Sim, as malhas eram a grande celebração das colheitas, mas muito suor, muita poeira, muita mosca, muita dor de quadris. A verdadeira festa da serra, a celebração ritual da abundância era mesmo o mata-porco.
Por algum motivo os nossos remotos bisavós tinham esculpido em granito, no pino da serra, no sítio a que ainda hoje chamamos a Fraga do Berrão, uma grosseira representação em granito do porco bísaro, que os de Parada nos roubaram à falsa fé. Esse, o bísaro, era tão natural dessas serras quanto os seus serranos. E estes deviam-lhe a subsistência durante as grandes invernias, quando a terra se amortalhava e o temporal empecia as caçadas e a recolecção dos frutos da terra. Ainda não se esmiuçou bem a origem etimológica de larego, mas desconfio que tem a ver com lar: o sustento do lar, o conforto do lar, as delícias de Sardanapalo à disposição do lar dos pobres. Diziam os entendidos que cada parte do reco tinha o seu sabor peculiar, o que dava origem a um sem número de pitéus diferentes e todos de excelência. Quem não recorda o perfume inebriante de um bom naco de lombo em vinha-de-alhos a rechinar sobre as brasas de carvalho, nas noites de invernia, enquanto se seroava e o vento zoava lá fora no arvoredo? E aqueles mimos inexcedíveis do salpicão, do presunto, do pisperno cozido ou assado no forno e, menos convencional mas não menos sápido, do petisco da costela seca no sal e cozida com casulas? Ou ainda os rijões do redenho que se guardavam no pingue em panelas de barro para o tempo das ceifas? Não esquecendo toda aquela panóplia saída das mãos milagreiras e dos saberes da dona de casa e que constelava o céu de qualquer cozinha montesina: as alheiras, as chouriças, os chouriços doces, os chouriços azedos, o palaio, o cagateiro, o butelo, os chavianos…

Foi todo este entorno cultural que deu origem aos ditos: pelo Santo André, agarra o porco pelo pé. E ainda: pelo Santo André quem não mata porco mata a mulher. Não, o rifão não é tão uxoricida como parece à primeira vista; apenas significa que quem não mata porco mata a mulher do dito, ou seja, a porca; ou, vá lá, numa leitura mais lata, mata a mulher à míngua, porque, em casa sem mata-porco entra a fome pela certa.
O tempo das matanças era no pino do inverno, quando nas lareiras os imensos cavacos de carvalho ou castanho se desfaziam em brasido resplandecente e as geadas curavam as carnes do cevado imolado, juntamente com o fumo da lareira, ambos coados pela telha vã das cozinhas, sem recurso ao frigorífico (que aliás nem existia). Já repararam que, desde que a civilização e os requisitos do conforto forraram as cozinhas, impedindo a entrada das geadas e a circulação livre do fumo, e desde que insecto malvado matou os negrilhos com cujas folhas se apuravam as carnes do cevado nas suas últimas semanas de vida, o fumeiro já não é bem, bem a mesma coisa?!
Ah! aquelas manhãs em que pairavam no ar farripas de neblina, a que se misturava o fumo das lareiras acesas desde a manhã e a fumaça da palha queimada a chamuscar os bichos imolados!... Por essa altura já fazia frio, os trabalhos mais prementes do campo haviam cessado e sobrava todo o tempo do mundo para o convívio e uma boa cavaqueira.
Logo à pormanhã, os matadores iam-se ajuntando com seus vagares para o mata-bicho: umas lascas de trigo com uns figos secos e umas nozes, tudo empurrado por uns tragos de aguardente. O matador aparecia para pontificar ao ritual, com a longa faca bem afiada embrulhada em toalha de linho, como instrumento litúrgico consagrado a este acto e, por isso, preservado dos rasteiros usos culinários. Como quase sempre se tratava de alimárias a rondar as dez arrobas, a primeira grande aventura residia em convencer o bicho a deixar-se agarrar. Mas como bichos que eram, privados da vianda nas vinte e quatro horas anteriores para limpeza dos intestinos, dizia-lhes o instinto que não era para coisa boa que aqueles forasteiros lhe invadiam a loja, em vez da dona com a vianda. E era o cabo dos trabalhões para convencer o bicho a deixar-se atar ao banco onde iria ser imolado.
