sábado, 3 de dezembro de 2011

FUTEBOL E UMA CÔDEA

Não sei bem quando terá começado o futebol em Rebordainhos nem onde seria o seu primeiro estádio. Aventam algumas crónicas que o início esteve nos irmãos Camilos, recentemente chegados do Brasil, especialmente no Cesário que, apesar de coxo, era um ás no toque da redondinha. E tal era a sua paixão pela bola que, ao domingo, fazia léguas só para ir ouvir um relato onde houvesse uma telefonia.

Não sei, mas, em 1950, quando peguei de estaca na nossa terra, no Rebordainhos de antes da estrada, antes da luz eléctrica, antes do telefone, vivia-se como no tempo dos tetravós e podia-se filmar uma cena do século dezoito sem qualquer alteração no cenário, já por ali se praticava futebol. Como tal desporto subiu à Serra não sabemos e aqui fica como sugestão de investigação histórica para a Fátima Stocker.

Nesse ditoso ano, o campo da bola (assim é que se chamava!) ficava àquela curva da estrada para Rossas donde se aparta o caminho para a Covinha e onde, do seu pequeno nicho, hoje, a Senhora dos Caminhos abençoa quem passa. Mas pouco tempo durou o estádio de graça, porque o dono precisou da terra para amanho e no ano a seguir já ali crescia o centeio. Mudaram-se os desportistas para terreno mais pobre e quase plano (quase plano, porque um hectare de terreno totalmente plano em Rebordainhos suponho que não se encontra) lá para cima, perto do talefe a que chamamos Castelo, propriedade, suponho, do Teodoro da tia Felicíssima (Fecisma para o pessoal), que por essa altura partia para o Brasil.

Mas também este não tardou a ser requisitado pelo seu legítimo proprietário.
Para o team não andar sempre em bolandas, ao sabor dos quereres dos proprietários dos estádios, alguém teve a ciclópica ideia de talhar um campo onde não houvesse dono a exigir despejo, que é como quem diz, no baldio. E o baldio escolhido foi o cume do Alto da Cabeça, farto em mato, em luras de coelhos e raposas. Ah! mocidade de uma cana! Por essa altura ainda não havia em Rebordainhos tractores e de caterpillars não se sonhava ainda, mas havia mocidade basta como cabeçudos na poça da Fonte Grande e neles abundava a genica dos velhos lusitanos que chatearam os Romanos até dizer bonda. À força de enxadas, enxadões, picaretas, pás, e carrinhos de mão, meteu-se mãos à obra de aplainar o cocuruto do monte, arrastando terra para norte, carregando terra para sul, até que se obteve um rectângulo quase plano. E verificou-se que era quase plano quando, mais tarde, os atletas perceberam que o esférico, animado de vontade própria, sem que ninguém o impelisse, desatava a correr na direcção da baliza que ficava para o lado da Senhora da Serra. Pormenor de somenos importância, aliás. Cortaram-se seis carvalheiras com que se armaram as balizas, um pouco (bastante, para sermos francos) mais pequenas do que mandam as leis da FIFA, porque não havia carvalhas que conjugassem o perímetro com o comprimento requerido. Não seria propriamente o Estádio do Dragão, mas ia dando para os gastos, apesar de algumas (aliás poucas e pequenas) limitações: o chão era pobre e tinha mais pedriça do que terra, e essa pouca terra era daquela poeira miudinha que se entranhava nos corpos suados e os deixava mais mascarrados do que se foram nascidos na Guiné. Com as chuvas da Primavera, o mato miúdo teimavam em rebentar onde menos se pisava como se aquilo não fosse um campo de futebol, mas apenas matagal adiado. Apareceu ainda um outro problemazito, um pouco mais grave: quando algum jogador menos destro aliviava alto e torto, a bola perdia-se no mato circunstante e havia que interromper o desafio por cinco, ou dez, os minutos que calhava ‒ as duas equipas em campo cessavam as hostilidades e irmanavam-se na busca do esférico que quase sempre tinha artes de se ir alapardar ao toro de giesta farfalhuda, mais escondida que lebre assustadiça.

