava que era inocente… e que lhe tinham arrancado a confissão à força… por ter medo do tio Ramos… e porque os de Rebordainhos tinham má vontade contra os dos Pereiros… e porque torna e porque deixa, não havia maneira de repor a confissão já feita. Quando a cena já se prolongava mais que o razoável e o homem afrouxava já na convicção com que lançava as suas juras, a porta da sala abriu-se de repelão e uma sombra de rosto velado, revestida com uma andaina velha de cotio que fora do Severa, avançou lentamente, soltando os gemidos surdos do estertor da morte. O Tato cambaleou, apavorado com a aparição da alma penada do sogro que assim voltava do outro mundo para lhe atormentar os dias. Entrou de tremer e, de olhos esbugalhados a esbagoarem-se em lágrimas, de novo confessou o crime da sua ganância. Fora bem traçado o plano do Rogério.

As gentes das serras, embora rudes, são de seu natural cordatas, mas, de longe a longe, ocorre um destes crimes violentos, quase sempre motivados por uma das suas três grandes paixões do serrano: a fome de terra, a fome de água para dessedentar essa mesma terra ou a paixão por uma mulher, um desses amores tresloucados que roubam a luz do entendimento a um homem. E por isso, quando sucediam, tais crimes cavavam rodeiras fundas na memória colectiva da Serra e passavam à tradição oral através de versos toscos que os cegos compunham e depois entoavam, acompanhados ao violão, de terra em terra, pelas feiras e festas das redondezas, mendigando o seu tostão ou malga de caldo. A toada ia entrando no ouvido de toda a gente e, não raro, ouvia-se a sua melopeia dolente lançada aos ares limpos da serra por algum lavrador agarrado à rabiça do arado, ao ritmo lento do passo dos bois, enquanto as lavandiscas catavam os vermes na leiva fresca.

E também do crime da morte do Severa, cujo nome se perpetuou na toponímia do Cantinho que abrigava os nossos lazeres de crianças, algum poeta anónimo lavrou crónica em versos que o amigo Amândio Evaristo teve a gentileza de me fazer chegar, juntamente com outras informações obtidas junto do Sr. Manuel Martins, aposentado da G. N. R., seu tio e filho do tio Ramos Regedor. Literariamente tais versos podem não ser grande coisa, mas constituem o testemunho de uma literatura popular, velha como Portugal, herdeira dos jograis medievos e conservada à margem dos saberes académicos; antes, crescida à sombra da vadiação livre dos aedos por aldeias e vilares, e afeiçoada ao ouvido popular pela toada da redondilha maior. Por isso, aqui os devolvemos à gente de Rebordainhos para que o tempo os não leve definitivamente consigo e como memorial ao Cantinho do Severa.


..............No concelho de Bragança
..............Deu-se tragédia sangrenta
..............Ao ouvir esta história
..............Muita gente se atormenta.

..............Um genro desnaturado
..............Fez grande crueldade:
..............Matou o sogro à machadada
..............Por vender uma propriedade.

..............O sogro vendeu o prédio
..............Do qual o genro gostava
..............E por ele o ter vendido
..............Matou-o à machadada.

..............O sogro faltou de casa
..............E o povo desconfiava.
..............Procuraram o velhote
..............Sem poder ser encontrado.

..............Quando p'ra uns lados do terreno
..............O iam a procurar,
..............O genro o transportava
..............Dali p'ra outro lugar.

..............Assim se passaram dias
..............Sem seu sogro aparecer,
..............Até que se descobriu
..............Isso se veio a saber.

..............Fora um homenzinho
..............Buscar um carro de lenha
..............E levara um cãozinho
..............Que descobriu a façanha.

..............Apareceu o tal cãozinho
..............Com o focinho ensanguentado
..............E o dito homenzinho
..............Seguiu logo para aquele lado.

..............Qual não foi o seu espanto
..............Ao encontrar o velhinho
..............Com a cabeça cortada
..............E o corpo em desalinho.

..............Foram dar a parte ao povo,
..............À gente da freguesia:
..............Tudo correu para o local
..............Em enorme gritaria.

..............Prenderam então o genro
..............Com alguma desconfiança
..............Sendo logo transportado
..............Para a cadeia de Bragança.

