quinta-feira, 25 de novembro de 2010

ARTESÃOS DE REBORDAINHOS




Por

ANTÓNIO BRAZ PEREIRA




Como diz a adágio: “filho de peixe sabe nadar”, e assim também é com o Carlos Águeda. Para quem se não recorda dele, é irmão do Avelino, tristemente falecido num acidente de moto em Bragança, e do “Birlau” que, como tantos outros desejosos de uma vida melhor, resolveu desertar da terra mãe, rumo à capital ou estrangeiro. O Carlos, com suas mãos de oiro, herdadas do pai que, no seu tempo, manobrava o zinco e com ele realizava peças úteis, dá asas à imaginação e cria obras de arte, miniaturas que iluminam a curiosidade de uns e provocam a inveja dos menos dotados.

Conheci-o miúdo, magricelas, espevitado quando, em tempos, acompanhava com o Sr. Carlos “Chiote”, ou passava por minha casa à procura do meu sobrinho seu amigo Vítor, para uma saída de rotina, que não passava do café, ou de um passeio em volta do povoado. Hoje, que é casado e pai de filhos, apareceu-me por acaso, numa rede social, e um homenzarrão, fisicamente bem constituído, com saúde e boa disposição como aliás sempre denotou. Não lhe tinha agradecido pessoalmente a maravilhosa ilustração de um dos meus textos e já ele me propunha outras peças, frescas de tão acabadinhas de fazer, referentes aos Rebordainhenses: o tractor do Nelzeira, a malhadeira do tio Alfredo Guerra ou do António Chiote e, sobretudo, o carro do macho da tia Emília do tio Aniceto. Sobretudo, por causa do muito respeito e afecto que lhe merece. Embora a não visite frequentemente, tem as suas raízes na nossa terra, aquela que o viu nascer. Na nossa conversa sublinhou o carinho e os sacrifícios da mãe e as vagas recordações que tem do pai que morreu sendo ele de tenra idade.

Apesar de considerada terra fria, Rebordainhos acolheu, carinhosamente, saltimbancos, mendigos e forasteiros que por lá se mantiveram: a Joaninha e seu saco de mão e um caldeiro repleto de coisas desnecessárias e o Camilo, de pele escura por ser africano, que, quando com um copito, tocava batuque com o que lhe vinha à mão. Certa vez em que houve fogo nos os montes, e ouvindo o sino tocar a rebate, dirigiu-se a correr para o local, acompanhando a maior parte da população, com o intuito de apagar as chamas que ameaçavam terrenos de centeio próximos. O Camilo, que seguia correndo à minha beira, ao chegar junto da casa do tio Couceiro viu a Adosinda à porta, dirigiu-lhe estas palavras:

– Ó Sra Adosinda, guarde-me para aí estes dez tostões não os vá perder no incêndio…

Havia também o “Rádio” que permaneceu longo tempo por lá. Penso que a alcunha lhe venha de tanto falar, ou porque trazia sempre com ele um rádio pequeno a emitir música. E o tio Guerra, homem trabalhador e de paz; os ciganos “Laregos” e os do tio Fernando, e tantos outros que, na sua passagem, nos empolgaram com a representação do “Amor de Perdição”, da “Rosa do Adro” e do “Zé do Telhado” nos palheiros do tio Alfredo "Guerra" e do tio João "Santo" apetrechados para tal.

Voltando ao artesanato, lembro o tio Graciano “Grilo” e os seus socos de amieiro aos quais aplicava brochas redondas, se fossem socas das senhoras, ou de duas orelhas se fossem para os homens. Estas ferragens não só impediam as escorregadelas como minimizavam o desgaste rápido do pau. As solas velhas de uns sapatos serviam para a parte superior. Lembro os dois sapateiros, tio Carlos e suas “candongas” e tio João, mais aprumado, já de outra geração. Recordo, também, o Fernando cigano e sua esposa, habilidosos na produção de cestas de verga. A verga tinha tratamento específico: era amolecida em água, depois era descascada e, finalmente, passada pela chama, tudo enquanto estivesse verde, para diminuir o risco de ruptura.

Tínhamos dois excelentes carpinteiros, o tio Hermenegildo e o Rafael, que não só eram peritos na construção de carros de bois, engarelas, caniços, arados, jugos, trasgas como, também, eram capazes de pôr telhados.

Para trabalhar o ferro, as tarefas eram entregues ao tio Ramos na forje de cima e ao "Doutor Carroucho” na da fraga grande do Prado. Os foles gigantes deixavam a miudagem boquiaberta, sobretudo se os via em funcionamento. Sacas e sacas de carvão, feito de cepos de urze e trazidos do Cabeço Cercado e dos Montes, eram despejados na grande pia de cantaria rija, azulada, onde o fole chegava com seu bico de assoprar para acender as brasas e trabalhar “bater” o ferro. O som propagava-se pelo bairro todo, enquanto as fagulhas deliciavam o olhar como se fosse fogo de artifício. Neste lugar, com o saber dos citados, eram apontados ferros de gaviar, pica-chão, ganchas, enxadões, ferragens para as rodas dos carros e respectivos pregos, enxadas, ponteiros, enfim, quase todo o material em ferro fundido.