Fora isso era um campo magnífico, óptimo para os pulmões com os seus mil e cem metros de altitude e com vistas panorâmicas de 360º: a norte campeava o maciço da Senhora da Serra e, ao fundo, branquejavam os cumes nevados da Sanábria, já em terras de Espanha; para oriente corria o planalto de Miranda, a sul a mancha esfumada em azul da serra de Bornes e, a poente, o dorso mosqueado de campos de centeio e giestais da Serra dos Pereiros. Mas, o que importava, acima de tudo, é que o povo tinha o seu estádio e não o devia a ninguém. É verdade que era um tantinho longe da aldeia, mas conferia-lhe a vantagem de os atletas chegarem ao campo com o aquecimento já feito. Também não havia lugar para estacionamento, o que não era grave, pois, por esses tempos, não havia qualquer carro na aldeia. Prescindia-se de balneários porque cada um jogava equipado com o que tinha mais à mão: normalmente camisa de riscado, calças de cotim e socos de brocha larga ou botas brochadas a cravinho. E, para qualquer necessidade fisiológica mais urgente, o mato espesso fornecia resguardo cabonde à intimidade de cada qual.

Isto é o que toda a gente desse tempo sabe e rezam as crónicas. Agora o que não se sabe oficialmente é que fomos nós, a ganapada da escola, quem inaugurou realmente o campo. Num dia de verão, por altura das segadas, metemos pés à façanha. Muito a propósito, o tio Jaime tinha-nos trazido bola de borracha nova da feira dos doze em Bragança, e… ala que se faz tarde.

Pusemo-nos em cuecas, quem as tinha, quem não as tinha arregaçou os canudos das pantalonas para acautelar rasgão inoportuno nas joelheiras, e… jogou-se, jogou-se até vir a mulher da fava-rica. Já a tarde declinava quando demos por finda a empresa da inauguração. Só então nos demos conta de que não tínhamos acautelado as provisões! E de repente fui acometido de uma fome tão premente, tão canina que me tirou a força das canetas. Lá me arrastei prelo carreirão abaixo até àquela mina que ainda hoje rega os batatais da Airoá. Tentei enganar o estômago embutindo da água fresquinha até não poder mais, o que só piorou a situação, pois a água da serra tem mais poderes digestivos que a de Carvalhelhos. Já maldizia a minha sorte e pela Airoá fora ia-me debatendo com o dilema: aguentar até à Portela ou ir pirongar um carolo de centeio à minha tia Emília do Outeiro (onde tantas vezes arranchava com os meus primos e onde se comiam os melhores cuscuz da terra). Empurrado pela necessidade já tinha mandado a vergonha às urtigas e subia para a eira do Outeiro, cabisbaixo, a formular mentalmente a minha pedinchice, quando o desânimo me enfiou as mãos nos bolsos. Palpei um vulto: era uma côdea de centeio que para ali ficara esquecida há que vidas. Saquei-a, esperançado: santo Deus! Negra e rija que nem chifre de cabra velha! Mas se negra era a côdea, mais negra era a fome. À cautela trinquei um cibito, deixei-o amolecer na boca e… afinal tornava-se comestível… Esmoído com vagar, tornava-se adocicado… oh! melhor que trigo e nozes! Nunca pensei que uma côdea rija de centeio tivesse tal sabor.
Moendo devagarinho, passei à frente da porta da tia Emília e a côdea velha e relha lá deu para entreter a fome até ao alto da Portela. E juro que nunca em dias da minha vida comi tão sublime manjar. É verdade!

19 comentários:

Fátima Pereira Stocker disse...

Nota de edição

A fotografia que ilustra o texto do Tonho foi-me enviada, há já muito tempo, pelo Tonho do tio Arnaldo. Não me lembro se a usara já, mas se o não fiz, veio agora a propósito. Cá está o velho campo e a prova da altitude - acima da névoa.

Não é bem a equipa da estreia, ou melhor, alguns serão, mas já noutras idades e já com direito a equipamento!

ao Tonho Brás, o meu bem-haja, embora lhe não tenha pedido licença prévia.

Fátima Pereira Stocker disse...

Tonho

Já te disse que a tua história me soube melhor a mim do que a côdea a ti. Porque "vi" um campo da bola onde tenho saudades de subir e porque contas façanhas de um tempo em que todos se juntavam para fazer o que fosse preciso - um tempo que só permanece na nossa memória.