..............Depois de estar na prisão
..............Ele a verdade contou:
..............Foi por vender o prédio
..............Que a cabeça lhe cortou.

..............Devemos reparar bem
..............Neste homem de avareza,
..............Pois fez tão grande crime
..............Só por causa da riqueza!


Nota: escolhi como ilustração Os Sete Pecados Mortais, pintura de Ieronymus Bosch

8 comentários:

Fátima Pereira Stocker disse...

Tonho

Chegámos ao fim desta história de arrepiar. Não diria que é um fim feliz, mas é um fim com justiça. Também com graça, diga-se em abono da verdade, porque o ardil do tio Rogério foi muito bem engendrado!

Gravei na memória os três motivos para os (raros) crimes da gente serrana: terra, água, mulher. Tudo feminino, menos quem os comete!

Beijos e bem-hajas por nos continuares a alimentar a memória e o gosto pela leitura

António disse...

Amiga Fátima:
Tens toda a razão. Dos homens pouco se aproveita, só vale a pena lutar pelo feminino.

Concluídos os três momentos da história do Severa, muito obrigado peça tua dedicação a estas historietas de Rebordainhos e à sempre oportuna escolha das ilustrações.

Grato também às manas Pereira pelos comentários benévolos.
Um beijinho do
Tonho da tia Lídia

Augusta disse...

Tonho:
Mais uma vez, muito obrigada pela tua generosidade em partilhares as tuas memórias.
Sabes que sou, se não a tua admiradora nº 1, pelo menos a nº 2,mas este relato tocou-me particularmente, pelos motivos que muito bem compreenderás.
Apesar de conhecer a história, desconhecia por completo os versos finais. Ainda bem que o meu irmão tos enviou. Certamente, nunca calhou de abordarmos o assunto. Ele, tal como tu, é uma verdadeira enciclopédia acerca de Rebordainhos.
Assim, perdoa, mas os agradecimentos vão também direitinhos para ele e para o meu tio Manuel.
Beijos

Augusta disse...

Fátima:
Até que enfim, veio o final da história.
Aguardamos assim, mais uns capítulos do "Ares da Serra". Esperemos que o Tonho continue a lembrar-se de nos presentear com tão preciosas pérolas.
Beijos

Américo Amadeu Pereira disse...

A história da morte do Severa é um
documento, talvez único, além das
quadras, acontecimento que deve ter
para cima de sessenta e cinco anos.
Recordo-me vagamente de ouvir falar
que o Tato matou o Severa e que
carregou o cadáver durante várias
noites para locais onde já tinham
passado à procura dele. Gostei de
saber pormenores que simplesmente
desconhecia, graças ao TONHO que com tanta subtileza nos faz lembrar
histórias tristes mas reais. Talvez
se lembre de relatar também um
acontecimento idêntico e posterior
a este ocorrido à porta da taberna
por volta do ano de 1953.

António disse...

Olá, Américo:
É bom ouvir-te, ao fim de muitos dias de ausência.
Desse caso de 1953 lembro-me muito bem, bem de mais. Tenho ainda presente na memoria o charquinho de sangue diluído pela chuva que andou por ali durante uns dias, à esquina da Taberna de Cima, onde havia um rebolo de pedra sobre o qual os homens se sentavam à tarde...
Mas não vou falar disso, porque envolve pessoas ainda vivas... e não quero recordar mais casos tristes da velha aldeia. Não quero ser o cronista de desgraças.
Um abraço

Fátima Pereira Stocker disse...

Tonho

O meu tio Manuel telefonou-me hoje e deu-me um presente: as cinco quadras que faltavam àquelas que já publicaste. Vou acrescentá-las sem te pedir autorização, porque tenho a certeza de que concordas.

Beijos

António disse...

Fátima:

Fizeste bem, como sempre, aliás, em completar o texto.
Já agora lançava o desafio aos rebordainhenses de lembrar outros versos daqueles que antigamente eram cantados pelos cegos. Em particular queria ver se alguém se recordava de uns muito tristinhos sobre uma menina órfã entregue a uma tia,de que apenas lembro esta estrofe:
Isabelinha porém
morreu-lhe a sua mãe,
ficou juntode uma tia,
que muito mal a tratou
e com um porco a juntou
a dormir de noite e dia.

Alvíssaras para quem se lembrar do resto.
Abraços