I
O Jorge conta-me a viagem ao contrário: S.
Sebastián – Victória – Burgos – Valladolid – Salamanca – Vilar Formoso. Era a
viagem de regresso de uma tentativa frustrada de dar o salto para França.
Voltava cabisbaixo, ele e os outros, arrenegando a má sorte e a irmandade
malina entre Salazar e Franco que, com as suas polícias, transformavam a
Península Ibérica num enorme campo de concentração enquanto condenavam as suas
gentes à desdita.
Em sentido literal, não se pode dizer que fugissem
da fome. A mesa era pobre, decerto, mas o caldo de couves não faltaria, mesmo
que nem sempre fosse adubado com um cibo de toucinho ou com uma colher de unto.
Faltaria o compango, mas não o pango. Fugiam da falta de horizontes e
da imoralidade instituída que os condenava à aceitação da miséria, imposta como valor supremo e virtude. Vivesse quem mandava com aquilo que deixava aos
outros para viverem! Fossem eles também para a guerra para onde estavam a
mandar os jovens em fornadas cada vez maiores e motivo último para o encerramento
das portas à emigração.
A saída do país só era possível com a colaboração
da família, pois era sobre ela que recaía o ónus do pagamento ao passador. Sete
contos de réis foi o combinado. O passador, já se pode dizer, era o Sr. Eliseu
dos Vales, pessoa honesta que só cobrava a viagem depois de as famílias terem
recebido notícias a informar da chegada a França. Daquela vez, porém, nada
lucrou.
Tudo decorrera normalmente até chegarem a S.
Sebastián, lugar em que se deveria proceder à troca de passador. No grupo, que
integrava vários rapazes, além do Jorge de Rebordaínhos ia mais um dos Vales e
outro de Lanção, isto só para falar de quem nos é mais próximo. Foram largados
e deram-lhes instruções para que esperassem até que chegasse o homem que iria
conduzi-los a França. Estavam, contudo, em terra estranha e o medo
embotava-lhes o raciocínio. Nunca se tinham afastado das suas terras mais do
que 20 ou 30 km
e agora viam-se ali, desamparados, sem saber o que fazer. Julgaram-se
abandonados e, porque a fome apertava, foram-se a saber de comer. Foi nessas
circunstâncias que o Jorge pousou os olhos na rapariga mais bonita que alguma
vez já viu. Era a neta de uma senhora bondosa que lhes ofereceu um cibito de
pão.
“Nunca esqueci aquela rapariga. Tinha uns olhos mais lindos que…!” Sem palavras
para descrever tais olhos, o Jorge completa a frase com um sorriso desconcertado.
Não sabe o que aconteceu, mas a Guardia Civil veio
buscá-los. Não os incomodou, apenas os escoltou na viagem de regresso que
referi no início. Em chegando a Vilar Formoso a coisa modificou-se: a PIDE
estava à espera deles e fez-lhes uma recepção à altura da má memória que nos
legou. Prendeu-os e, ao bofetão, tentou arrancar deles o nome do passador. Como
ninguém abriu a boca, lá os soltou, mandando-os de volta a casa.
Levariam, ao todo, cerca de 200$00 nos bolsos e era
com esse dinheiro que teriam de se amanhar até chegarem a casa; porém, em Figueira
de Castelo Rodrigo já lhes escasseava o pecúlio. Decidiram meter-se a pé até
Barca d’Alva onde chegaram famintos e estafados de tanto andarem. Um taxista
encontrou-os na estação e, condoendo-se deles, matou-lhes a fome. Quem diz que
não há gente boa neste mundo?
O dinheiro que lhes restava deu à justa para
chegarem de comboio até Mirandela onde o primo de um deles os alimentou e lhes
deu o bastante para comprarem o bilhete até Rossas.
Esta aventura só terminaria no tribunal. O Jorge
foi condenado a três anos de pena suspensa e ao pagamento de 50$00 de multa.
Eram assim tratados aqueles que buscavam uma vida melhor para si e para os
seus.
Continua
Nota: o título deste artigo é um verso da canção "Por Terras de França", de José Mário Branco (do álbum "Margem de Certa Maneira")
8 comentários:
Tempos difíceis, mas que estão na memória de muita gente que as viveu.
Um abraço e bom fim de semana
Lanção, 17 de Novembro de 2013
O meu nome é Humberto Pires, nasci em Lanção há 62 anos, do mundo pouco mais conheço do que a minha aldeia e terras próximas, por onde tenho vertido o suor do meu rosto, sempre agarrado à rabiça do arado. Porém, orgulho-me de ter sido aprovado no exame da antiga 4.ª classe com 19 valores; sei, portanto, ler, escrever e contar, pelo que também quis deixar este meu modesto comentário no blog de Rebordainhos.
Do que tenho lido no blog, transparece um sentimento de melancólica resignação pela triste sina das nossas gentes, qual seja a de emigrarem para terras distantes, onde vão procurar o pão que por cá escasseia.
Meus amigos, esta maneira de pensar está profundamente errada!