Tecedeiras, da minha lembrança, tínhamos a tia Irene, com o seu tear de vai e vem, cruzando centenas de vezes, de um lado para o outro, os fios de lã ou de algodão e, mesmo, farrapos velhos recortados em peças sem serventia que seriam usados para fazer mantas de trapos.

Nestes tempos, em Rebordainhos, para além dos nomes de baptismo, quase toda a gente era identificada pela nomeada. O mais graduado, “Juiz”, estava uma certa noite na taberna de baixo, que o Álvaro tinha à sociedade com o tio Carlos “Chiote”, a presenciar um jogo de batota. A noite já ia alta quando um carro da GNR parou à porta. Alguns agentes cercaram o edifício enquanto outros entraram com rapidez e lançaram mãos ao dinheiro que permanecia sobre a mesa. Depois de ter identificados todos os presentes, um agente ouviu um barulhito por detrás de uma porta onde colocavam as pipas. Dirigiu-se lentamente para lá, abriu a porta e, com um foco de luz, apontou para um canto onde o tio Juiz se escondia. – Olha o vinhateiro!!! Disse o Guarda, enquanto este voltava cabisbaixo para junto dos outros, a fim de ser identificado.

O tio Juiz não julgava, nem o Doutor dava consultas, assim como o Engenheiro não assinava projectos, nem o coronel comandava nenhum Batalhão, mas eram pessoas que bem mereciam tais títulos de nobreza, pela dedicação respeitosa e humildade partilhada.

11 comentários:

Fátima Pereira Stocker disse...

Tonho

Obrigada por mais esta sacudidela nas nossas recordações e por te dares ao trabalho de prestar homenagem à nossa gente.

Ao ler sobre as tecedeiras, não sei porquê, lembrei-me da tua avó, a tia Francisca que não coheci.

Ilustrei o teu artigo com as fotografias do trabalho do Carlos Águeda que já tinha publicado. Logo que ele me envie outras dos trabalhos mais recentes, tratarei de as substituir ou, então, de publicar os trabalhos em artigo próprio. Logo verei.

Beijos

Olímpia disse...

Que rica memória!
Pelos vistos, os nossos "Antónios" (Fernandes e Braz) têm o dom de nos avivarem memórias. Abençoados sejam!
Obrigada António, por mais este texto, rico em lembranças e carinho.

Bjos

Olímpia

Augusta disse...

Tonho:
Não sabia que a Fátima tinha mais esta na manga, que é como quem diz, no computador. Se o soubesse, ter-te-ia felicitado pessoalmente, apesar das circunstâncias.
Mas olha, tu já sabes que adoro o que escreves, não sabes?
Mas, tal como a Fátima, além da tua avó, também me lembrei da tia Perpétua que, se não me engano, também foi tecedeira. Lembrei-me ainda do meu tio Fernando como ferreiro. Outros se lembrarão de mais e, seria bom que nos dissessem caso tal aconteça.
Beijos

Céu disse...

Antóno

Que Deus te conserve essa incrível memória! Adorei todos os teus textos, mais este reavivando as nossas memórias com aquelas personagens tão características que passaram pela nossa aldeia, está demais! Sabes que já não me lembrava do "Rádio"? Ele era tão engraçado!
Esta é uma honrosa homenagem a todos eles e só uma pessoa com a tua sensibilidade o saberia fezer. Os meus PARABÉNS.
Beijinhos
Céu

antonio disse...

Muito obrigado pelos vossos sempre amáveis comentários...beijos para todas; António Brás Pereira

Anónimo disse...

sem pé nem jeito

toda a gente se lemmbra de isso.

Fátima Pereira Stocker disse...

Anónimo

Vai-me desculpar, mas sem pé nem jeito é o comentário que acabou de fazer.

Anónimo disse...
Este comentário foi removido por um gestor do blogue.
Olímpia disse...

Sr. Anónimo:
Fique lúcido e veja-se ao espelho.
Mas que mau feitio!...
Será sempre bem vindo, mas com comentários construtivos.

Cumprimentos

Olímpia

Fátima Pereira Stocker disse...

Nota de edição

Todas as famílias têm uma ovelha negra. Rebordaínhos não é excepção e essa criatura, de vez em quando, vem comentar aqui - só para semear a discórdia. Não sei o motivo de tanto rancor e, francamente, não quero saber! As criaturas vis não me interessam.

Do que eu quero saber é de dar voz à nossa terra e à boa gente que a fez e lhe deu bom nome.

Tenho deixado publicados todos os comentários que essa pessoa tem escrito, correndo o risco de ver ofendidos os autores que, generosamente, colaboram connosco. Fi-lo em nome da liberdade de opinião, pois todos temos o direito de gostar ou detestar.

Do que não temos direito é de ofender! É por esse motivo que, aqui, deixo declarado que apaguei um comentário rancoroso desse tal anónimo e apagarei todos quantos sejam do mesmo teor.

O tal anónimo fará um favor a si próprio e à Humanidade se for pastar grilos.

Anónimo disse...

sem qualquer sombra de insulto, não é verdade que elimine todos os comentários ofensivos. apaga os que num le agrdão