Não lhe dês um
pássaro, ensina-o a caçar.
Por: FILINTO MARTINS
«Está o lascivo e doce
passarinho
Com o biquinho as penas
ordenando,
O verso sem medida, alegre e
brando,
Despedindo no rústico
raminho.
O cruel caçador, que do
caminho
Se vem calado e manso
desviando
Com pronta vista a seta
endireitando,
Lhe dá no estígio lago eterno
ninho.»
Luís de Camões
Dos tempos da minha meninice
recordo-me de grandes caçadores – o tio Moreno, espingarda debaixo do braço, um
cigarro no canto da boca e sua cadela perdigueira, perito na caça às perdizes… o
Zé Tiago que cedo foi para terras de Santa Maria… o tio Manuel Frade, com faro
apurado para coelhos e lebres, com o furão escondido debaixo do casaco, não
fosse ele o regedor… meu pai que era o seu comparsa, quer na caça quer na
sueca, naqueles dias de névoa “como boca de lobo”, com um galgo que teve uma
morte infeliz… e tantos outros que caçavam mais no prato que no mato.
A caça era algo importante, ora para
satisfazer os desejos da carne e nada melhor que um produto biológico, ora para
matar o tempo. Hoje é um desporto para ricos, naquele tempo a finalidade era
bem outra.
Havia no entanto outros caçadores,
sem arma nem furão, mas com uma visão apurada e atenta ao voo dos pássaros para
os seus ninhos, onde as pequenas crias de bicos abertos estavam sujeitas à “ave
de rapina humana”.
Tempos que já lá vão, trabalhava-se
nos campos, à jeira e a seco, pois era bom poupar uns tostões para ir à feira
comprar umas botas, um reco …. Com frequência ouvia de meu pai uma história a
respeito dos “indefesos”, que lhe dava um prazer em repeti-la.
À hora do almoço que se levava par o campo, cada
um ia-se dispondo da melhor maneira, sacando do seu manjar, sacudindo as moscas,
que também elas apareciam sem serem chamadas.
«Destapámos o cesto de D. Esteban donde surdiu
um bodo grandioso, de presunto, anho, perdizes e outras viandas frias, que o
ouro de duas nobres garrafas de Rioja aquecia com um calor de sol andaluz.»
Eça de Queirós
-Ai, senhor Adriano! – exclamou o
Conicho.
- O que foi, homem? – Retorquiu meu
pai, pensando que se tinha esquecido de algo.
- A minha mulher não meteu os
passarinhos…
Da sua ementa fazia parte uma
omelete, com o possível recheio de uns passarinhos que ele teria surripiado a
uns pobres e indefesos. Que amargura! Enquanto cavava as batatas já ele
salivara que nem o cão de Pavlov… agora comia a omelete de “xixa” gorda e com o
pensamento bem distante as palavras saíram-lhe em surdina: “a minha mulher comeu-me os passarinhos”.
«No século XVIII, os monges de Belley, como
outrora os sacerdotes em Mênfis, guardavam em segredo os princípios da ciência
e o verdadeiro método de comer passarinhos.»
Lucien Tendret
Era precisamente nesta altura que a
ganapada, e não só, gostava de depenar as pobres avezinhas e satisfazer os
apetites, ora numa rica omelete, ora num arroz malandrinho. Que outros prazeres
havia? Muito poucos, pois as cerejas ainda verdes não atraíam homens, nem
gaios.
Se na Primavera e Verão o tempo
ainda ia passando, pois os trabalhos eram muitos e não havia muito para pensar,
o mesmo não sucedia no Inverno. A passarada ia para outras terras… apenas os
pardais, sempre desconfiados tentavam aqui e ali roubar os grãos de centeio das
galinhas.
«…os rouxinóis os fez Deus para cantarem e não para serem
cozinhados em plangana e comidos, dizendo ainda por cima os comensais, a
palitar os dentes, uns, que estavam bons, outros, que não prestavam…»
António F. de Castilho
No Inverno ouvia com frequência uma
outra história que meu pai muito gostava de relembrar. Eram vários os
trabalhadores sazonais e outros que no tempo da guerra civil de Espanha se
deslocavam para o nosso país. Ele assim narrava uma história passada à noite,
quando os patrões já estavam deitados:
“- Meu amo, as perdizes del monte têm rabo?
- Não.-
Respondia-lhe o amo.
- Esta, com
o que tem de gordo, até o tem depenado. Assar e pingar, desta meu amo não há-de
provar.
- Ó meu
amo, as perdizes del monte têm rabo?
- Não.
- Assar e
pingar desta meu amo não há-de provar.
- Ó meu
amo, eu me marcho…
- Ó mulher
vai ver o que tem o criado… ele está mesmo mal.
Não sendo eu espanhol, sabendo
distinguir um perdigoto dum sapo, o que não sucedia com o dito espanhol, tentei
ser um bom caçador de pardais, para ocupar os tempos de Inverno, tendo como
companhia o meu sobrinho Orlando.
Foi num desses dias de Inverno, que
do Outeiro nem o Prado se avistava, que fixei os pardais no quintal a comer os
grãos de centeio que minha mãe deitara às galinhas. Segredei para o meu
sobrinho, como o Pilatos me ensinara a descobrir os ninhos de melro, quando
andávamos com as vacas nas Bouças: “vamos ser caçadores sem espingarda nem furão”.
Lá nisso o meu companheiro boieiro era um ás, como era na arte de ensinar a “capar
grilos”.
- Vamos ser mais espertos que os
pardais, Orlando!
- Como?
Não havia tempo para explicações.
Arranjámos baraços que atámos de forma a obter uma corda que desse para puxar
de longe a porta do galinheiro, deixando-a entreaberta. Na entrada deitámos uns
grãos de centeio, como isco, e dentro bem mais. De longe, quietos, vigiávamos
os desconfiados que comiam o grão que ficou fora e depressa levantavam voo. Era
preciso ter paciência… olho atento, silêncio… apenas o barulho das pingas que
choravam das telhas. Até que enfim, acabou o grão fora, agora só dentro do
galinheiro. Alguns entravam e imediatamente saíam desconfiados, poisando na
rede que circundava o galinheiro. Como nada acontecia, voltam a encher o papo
lá dentro… agora eram mais que as moscas. Foi neste momento que o baraço foi
puxado e ficaram trancados dentro do mesmo. Era preciso entrar rapidamente e fechar
a porta para os caçar à unha. A luta dentro era desigual, porém ao fim de pouco
tempo já tinha em poder vários a que de imediato se apertava o pescoço, embora
com as “botas engraxadas” tinha valido a pena.
Agora era depenar, depenar… que
muito aborrecia a Lúcia com tanta pena por ali espalhada.
O Orlando aprendeu, mas não comeu… caçou,
depenou, destes ele não provou.