A mentalidade salazarista que nos incutiu, nos corpos e nas almas, que Portugal é um país pobre tem de ser extirpada de uma vez por todas! Portugal é um país muito rico, com problemas graves ao nível da organização política e administrativa da nação! Vejam, por exemplo, a instituição, completamente fora do tempo e do espaço, que é a Associação Social, Recreativa e Cultural de Rebordainhos! A aldeia, que hoje é um autêntico alfobre de muitos e muitos doutores, arquitetos e engenheiros, já possui, ainda que fora de portas, por enquanto, a massa crítica necessária para despoletar um desenvolvimento social e económico sustentado. Para começar, todos os emigrados estudados devem retornar, o quanto antes, para acabarem de vez com a ASRCR, substituindo-a, imediatamente, pela Associação dos Apicultores e Produtores de Gado Vacum de Rebordainhos (AAPGVR). Depois, sim, quando jorrarem o leite e o mel, também abriremos as portas de par em par aos emigrados não estudados e a todos os homens de boa vontade, irmanados no desejo comunitário, à maneira de Rio de Onor, de construir uma sociedade próspera, feliz e sem classes, sem propriedade privada (onde a minha enxada seja a tua enxada, o teu automóvel seja o meu automóvel), e sem exploração do Homem pelo Homem.
Com os melhores cumprimentos,
Humberto Pires
Elvira
E que é importante não esquecer quando tudo parece caminhar de regresso ao passado.
Beijos
Humberto
Antes de mais, seja muito bem-vindo a este espaço, que é plural.
Abençoados 19 valores: se já escrevia e pontuava assim, só por sovinice não lhe foi concedido o 20!
Aceito as suas críticas, embora discorde delas. Este blog existe como serviço aos naturais de Rebordaínhos, tendo como missão essencial a preservação da memória, quer dos factos colectivos, quer da vida de cada um dos seus indivíduos.
É um espaço de liberdade, em que todas as opiniões são bem-vindas, embora se não aceitem insultos nem infâmias.
A sua proposta é uma prepotência, na medida em que estabelece logo o regresso de toda a gente e as condições em que se iria viver - uma espécie de comunitarismo. Quem lhe diz a si que as pessoas concordam?
A sua antipatia pela ASCRR redunda nisto: os velhos que lá estão que se amanhem e morram sozinhos enquanto os doutores, arquitectos e engenheiros não decidirem regressar. É isso? Pessoalmente, situo-me nos antípodas desse modo de pensar.
Grata pela sua participação
Fátima:A história verídica do meu (nosso)primo que relata as peripécias, em tempos idos, da sua primeira tentativa em dar o salto para terras de acolhimento, à procura do que não podíamos ter neste canto, nesses tempos, rico porque forreta, hoje com magros recursos, sejamos honestos e frontais, pese a discórdia dos optimistas que não cedem à resignação, talvez por falta de conhecimentos exteriores;é talvez um recordar melancólico, mas que gostamos reviver, não para provar o que quer que seja a ninguém...simplesmente porque crescemos nestas condições de vida, todos juntos, em tempos extremamente difíceis, digamos segundo as possibilidades de cada um.Lamento que a A.S.C.R.R incomode ao ponto de sugerir outra animalesca para a substituir!
Como estamos em Democracia,e os analfabetos estiveram presentes na conquista, considero insultante para além de discriminatório, a repatriação dos milagrosos à maneira do Hitler.
Beijos e bem-hajas pela transmissão da tua grande cultura e simplicidade.
Tonho
Fizeste-me rir com essa do "animalesca".
Eu bato num ponto: contar a dureza da vida e as formas que inventámos para a ultrapassar é um dever. A gente de Rebordaínhos poderá sentir-se cabouqueira, mas é muito mais do que isso, é gente que enfrenta as dificuldades e, se for preciso, desce aos infernos para as vencer. A emigração é um dos exemplos maiores dessa capacidade de enfrentar o destino sem soçobrar. Contar estas vidas é lembrar aos naturais da nossa terra o quanto somos capazes de realizar. Não há nostalgia em nada disto, há apenas o lembrar para que sirva de exemplo. Eu tenho muitas saudades das pessoas que povoaram a minha infância, mas não tenho saudades nenhumas desse tempo.
Beijos e bme-hajas pela tua participação
Fátima:
Bela história a do Jorge. E, daquilo que me é dado saber ele tem inúmeras vividas lá por terras de França. Ouvi-lo é um regalo. Conhecer, e dar a conhecer aos mais novos os tempos passados constitui uma obrigação de quem se entende como cidadão de plenos direitos e deveres. Pensar e reflectir acerca do passado é um óptimo exercício para bem alicerçar e melhor construir o futuro.
Bem hajas pois, por todas as recolhas que tens feito e tão bem nos transmites. E, sabes como é costume dizer-se? "A palavras loucas, orelhas moucas"! E refiro apenas este para ser correcta, porque o que me apetecia referir, era aquele que diz que há vozes que não chegam aos céus
Beijos
Fátima,
gostei muito de ler este teu texto. Nele, relatas uma experiência, infelizmente semelhante a tantas outras. Destes tempos, nós só temos conhecimento por haver testemunhos orais e escritos.
Se ninguém falasse de assuntos passados, deixaria de haver história. Esta, tu sabe-lo melhor do que eu, não testemunha apenas os acontecimentos com êxito!
Delírios sem fio condutor tais como aqueles que são mencionados pelo do senhor Humberto, são característicos de pessoas com ideias muito baralhadas e que não sabem o que dizem.
O que é que a ASCRR tem a ver com o assunto?
Bjos
Olímpia
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