Bem-hajas

Isamar disse...

Estes textos são tão saboreados por mim quanto a côdea de centeio o foi pelo autor.Que nunca as mãos lhe doam, Tonho, permita-me que o trate assim, e que vá convertendo em texto as suas tão saborosas memórias.

Tenho muito gosto em visitar este blogue.

Um abraço fraterno

António Brás Pereira disse...

Bem-haja quem escreve com tanta lucidez,e permonorizadamente, as peripécias futbolísticas de há seis décadas... onde a simplicidade e o carinho, associados às dificuldades sociais existentes neste tempo, removem os corações dos mais revoltados, ou simplesmente amuados... uma delícia nostálgicamente transmitida,pela perícia da pêna de um Sr. cuja escritura é um regalo para os leitores.
Quanto aos locais improvisados para campos de futebol, foram numerosos e a luta constante para nos mantermos, até que foi descoberto, com muito suor, o da cabeça... lembro-me do do Lombo da Igreja, um lameiro na Fonte da vila, da chve dos pais da tia Estefânia, eira da tia Teresa e terra do tio António, Cabecinha Outeiro e Portela. Lembro-me tambem da tal bola de borraxa, só não sabia quem a tinha comprado. Que bem me fizeram tão lindas recordações!!! Penso que o autor merecia estar na foto, mas, como na que está não foi tirada na cabeça... compreendo.~Tentem identificar os jogadores. É bastante complicado, visto ser uma selecção, onde só estamos 5 ou seis de Rebordainhos. Um abraço muito grande para e saudoso.

Idanhense sonhadora disse...

Belo texto , bela narrativa !!!Aí está toda a garra de que tanto precisados andamos...Será que a vamos reencontrar? Parabéns ao autor da façanha ,pois para além de tudo o mais ,provou em "prova provada " que a fome é negra ....
Um abraço
Quina

Ribordayn disse...

A fome é negra e muito cruel. Que o digam os mais velhos... mas o texto do António Fernandes é divino e trouxe-nos à memória tempos bem piores do que os das actuais crises mundiais, mas que não só não matavam os pobres mortais, mas ainda os deixavam bem mais fortes e os tornavam mais e mais solidários.
Vou arriscar um palpite nos possíveis jogadores rebordainhenses: Tonho do tio Arnaldo, Zé Maria do tio César, Armindo foguete e Tarcísio Martins. Tem mais uma fisionomia que me não é desconhecida, mas não consigo atinar a quem pertence.
Abraços e que todos tenhamos um FELIZ NATAL.

Fátima Amaral disse...

Soube-me tão bem ler este texto,como ao António a velha côdea de pão.

Quer a escrita com seus termos tão transmontanos,como as bolandas da mudança do compo da bola tão igual ao que se passava na minha terra,uma luta constante dos rapazes,para terem onde jogar,até que juntaram dinheiro e por 50 contos compraram nos idos anos setenta o que ainda hoje é o campo da bola.

Bem haja pela partilha.

Fátima Pereira Stocker disse...

Tonho [Brás]

Obrigada, e tu sabes bem porquê.

De facto, enviaste-me outra fotografia (já publicada na secção "Rostos") onde está o Tonho, mas como o grande assunto era o campo, achei por bem publicar esta, na esperança de me não levares a mal por não ter pedido autorização.

Beijos

Fátima Pereira Stocker disse...

Ribordayn

Pois, para além daqueles que identificaste, eu só reconheço mais o Albino. Parece-me ele, mas se não for, é um dos irmãos dele, os Caminhas do Outeiro.

Beijos

António Brás Pereira disse...

Fátima, não tens que me pedir autorização para publicares o que é do interesse dos nossos conterrâneos; nem eu levar a mal. Pelo contrário, é um prazer, e sinceramente um grande desejo, voltar a ver numerosos e variados comentários, que de forma simbólica, é o reconhecimento grato pelos teus esforços...
Quanto á foto, eu sei que é difícil reconhecer os atletas da época, sobretudo os que são de Rossas e de outras Aldeias... contudo, para álem dos já identificados, excepto os do Outeiro, que não há ninguem. Há sim um que toda a gente pode identificar. Quem é ele?
E se lhes disser que o campo, não é o da Cabeça de Rebordainhos!? Vejam uma motocicleta no fundo... acham que se dirigia para onde?
Fica o desafio. Grande abraço saudoso(desta vez bem escrito) para todos

Olímpia disse...

