quinta-feira, 14 de outubro de 2010

ARES DA SERRA



MALHA À EIRA!...

por

ANTÓNIO AUGUSTO FERNANDES



Ainda o dia vem em casa de Pilatos. Apenas a oriente o céu se carmina de leves tons de cereja madura e já pelas ruas da aldeia se movimentam os mais madrugadores, que, em Agosto, embora os dias sejam compridos como as léguas da Póvoa, os afazeres abundam e nunca as tarefas se dão por findas, por mais que um cristão cirande e moa o esqueleto debaixo da torreira desde que se levanta até ao último bocejo antes de se enfiar nos lençóis de estopa: esta vai à fonte encher os cântaros para os gastos do dia, aquele vai regar o talhãozito de horta nas cortinhas do Prado, outro vai acomodar a cria, que hoje não sobra quem a toque para o lameiro… É um formigueiro álacre correndo por quelhas e canadas.

Se bem que ainda estejamos no pino no Verão, pela manhã já corre uma brisa brejeira que arrepia, e até sabe bem este corre-corre que acalenta o coiro de quem acaba de largar o quentinho da cama.

Subitamente, sobre casas e hortas, soa o clamor, lento e longo, ondulando ao sabor da brisa: MALHAAAaaa… À… EEEeeei…raaaa…! – É a voz tonitruante do maquinista da malhadeira do tio Alfredo Guerra, o João Santa Combinha que gatinhou até ao alto da meda do tio Manuel Frade e de lá lança o pregão anunciando que a máquina está a postos para mais um dia de malha. MALHA À EIRA! e uns decibéis mais baixo, completa o recado: QUE ESTÁ O BACALHAU NA CALDEIRA!...

Homens ajeitando ainda sobre os ombros o casaco de cotim, mulheres ultimando o nó do lenço no cocuruto da cabeça, garotos traquinando em corrimaças, familiares e amigos, mais aqueles que já tornam ou ainda vão ganhar a jeira, enfim, um rio de gente desliza pela rua do Outeiro e desagua na eira do tio Zé Çuca.

Dentre a rapaziada nova, com o viço da idade a incitá-los à folestria, lá se adianta um a desafiar que põe o motor em funcionamento só com uma mão. E põe mesmo! Começa a faina: o dono da malha, o tio Manuel Frade, no seu passo largo e escangalhado, movimenta-se como maestro mal ensaiado pelo meio das gentes, dando ordens e distribuindo ferramentas: espalhadouras de pau de freixo para os que vão atirar os molhos da meda para cima da malhadeira, um engaço para arrebanhar os cuanhos, uma molhada de sacas em que se vai transportar o grão para a tulha, as cordas de palha entrançada, ainda húmidas, para as feixeiras que transportarão a palha para o medeiro, cuja construção em cone é confiada a um esteta mais entendido na arte das pirâmides, desta vez o pequeno tio Bagueixe.

Entretanto algum moço de sangue mais esquentado lá ensaia já beliscão lascivo na moçoila que passa, enquanto um velhote, de queixo encostado ao cabo da ferramenta, recorda, com sorriso maroto a que faltam dentes, os tempos em que era ele o protagonistas de idênticas façanhas.
Iniciava-se assim o ritual de celebração das colheitas a fechar todo um ciclo de canseiras e trabalhos desmedidos. Por isso se sentia no ar uma alegria brejeira de festa pagã, gratos a Deus que é Pai de todos e à mãe terra de cujo ventre nascem os frutos que dão sustento a todos os viventes. Agora as malhas, dentro de pouco a arranca das batatas e, mais lá para os Santos, quando as névoas já descem da serra e a molinha encharca os campos, a apanha das castanhas. A isto se resume a riqueza da serra.

