Hesitei no título a dar a este
artigo: aforismo ou apotegma? Na verdade, são quase a mesma coisa, pois, se um
aforismo é uma frase bem pensada, judiciosa, um apotegma é a mesma coisa, embora
dita por pessoa ilustre.
Ninguém duvidará de mim se
afirmar que o Sr. Alfredo é das pessoas mais notáveis de Rebordaínhos e foi
dele que escutei a seguinte máxima:
“Dantes havia-as, mas o padre esconjurou-as!”
Conversávamos sobre bruxas e o
Sr. Alfredo saiu-se com aquela frase, que é lapidar, pela síntese perfeita que
faz da história religiosa do antes e do depois do cristianismo.
Não fosse eu ter compreendido mal,
ainda lhe perguntei:
Qual foi o padre que fez isso?
Não sei dizer quem foi, não é da minha lembrança.
Mas era da lembrança dos seus pais, ou dos seus avós?
Não! Não era da lembrança deles!
Foi há muito tempo, não sei dizer há quanto, mas foi há muito. Olhe, foi há
tanto tempo, que não é da lembrança de ninguém!
Não vou
discorrer sobre bruxas porque é assunto de que nada sei. Que me recorde (embora
haja quem discorde de mim), em Rebordaínhos só eram referidas no “diz que”: “diz
que as bruxas queimam os ramos bentos nos caminhos” (embora ninguém me saiba
dizer para quê), “diz que fulano ouviu campainhas no cruzamento do sítio tal, e
essas campainhas eram as bruxas”, e por aí fora. Não consta que tenham feito
mal nenhum a ninguém, muito menos cavalgado os ares sobre vassouras. Em Rebordaínhos,
também não acreditamos em “mau-olhado” nem em palermices semelhantes.
Assumamos, por
facilidade, que “bruxas” são entidades divinas pré-cristãs cuja acção, de tão
enraizada na crença popular, escapou à completa assimilação pelo cristianismo.
Creio que não estou a surpreender ninguém se disser que o Cristianismo chamou a
si – ao seu calendário e aos atributos dos seus santos – grande parte das
competências das divindades pagãs veneradas por essa Europa fora, mormente as
do Império Romano (que, por sua vez, adoptara, também, as deidades dos povos
conquistados ou permitia localmente o seu culto). Essa assimilação facilitou as
conversões à nova religião em que, embora se prestasse culto a um Deus único, se perpetuavam, na prática, os rituais de adoração das divindades pagãs. Com o correr
do tempo perdeu-se o motivo primordial do ritual, mas manteve-se o ritual,
embora catecismo algum consiga explicar a razão que nos leva a erguer cruzes, ou
a erigir nichos de alminhas, à chegada aos cruzamentos, local por excelência
para o “aparecimento das bruxas” ou para a queima dos ramos bentos. A História
diz-nos, no entanto, que os povos pré-romanos assinalavam os cruzamentos com
montículos de pedras, desse modo indicando aos caminhantes (e às divindades?)
as direcções principais; diz-nos também que os romanos se apropriaram dessa prática
e que passaram a dedicar esses montículos a Mercúrio, o mensageiro dos deuses. Nós
erguemos cruzes sobre eles. Aos poucos, os rituais antigos foram sendo
endemoninhados e revestidos de características tão malignas que se tornou pecaminoso
associar-se à sua prática. A crença pagã escondia-se e a palavra “bruxa”, cuja
origem se perde no tempo, ia ganhando contornos de tragédia, talvez porque
associada a Hécate, a deusa romana que presidia à magia e às encruzilhadas,
lugar onde lhe era levantada uma estátua que tinha a forma de uma mulher com três
corpos ou com três cabeças. Será esta a filiação das nossas Alminhas ou das
Senhoras dos Caminhos?
E é agora que
voltamos à frase do Sr. Alfredo: as bruxas, “dantes, havia-as, mas o padre
esconjurou-as”. Aquele “dantes” representa todo o passado politeísta, pagão, e o padre,
por metonímia, simboliza o lento processo de cristianização. Na verdade, não é
possível afirmar-se quando foi que as bruxas acabaram, mas o verbo escolhido
pelo Sr. Alfredo não deixa margem para dúvidas sobre o modo como aconteceu: o
esconjuro, ou acto de expulsar amaldiçoando.
Como se comprova, porque
proferida por pessoa sábia, a frase do Sr. Alfredo é um apotegma. Eu saio
sempre mais rica das conversas que mantenho com ele. Que Deus lhe pague!
Roubei a fotografia deste artigo do Tonho da tia Lídia.
4 comentários:
Muito interessante o texto e eu também saio daqui mais rica pois nunca tinha ouvido semelhante palavra quanto mais saber-lhe o significado. Cresci ouvindo histórias de bruxas e de damas de pé de cabra.
Na minha infância, não tinhas tv nem rádio nem sequer luz electrica. Adormeciamos a ouvir contar histórias de bruxas e lobisomens que supostamente se passavam nas aldeias do norte. A propósito de bruxas, que se reuniam à Sexta Feira numa encruzilhada, contei no Sexta uma história que minha avó afirmava ser verdadeira, e que meu tio Zé Varandas, o mesmo que descrevi na história do Manel foi o protagonista. Se tiver curiosidade pode lê-la aqui
http://6feira.blogspot.pt/2011/05/sexta-feira-13.html
Um abraço e muito obrigada pela visita oa Sexta e pelo carinho com que comenta os meus escritos.
Bom fim de semana.
Pois é, mas também h+a quem diga:
"Não acredito em bruxas, mas que as há, há!!"
E tantas, tantas histórias que também nós ouvimos aos serões durante o inverno e que nos enchiam de medo! Depois, quando íamos para a cama, como não havia luz, fazíamos o caminho com os braços esticados para a frente. Assim, se encontrássemos alguma (algum) palpávamo-la primeiro!
Elvira
Obrigada pelas suas palavras. Assim que tiver um bocadinho mais de tempo livre, certamente lerei o artigo que me indicou.
Beijos
Augusta
Pois era! E o arrepio de alívio que subia pela espinha mal chegávamos a sítio seguro?
Bijos
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