Passo em branco a parte mais cruenta do acto, não vá algum elemento mais zelota da ASAE vir meter o nariz inquisitorial na última das matanças que porventura ainda se realize em Rebordainhos para lhe aplicar a coima e a subsequente proibição definitiva. Para efeitos práticos e politicamente correctos, aqui se deixa exarado que as matanças acabaram definitivamente, são apenas recordações medievais.
Hoje, o que mais densamente me povoa a memória é toda uma sinfonia dos odores fortes desses tempos de invernia em que se faziam as matanças. O cheiro da terra fecundada pelas primeiras chuvadas, o aroma forte da folhagem de carvalhos e castanheiros a decompor-se por touças e soutos ou a curtir nas ruas da aldeia, o aroma difuso dos cogumelos de toda a espécie, ou roquelhos como então se dizia: as rocas ou freirinhas, os míscaros, as carneiras, os tortulhos, as mozinhas, as repolgas, as línguas de vaca… eu sei lá. O incenso das lareiras onde ardem as achas de carvalho de mistura com os perfumes do que fervia nos potes de ferro. A todos estes odores que pairavam no ar, vinham misturar-se os cheiros violentos e desencontrados que falavam das matanças, desde o acre dos fachocos de palha para a chamusca, ao esturro dos pêlos queimados e da pele estonada do bicho. Não havia Chanel que se lhe comparasse, porque tudo tinha um cheiro forte de vida intensa.
Imolado o animal entrava-se na fase das abluções. Como a água era colhida, depois de se partir o gelo, no tanque onde a cria ia beber, era uma tortura digna da Santa Inquisição apanhar com aquela água gélida nas nozes dos dedos, enquanto com um áspero calhau de granito ou um caco de telha se procedia à raspagem generalizada do courame. Em seguida, meia dúzia de navalhas peliqueiras aplicavam-se a barbeá-lo: havia os generalistas, que raspavam a parte mais fácil do lombo e da barriga, e os especialistas que se dedicavam com desvelo de artistas ao pormenor das orelhas, da focinheira e dos chispes. E o defunto ficava escanhoado que nem acabadinho de sair das mãos do Armindo da Eira, nosso barbeiro oficial. Limpinho que até o Sr. Bispo lhe podia pegar ao colo.

Por essa altura já um corregidoso lhe tinha sacado das patas ainda a ferver os dedais para os introduzir no bolso distraído da jaqueta que lhe estivesse mais à mão, e já os garotos rondavam para se assenhorearem do rabo do bicho, petisco que por tradição lhes competia para assarem na brasa. Com o animal de barriga voltada para o céu, as patas seguradas por quatro acólitos, o matador, como mais entendido em cirurgia, traçava-lhe na barriga golpe preciso em forma de barcaça, para depois sacar a barbela, condimento imprescindível para as alheiras. Retiradas as banhas, condenava-se no ar gélido da manhã, o cheiro enjoativo das entranhas ainda fumegantes. Havia que extraí-las com o máximo rigor, não fosse a vesícula rebentar e inutilizar o fígado, ou gesto mais atabalhoado perfurar os intestinos destinados aos enchidos: despejavam-se cuidadosamente para um grande cesto de verga forrado com panos de estopa e sustido por mulher vigorosa. Aqui se iniciava a mais dura de todas as tarefas ligadas à

matança: quatro ou cinco mulheres valentes assumiam a responsabilidade de transportar essa tripalhada até à ribeira, armadas de rocas − os paus de virar tripas − para as lavarem antes que a aragem as congelasse. As pobrezitas regressavam só lá para a hora do jantar, embiocadas nos xailes, enregeladas, de pingo no nariz, tentando aquecer as mãos engaranhadas debaixo dos sovacos. Eram recebidas como heroínas e socorridas na cozinha com o suplemento calórico duma malga de café a ferver temperada com bagaceira. E eram mesmo umas heroínas, essas mulheres de então, que pariam os filhos com a naturalidade das matriarcas bíblicas e batalhavam nos campos com o denodo de homens!