Era assim uma malha há cinquenta anos: uns lançam os molhos do alto da meda para o estrado da malhadeira, com cuidado para que o grão não se esbagoe à toa; aqui, um moço, destro de gestos e flexível de rins, desenvencilha o molho e passa-o ao maquinista, o Santa Combinha, orgulhoso do seu fato-macaco e óculos descomunais de piloto da primeira grande guerra, que o enfia às gabelas pelas goelas da máquina. Pela frente desta, uma passadeira, aos soluços, vai largando a palha que dois homens atiram para longe com as espalhadouras de pau. As raparigas, apapoilando as cabecinhas de alvéloas com os garridos lenços de ramagens, com a ajuda do seu par, engabelam em altos feixes que põem à cabeça e depois, esforçadamente, mas com o donaire de elfos, transportam pela escada de mão esguia, até ao alto do medeiro; por outro lado, em mantas velhas, enfardam-se os cuanhos que outras mulheres transportam para o palheiro. Atrás da malhadeira, os mais maduros ensacam e contabilizam o cereal em sacas de oitenta quilos que os moços mais garbosos transportam para a tulha. E, pela cadência com que os sacos se vão enchendo, comenta-se a fartura ou escassez do ano a partir da proporção entre a palha entrada e o grão saído.

À medida que o sol se eleva para o zénite e o calor aperta, os malhadores despicam-se com gritos guerreiros e, de quando em vez, um grito fino de moça sobreleva o ruído de feira quando algum mariola, ao ajudar a apertar o feixe, adianta em demasia mão lampeira em direcção à parceira que parece não estar pelos ajustes. Percalços ligeiros que depressa se esquecem no ardor do mourejar.

Pelas nove horas, as mulheres que ficaram em casa, à volta dos potes, aparecem com o almoço. Estendem longa fila de toalhas de estopa mesmo ali na eira, à sombra, se puder ser, sobre umas manchocas de palha fresca acabadinha de malhar. Em volta os malhadores agacham-se, como em celebração de rito primitivo. Os de joelhos mais comidos pela artrose lá arrastam um tanganho em que pousem a rabadilha. Salpicando a brancura das toalhas aparecem os mimos que se reservam para estas alturas: primeiro, as travessas do bacalhau tostadinho nas brasas de carvalho, salpicado de rodelas de cebola e aloirado com um fio de azeite, que fazem anelar as narinas famintas. Circulam os enormes pães de centeio e cada um serve-se a gosto com a navalha peliqueira própria ou emprestada pelo vizinho. Começa o repasto e o pipinho de esguicho ou a cabaça vão circulando pelo adjunto: um despesão só em vinho que tem que se comprar, porque a serra não o dá! Por toda a extensão da mesa, as meias esferas de queijo flamengo ou aqueles queijinhos de cabra, maneirinhos e rijos que nem castanhas piladas, provenientes de detrás da serra, Vilardouro ou Cabanas, que os da tia Perpétua e os da tia Zulmira não chegam para as encomendas. Estranhamente e ao arrepio do menu consagrado de qualquer maître, este primeiro repasto finda com largas malgas de café de cevada com leite atulhadas de sopas de trigo.

Assim retemperadas as forças, a faina recomeça com redobrado arreganho. No ar adensa-se a poeira e o suor tomba às bagadas. O patrão, atento, vigia para que o pipinho ou a cabaça cirandem a dar alento, que o calor aperta e o labor é pesado. As meninas mais biquinho de lêndea lá bebericam o seu golito de laranjada (quando o patrão é mais mãos rotas) ou copos de água fresca da Fonte Grande (que a da Canada do Outeiro há muito que não presta para beber). E os dos sacos, porque a tarefa é mais dura e a tia Maria dos Santos é generosa, sempre avezaram meia dúzia de ovos para bater com vinho e cerveja mais uns pozitos de açúcar, néctar de se lamber o beiço com que retemperam as forças e que ciosamente ocultam da lambarice dos demais.


O ar tolda-se de poalha, o calor aperta, a moinha cola-se à garganta e o pessoal vai limpando a testa à manga da camisa com grande ênfase. E, se o pipinho tarda a passar, lá aparece um mais zãino que atira um molho quase inteiro para as goelas da malhadeira: o motor começa a arquejar, a máquina engasga-se e quase sempre a correia de transmissão salta. Aí temos o percalço transformado em momento de repouso, enquanto o Santa Combinha pula do seu poiso, simulando zanga e com ares de entendido, para proceder ao desengasganço da máquina. O patrão bem protesta pelo tempo perdido e pelo grão que vai na palha, declamando que só lhe saem malandros…
Após breve pausa para umas larachas, tudo recomeça.

Por volta da uma da tarde, aparece um miúdo com o recado das cozinheiras: o jantar está pronto!

Ainda bem, que corpo já estava a pedi-lo. Agora, como o sol está a pino, recolhem à sombra do cabanal em frente da casa do patrão e cada um ajeita-se conforme pode para dar início à função.

