Por
abcd
O facto de sermos transmontanos não é por si só condição para sermos transmontanos.
Mas então o que é ser transmontano?
Eu, que nasci e vivi em Trás-os-Montes, tenho para mim que não chega possuir estas duas condições para se ser designado transmontano. Creio que existe algo mais, que caracteriza essas misteriosas pessoas, algo que nos traz recordações de um passado onde alguns se sentavam em blocos pesados de granito que formavam as escadarias frescas e que serviam para pôr a conversa em dia. Sentavam-se sujos do pó que haviam ganho nas terras duras e agrestes que os desafiavam todos os dias, repousando as mãos calejadas e fortes nos joelhos cansados de andar por entre giestas teimosas e carvalhos divinos. Alguns, mais gastos pela vida, pousavam a cabeça e a coragem num pau feito à medida, e olhavam quem passava com uma ternura nos olhos e um cansaço na alma impossíveis de descrever.
As mulheres, verdadeiras guerreiras, vestiam-se quase sempre de preto, porque quase sempre eram viúvas, ou irmãs de viúvas ou tinham simplesmente um acto de solidariedade para com outros que estivessem de luto. No avental, que também era negro de luto, as mulheres quase sempre traziam uma côdea de pão no bolso, que servia para ir mastigando à medida que calcavam os caminhos de terra batida em busca da rotina e do ganha-pão. Carregavam espalhadouras no ombro e ajudavam os homens na lavoura pesada, porque podiam, porque eram fortes, porque não lhes pesava o facto de terem nascido mulheres, porque eram transmontanas. E se alguém lhes dizia para pararem, respondiam com o lenço preto a esvoaçar que tardava em se ajustar à cabeça, e quando este encontrava por fim o lugar habitual, fazia aquilo para que tinha sido criado, afastar o calor das cabeças daquelas mulheres corajosas, e elas faziam aquilo para que tinham nascido…porque afinal de contas, eram transmontanas.
Os homens, duros como as fragas, ouviam quase sempre as mulheres e delas bebiam a energia que os alimentava. Não posso deixar de referir que existiam alguns que batiam nelas, que as humilhavam e que as destituíam do posto que Deus lhes havia dado. Mas o tempo, que é a arma de Deus, encarregava-se de dar a razão e o luto às mulheres deixando esses homens feridos entregues ao mistério divino. Porém eram estes e outros que tornavam as paisagens transmontanas repletas de fotografias mentais, onde se podiam enxergar eles e as cabras, as ovelhas, as vacas, ou a terra remexida, ou a lenha no sequeiro, ou simplesmente os passos pesados de um velho que saía da taberna depois de jogar ao chincalhão.
Podendo cair em contradição, digo que bem lá no fundo todos somos transmontanos, mas existe uma pequena diferença que nos afasta deles, dos verdadeiros e puros transmontanos, e é essa diferença que nos dá tantas saudades da nossa aldeia, que nos faz recordar com mágoa aqueles que já foram, que nos faz ver a muito custo que essa aldeia envelhece, que nos faz chorar interiormente pelas mortes que vão levando os últimos resistentes, as pedras, os pilares de Trás-os-Montes. É uma diferença muito ténue mas ao mesmo tempo divide-nos ao meio…
Eles decidiram ficar…
abcd
O facto de sermos transmontanos não é por si só condição para sermos transmontanos.
Mas então o que é ser transmontano?
Eu, que nasci e vivi em Trás-os-Montes, tenho para mim que não chega possuir estas duas condições para se ser designado transmontano. Creio que existe algo mais, que caracteriza essas misteriosas pessoas, algo que nos traz recordações de um passado onde alguns se sentavam em blocos pesados de granito que formavam as escadarias frescas e que serviam para pôr a conversa em dia. Sentavam-se sujos do pó que haviam ganho nas terras duras e agrestes que os desafiavam todos os dias, repousando as mãos calejadas e fortes nos joelhos cansados de andar por entre giestas teimosas e carvalhos divinos. Alguns, mais gastos pela vida, pousavam a cabeça e a coragem num pau feito à medida, e olhavam quem passava com uma ternura nos olhos e um cansaço na alma impossíveis de descrever.