Era nesta fase final, depois de limpo e lavado com vinho o cavername interior do animal, que os homens se deixavam acometer pelo pecadilho das matanças: subtrair um chichozito do lombo para ir assá-lo numas brasas sorrateiras das vizinhanças. E os donos já sabiam que não valia a pena proibir ou vigiar para que a fatalidade não acontecesse, porque quanto mais apertada fosse a vigilância mais pesado era o tributo. Limitavam-se por isso a suplicar: eh! rapazes, poupai-me, que a casa é pobre!... Ainda recordo a última destas façanhas a que assisti. Minha Madrinha, com a fera catadura que lhe era conhecida e o ar autoritário de quem não admitia ser contrariada, numa tarefa que só a homens competia, proibiu terminantemente que lhe tocassem nos lombos do animal, extraordinário bicho, aliás! E postou-se com severo olhar de Argos a supervisionar todas as operações. Olha o que tu foste fazer! O tio Eurico, que comandava as operações de abertura do bicho, riu-se por baixo dos bigodes (espera aí que já levas!). Deu golpe fundo nas carnes do lombo mas deixou o tassalho preso por uma febra. Quando o animal já estava a ser içado para ficar dependurado na trave com o tamoeiro e minha madrinha dava por findas as tarefas de supervisão, o tio Eurico, como que dando um sacolejão mais forte para endireitar a carcaça, à sorrelfa sacou o chicho predestinado e enfiou-o no bolso da jaqueta que lhe estava encostada, a do tio Hermínio, outro cidadão exímio em pregar uma boa partida. P’ra riba dum quilo!
Estes meus amigos que me perdoem revelar estas atraganices de que nem eles já se lembram, mas aqui deixo o meu muito obrigado por me terem convidado para a função da assadura, em casa do tio Adriano, ali ao lado. O chichinho tostadinho na brasa, além do perfume do lombo assado tinha também aquele sabor peculiar das coisas proibidas. E a Madrinha, lá do céu, bem sabe que nem sequer passou mais fome nesse ano.
Entretanto à roda dos potes, as mulheres davam a última demão nos preparativos do ágape. E era com gestos de ritual muito antigo que, logo de início, o que não estava nos hábitos do quotidiano, se abria a cerimónia com a bênção da mesa. Rompiam-se as hostilidades com um arroz acolitado por presunto e salpicão cozidos: este era o prato ritual de celebração da abundância, na intenção implícita de lembrar que, Deus fosse louvado, não se haviam passado carestias na roda do ano e os mimos do ano anterior haviam perdurado até ao presente. A seguir, o prato simbólico de movimento inverso, religando o presente com o passado: o verde cozido do bicho recém-imolado, acompanhado de batatas cozidas. Vinha depois o peru alourado no forno, aconchegado em couves guisadas. E, mais que do peru, falam-me à memória essas couves guisadas, como nunca mais comi na vida.
O ágape prolongava-se por horas, porque, além de abundante, os afazeres não apertavam e, à medida que as libações se sucediam, vinham à baila façanhas antigas que de ano para ano se repetiam porque haviam passado já à memoria colectiva, que é como quem diz, faziam parte do património histórico da comunidade: ele era a história daquele bicho que, com uma focinhada nas partes, virara de cangalhas o homem que tentava laçar-lhe o focinho; ele era aqueloutro que, abandonado no banco como morto acordava com o pêlo incendiado e desatava a correr como alma penada pelo nabal, ou ainda o de quinze arrobas que, ao ser dependurado, partia o chambaril e esmagava o focinho no chão; e mais um que, procurado na loja, andava ainda a foçar no nabal… E assim, no conforto da amizade e do vinho, as horas deslizavam cheias e serenas até que alguém se lembrava da cria por acomodar ou de umas águas a tornar… O dono da casa designava então um mais industriado na arte para dar graças e seguia-se uma longa teoria de rezas pelas obrigações da casa, pelos presentes, pelos ausentes… E, a rematar, num gesto de cerimonial antigo sempre repetido, os varões presentes, ao arrastar das cadeiras, desenhavam com a mão direita sobre a mesa o gesto lento de quem colhe uma flor invisível ou recolhe uma bênção. Ainda hoje me traz intrigado tal gesto que parecia brotar da fundura dos tempos em que os patriarcas se sentavam à roda da fogueira nas tendas armadas no deserto e chegavam à fala com Iavé.

Era assim há cinquenta ou sessenta anos! E nós, pobres, éramos felizes. E ricos sem o sabermos!...