O prato de resistência é a infalível canhona guisada. O apetite do trabalhador rural é proporcional à dureza das tarefas a que se entrega. Por isso, era coisa digna de se ver aqueles pratos de esmalte comprados na feira dos Chãos, atulhados com pirâmides de batata farinhota coloridas pela molharanga do guisado e acolitada por dois ou três bons nacos da carne do ovino sacrificado para a função. E repete-se, que a tarde é comprida! A findar, um perfumado caldo de ervanços em que se cozeu o pisperno do cevado e em que a tia Maria dos Santos é mestra consumada.

Pena era que, desta feita, os patrões não tenham descendência, porque, quando da meda já só restassem quatro molhos, a que se dava o nome de virgo, a filha (ou filho, quando só houvesse descendente varão) seria transportada de charola até à malhadeira. Por tal homenagem competia ao homenageado a obrigação da oferta de rebuçados para as malhadeiras e cigarros para os malhadores.

Decerto as gentes daqueles tempos não eram melhores nem piores que as de hoje. Mas havia uma maneira genuína de viver as pequenas alegrias que a vida proporcionava, uma capacidade para se ser feliz com coisa pouca e um sentimento de pertença à comunidade suficiente para ultrapassar as quezílias e pequenas invejas do quotidiano, o que dava lugar a uma disponibilidade permanente para dar uma mão ao vizinho e partilhar das suas alegrias ou desgraças.

Acontecia estas malhas grandes terminarem ainda com duas ou três horas de sol. Então aproveitava-se para despachar uma malha de pobre, daquelas com menos de cem pousadas. Desta vez calhou ao tio Chancas aproveitar esse bocado de sorte que lhe permitia malhar sem mais despesas. Velhote benquisto pelo povo, vivendo da enxada, do muito esgravatar numas leiras pobres e da boa vontade das ajudas, lá agenciava, ano por outro, os seus sessenta, setenta alqueires. Atendendo a quem era, o pessoal avontadava-se e num rufo lá despacharam a deprecada.

É bem verdade que um pobre, quando é mesmo pobre, nem do que é seu é dono: em dia de malha caíam sobre a colheita todos os cobradores como corvos sobre a carniça: ele era a avença do barbeiro, ele era a côngrua do padre, ele era a renda da lameireca das Almas, ele era o diabo a quatro…E, sobretudo, para desonra da Serra, os juros do empréstimo à onzena: para se acudir à fome, quando o ano era mais comprido que a colheita, havia que pedir pão para a boca. Aí, por cada dez alqueires tinham que se pagar onze (daí o negregado nome de onzena). E lá se ia em maquias grande parte da colheita.

O dia findava. O sol despencara já para trás da Serra dos Pereiros e o pessoal ia dispersando. O tio Chancas, que não era homem para desmoralizar e alegrete das pingas bebidas à custa do Manuel Frade, olhava para o pouco que lhe sobrava e agitando uma ciranda acima da cabeça como sevilhana bailando o seu bolero, cantarolava:

Depois da malha acabada,
Aqui está o que me calha:
Uma bebedeira nos cornos
E uma gabela de palha.

________
Na realidade não havia nenhum Chancas em Rebordainhos. A anedota é verdadeira apenas na sua substância.

9 comentários:

Fátima Pereira Stocker disse...

Tonho

Devolves-nos pedaços de nós; abres gavetas de que nem recordávamos a existência. Os teus contos como que nos devolvem a consciência do nosso ser mais profundo. Um dia acrescentarão aqueles que, aos serões, contaremos aos nossos netos. Eu, pelo menos, vivo na esperança desses dias.

Bem-hajas por nos aqueceres Inverno que aí vem e, também, por aceitares partilhar o teu arquivo fotográfico connosco.

Beijos

Augusta disse...

Finalmente, mais um "Ares da Serra" que nos enche as medidinhas todas.
Abençoado sejas Tonho. E que nunca te canses de nos ires lembrando estes retratos vivos e vividos.
Beijos

Ribordayn disse...