As mulheres, verdadeiras guerreiras, vestiam-se quase sempre de preto, porque quase sempre eram viúvas, ou irmãs de viúvas ou tinham simplesmente um acto de solidariedade para com outros que estivessem de luto. No avental, que também era negro de luto, as mulheres quase sempre traziam uma côdea de pão no bolso, que servia para ir mastigando à medida que calcavam os caminhos de terra batida em busca da rotina e do ganha-pão. Carregavam espalhadouras no ombro e ajudavam os homens na lavoura pesada, porque podiam, porque eram fortes, porque não lhes pesava o facto de terem nascido mulheres, porque eram transmontanas. E se alguém lhes dizia para pararem, respondiam com o lenço preto a esvoaçar que tardava em se ajustar à cabeça, e quando este encontrava por fim o lugar habitual, fazia aquilo para que tinha sido criado, afastar o calor das cabeças daquelas mulheres corajosas, e elas faziam aquilo para que tinham nascido…porque afinal de contas, eram transmontanas.
Os homens, duros como as fragas, ouviam quase sempre as mulheres e delas bebiam a energia que os alimentava. Não posso deixar de referir que existiam alguns que batiam nelas, que as humilhavam e que as destituíam do posto que Deus lhes havia dado. Mas o tempo, que é a arma de Deus, encarregava-se de dar a razão e o luto às mulheres deixando esses homens feridos entregues ao mistério divino. Porém eram estes e outros que tornavam as paisagens transmontanas repletas de fotografias mentais, onde se podiam enxergar eles e as cabras, as ovelhas, as vacas, ou a terra remexida, ou a lenha no sequeiro, ou simplesmente os passos pesados de um velho que saía da taberna depois de jogar ao chincalhão.
Podendo cair em contradição, digo que bem lá no fundo todos somos transmontanos, mas existe uma pequena diferença que nos afasta deles, dos verdadeiros e puros transmontanos, e é essa diferença que nos dá tantas saudades da nossa aldeia, que nos faz recordar com mágoa aqueles que já foram, que nos faz ver a muito custo que essa aldeia envelhece, que nos faz chorar interiormente pelas mortes que vão levando os últimos resistentes, as pedras, os pilares de Trás-os-Montes. É uma diferença muito ténue mas ao mesmo tempo divide-nos ao meio…
Eles decidiram ficar…
6 comentários:
Nota de edição
As fotografias que ilustram o artigo foram, também, enviadas pelo autor. Respeitei, escrupulosamente, o lugar por ele indicado para serem colocadas.
abcd
"Eles decidiram ficar..." e nós precisámos de patir. Sangravam os corações de quem partia e de quem ficava.
É com ternura cada vez maior que leio as reflexões que vai fazendo o favor de escrever para nós. Bem-haja por elas!
Amigo abcd
Quando comecei a leitura deste belíssimo excerto das suas e nossas memórias, alegrou-se-me a alma por ver algumas fotografias e, através delas poder identicá-lo. Puro engano! Reconheço a última. É de um fotógrafo espanhol que veio fotografar o careto de Rebordaínhos, num dia de Reis. Das restantes, nada reconheço.
Assim, resta-me agradecer-lhe os momentos de boa leitura e, pode ser que um dia queira quebrar o sigilo.
É realmente uma desolação de alma ir a Rebordainhos no inverno e ouvir aquele silêncio tão pesado da aldeia.
Agora, em Agosto, sabe pela alma ir e rever bons e velhos amigos. Estes, partiram por necessidades diversas. Outros têm partido sem que quisessemos que tal acontecesse. Mas, essas partidas são independentes da nossa vontade. A nossa vida tem um princípio e um fim, e se não pedimos para nascer, também não pedimos para definitivamente partir.
Os castanheiros... esses têm resistido e, decidiram ficar, felizmente.
Um abraço
Caro abcd
Bem-haja por nos presentear com mais um belíssimo texto repleto de sensibilidade e muito carinho.
Bem-haja por este hino à mulher transmontana.
Ser transmontano, é isso tudo. Mas também se é transmontano quando, por razões várias se adopta a terra e a consideram como sua.
Ser-se transmontano é quando, por entre um mar de fragas e pedras alguém nos manda entrar (sem ninguém vir à porta ou à janela espreitar) e se escancara a intimidade duma família inteira, pronta a repartir o seu pão.
Cumprimentos e
Olímpia
Quem escreve, sentindo, ternura e amargura... e descreve, perfeitamente, carinhosamente, tempos que o vento levou, a neve acariciou, a chuva dispersou, só pode ser de onde eu sou?! Com a ilustração me charmou; nos tempos agrestes me trasportou, emocionou... recordou a valentia femenina, mas, não ousou nem esqueceu, do homem Transmontano o relato, infeliz ou mesmo ingrato engrandece e determina...
Bravo é: quem tão bem escreve !!!
Texto fabuloso.
Eduarda
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