Há já algum tempo que não passava por aqui e, em boa hora o fiz.
Mais uma vez, o António nos encantou com os seus escritos, a Fátima continua a arranjar tempo e "assunto" para aqui publicar e, mais ainda, finalmente o António Brás volta a comentar.
A todos eles, a minha admiração e os meus agradecimentos.

Bjos

Olímpia

Olímpia disse...

Para além do Armindo, e alguém do Outeiro, não consigo identificar mais ninguém. Se calhar, o campo da bola é em Rossas!...

Olímpia

Céu disse...

Tonho

Ainda bem que voltaste a escrever as tuas memórias para as partilhares conosco. Elas são sempre pedaços e vivencias semelhantes às nossas. Certo dia, há quase tantos anos quantos eu já vivi, aconteceu que encontrei uma côdea tão rija quanto a fome que eu tinha. A diferença é que a pus a amolecer num caneco com àgua. Foi uma felicidade!!!!
Um beijinho e um Santo Natal para vós.
Céu

Anónimo disse...

Como fui o responsável por esta salgalhada, também tenho direito a botar uns bitaites:
Em pé e da esquerda para a direita:
1
2 Guerra, de Rossas
3 Ferreira
4
5 Sortes
6 irmão do Tonho Brás.

Primeira fila:
2 Tonho Brás
3 Armindo.

Abraços para todos

Tonho da Tia Lídia

antonio disse...

O António tem outros dons escondidos, para àlem de escritor, o da observação... identificou o meu irmão, Carlos. Quanto ao de Rossas, não sei se o seu apelido era Guerra... o nome creio ser João Manuel, mais conhecido por " Ferro".O 3 é o Tarcísio, o 5 tambem é de Rossas, e não o Sortes. Quanto ao campo a Olímpia acertou em cheio.Tchau

Fátima Pereira Stocker disse...

Tonho [Braz]

Deixaste-me KO, como no boxe!

Agora as coisas perderam sentido e fiquei com a sensação de ter maculado o belíssimo texto do Tonho.

Isto não serve de desculpa mas, antes de publicar, perguntei às minhas irmãs se tinham fotografias do campo da bola. Só depois de me terem dito que não é que fui procurar entre aquelas que, ao longo dos anos, as pessoas enviaram para o blog. Achei esta tua e pareceu-me o nosso campo. Asneira grossa, pelos vistos. Resta-me pedir-te desculpa a ti e ao Tonho da tia Lídia.

Beijos

antonio disse...

Fátima: sou eu que peço desculpa por mais uma vez, " meter o pé na poça", involuntáriamente como é óbvio. Não existem muitas fotos da equipa desse tempo tiradas no campo da cabeça, pela simples razão que ficava longe da Aldeia, e, como tal, equipavamo-nos na casa da junta do Outeiro... poucos se aventuravam a levar máquina fotográfica, por não haver onde a guardar, a não ser se fosse um espetador.
Na minha opinião tambem não altera nada ao significado do belíssimo texto; contudo, ainda vou procurar nos meus albums, pode aparecer alguma... sinto-me mal na foto... beijos

Fátima Pereira Stocker disse...

Tonho [Braz]

Agora, sim!Fizeste o favor de me enviar a fotografia certa e já substituí a aquela que, erradamente, colocara inicialmente.

Bem-hajas por me possibilitares a correcção

Beijos

Chanesco disse...

Fátima

Alterando as designações toponímicas, esta história, contada como o Antonio Fernandes já nos habituou, bem se poderia ter passado na minha terra.
Era o tempo em que o campo(tinhamos alguma predileção por eiras) só durava enquanto o dono do terreno não precisasse dele. E lá era necessário andar de vez em quando com os barrotes das balizas às costas. E nos dias de calor, depois de uma correrias que tornavam a sede negra, qualquer poça de água, mesmo com bezouros e alfaiates, servia para a matar. Se passasse no teste do cuspo, era sorver até ela morrer.

Um abraço para Rebordainhos