E pra quem vive, há algumas décadas, a milhares de quilómetros de distância, aviva a memória com vocábulos tão típicos da nossa terra e há muito totalmente esquecidos e suprimidos da minha lembrança.
Obrigado por mais este belo conto tão real, embora as fotos da malha sejam bem mais recentes que os fatos narrados, penso eu, pois na minha lembrança não aparecem homens carregando os feixes para os medeiros, tão pouco fios elétricos no entorno da eira ou qualquer outro sítio da aldeia.

Um abraço

Joaquina Salgueiro S.C. disse...

Parabéns pelo belo texto que nos permite reviver outros tempos , apesar de eu ser beirã. É assim que se vai conseguindo proteger as tradições e com elas a nossa identidade como povo . Ao seu autor ea Fátima mais uma vez agradeço.
Um abraço
Quina

Américo Amadeu Pereira disse...

Olá Tonho, quero testemunhar o meu
gosto por mais um texto dedicado aos "Ares da Serra" que muito me
apraz ler e que ao mesmo tempo me faz reviver momentos inesquecíveis
de como o esforço humano resistia ao tabalho exaustivo do que era uma malha de um passado recente.
No entanto, se recuarmos no tempo,
em vez de trabalhar com uma malhadeira que nos separa o grão
totalmente limpo, vamos imaginar
a malhadeira que só separava o grão
da palha e que ainda era necessário
utilizar a limpadeira. Se recuarmos
um pouco mais, antes de aparecer a
malhadeira, os molhos eram desfeitos e estendidos a todo o
comprimento da eira e aí sim é que
o esforço humano era total. Com o
auxílio de malhos, os malhadores
faziam saltar o grão das espigas
num constante vaivém. A seguir era
retirada a palha, com vassouras e
rodos juntava-se o grão para levar
à limpadeira. Para ter uma ideia
aproximada, uma malha de quinhentas
pousadas demorava quatro ou cinco
dias, confome o número de pessoal.
Américo

Olímpia disse...

Que bom António, poder ter o prazer de te ler!
Estes teus textos, representam capítulos das nossas vidas, momentos que nós tentamos não deixar fugir das nossas lembranças, e que tu fazes o favor de nos ajudares a recordar.Momentos de trabalho árduo,mas também de muita solidariedade e alegria.

Bem-hajas, António!

Um beijo

Olímpia

Anónimo disse...

Amigos leitores:
Obrigado pelas vossas palavras de apreço por estas mal alinhavadas linhas dedicadas às nossas memórias e à recordação dos que nos antecederam na construção de uma identidade.

Amigo (e desconhecido) Ribordayn:
Tem toda a razão: as fotografias têm apenas trinta anos, são de um tempo em que se começava já a afirmar a igualdade entre homens e mulheres e aqueles já não se envergonhavam de pôr um feixe à cabeça.

Caro Américo:
Bem gostaria de escrever sobre as malhas de malhos, mas lembro-me apenas de uma: tinha os meus cinco anos e acabava de chegar de Bragança; foi na eira do teu pai, o Sr. Amadeu, e creio que pertencia ao meu padrinho, o tio Zé Çuca, um dos últimos resistentes à introdução da malhadeira porque, dizia ele, partia o grão e deixava ir metade na palha. Mas é uma memória muito difusa que, bem espremida, não dá para uma página.
Obrigado a todos,
António

Chanesco disse...

Minha cara Fátima

Louvo os colaboradores que a rodeiamm e que brindam os leitores com preciosidades destas.
Os Ares da Serra do Sr António Fernandes, são sempre uma lufada de frescura a cada vez que por aqui passo.
Estas descrições pormenorizadas das actividades rurais do antigamente, aliadas à caracterização dos intervenientes, são autenticas aulas de humanismo.
Aqui por Toulões e pelas aldeias ao redor tambem exitiam os Canchas mas uma das coisas que mais melembro do fim das eiras eram os "bandos" de galinhas que eram deitadas à eira ao rebusco das sementes perdidas.

Um abraço para Rebordainhos

Céu disse...

António

Este texto é mais um retrato fiel das tarefas da nossa época.
Lembro-me também daqueles serões em que se faziam as cordas do colmo previamente molhado nas poças para que a palha pudesse ser atada e levada como bem dizes, à cabeça das moças até ao medeiro. Nas malhas dos mais abastados, era também hábito arrematá-lo com um ramo de flores, o que dava direito a um copito de vinho doce a quem tinha a coragem de trepar as escadas até ao cimo do mesmo.

Um beijo
Céu