segunda-feira, 9 de dezembro de 2013

Dias frios

Não sei precisar o ano, nem se era Dezembro, Janeiro ou Fevereiro. Tenho, no entanto, muito presentes na memória duas imagens.

1. Fazia um frio de escacha-pessegueiro que piorara durante a manhã. Calhara-me a mim, nesse dia, levar para a escola as brasas que, uma vez postas na braseira, aqueceriam as meninas, classe por classe, pois assim éramos chamadas, à vez, pela Senhor Dona Maria. Não tenho ideia de sermos chamadas de outra forma, mas a minha irmã Amélia recita a expressão da senhora professora: “vêm primeiro as dos Vales, que já andaram uma légua!” Se assim era, bem estava!

As ruas ainda não estavam calcetadas e, porque chovera nos dias anteriores, à medida que o frio crescia, todo aquele lodo ia enrijecendo. A carambina que se formou trataria de conservar o registo daquilo que, ou de quem, fora o último a passar: carros de bois, pitas, perus ou gansos, pessoas, enfim, como se de esculturas rasas se tratasse. Não eram esculturas de gelo, porque essas são transparentes; eram esculturas de lama preta gelada. Nas poças mais fundas, a água choca brilhava.

Durante o Inverno, todos calçávamos os çocos que o tio Grilo nos fazia à medida – os das crianças protegidos com preguinhos; os dos mais velhos cravados com brochas. Trazíamos os pés enxutos, era o que importava, se bem que preguinhos e brochas sobre chão gelado fossem chamariz do perigo.

Assim me vi, de çocos nos pés e lata das brasa vazia na mão, a enfrentar a caminhada de regresso a casa à hora de almoço. Com tanto garoto na escola, certamente estaria acompanhada, mas não me lembro de ninguém. Recordo, sim, que, mal chegando ao Prado, deixei de ser capaz de me equilibra em pé e tive que fazer o resto do caminho de gatas, ferindo mãos e joelhos naquela carambina cortante e enlameada. O que vale é que o pote das casulas, acabadas de cozer, me reconfortou corpo e alma, sensação que só um transmontano consegue imaginar.

2. Foi no mesmo dia, da parte da tarde. Quando chovia, dos bairros de cima corriam autênticos rios para os bairros de baixo. Em alguns lugares, onde a lama era pouca e a água muita, o carambelo era transparente. Assim se mostrava ele, encostado às escadas dos senhores professores, meus vizinhos, também junto à casa da Senhor Dona Denérida, na parte que dava para a taberna de cima e junto à eira de à Chave. Estava a realizar-se um enterro e lembro-me bem do esforço enorme que faziam os homens que transportavam a urna, apesar de terem embrulhado o calçado com aquilo que tinham à mão, palha ou plásticos. A certa altura, não aguentaram mais: desequilibraram-se e o esquife lá foi, sozinho, esbarando pelo carambelo.


Hoje, se conto estas coisas, não é por ter saudades delas, é para lembrar o quanto caminhámos em quarenta anos de democracia e para dizer aos arautos da inevitabilidade que a pobreza é uma coisa muito triste.
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A lindíssima fotografia que ilustra o artigo é da Milita, a quem agradeço, apesar da sem-cerimónia de lhe não ter pedido autorização. Mostra o lado belo do frio.

12 comentários:

Anónimo disse...

Que paisagem tão gira.

Filinto disse...

Belos tempos, Fátima!
Há dias falava eu nos nossos colegas dos Vales e dos Pereiros... Lembro-me da Alzira do "Araúl" esses foram uns heróis. Quanta pobreza naqueles nacos de pão de oito dias e carne gorda dos cevados. Ainda não havia colesterol, ácido úrico, havia "carambelo", "estrumeiras" e muito amor.
A paisagem é sublime, Milita.
Filinto

Augusta disse...

Fátima:
Também eu me lembro muito bem dessas palavras da D. Maria. Mas também me lembro de muitas vezes irem a nossa casa para se secarem e aquecerem. Isto acontecia sobretudo quando chegavam mais cedo, e era frequente eles chegarem antes de nós. Foram sem dúvida uns heróis e não consigo imaginar o aperto de coração com que aqueles pais ficavam ao verem os filhos saírem de casa com fio, chuva, neve...carambelo.
Hoje já não temos lama, também já não temos socos, mas continuamos a ter aquele frio que, em abono da verdade, até nos sabe bem, porque é o nosso frio.
Beijo

antonio disse...

Fátima: é mais um relato perfeito dos tempos idos da nossa juventude, que para os mais novos pode parecer: (mais uma história dos nossos velhos...) Para nós tem um significado bem definido, embora faltem numerosas peças do puzzle, perdidas num canto traiçoeiro da nossa memória, ou fragmentadas como os “ candiólos” cristalinos que ornamentavam com tanta beleza os beirais das nossas casas, ao cair no solo enlameado, que o frio transformara em pistas de gelo, e as “estrumeiras “de palha ou folhas mortas, invenção astuciosa dos antigos, aproveitando para fertilizar as terras agrícolas, e, ao mesmo tempo, servindo de tapete para os transeuntes, calçados com socos de amieiro, feitos e “brochados” artesanalmente para diminuir o desgaste, transformados ocasionalmente em patins de gelo, nos lugares específicos, como: as poças, do Prado, Cubelo Fonte grande e Espinheiro.
Quanto à famosa braseira, único meio de aquecimento existente na escola, teria muitas e variadas histórias para contar…
“ Os guerreiros de luz” verdadeiros heróis, os dos Vales, Alzira que visita regularmente o grupo Rebordainhos no facebook, o irmão Teodoro, mais dois ou três que me perdoem se esqueci os nomes, creio serem gêmeos, mas sobretudo o tio Raul, que os veio acompanhar tantas vezes até passarem a ribeira, pelo carreirão para encurtar a distancia, mas expondo-se ainda mais aos perigos que iam enfrentando cotidianamente, de : “ tirar o chapéu” !
Também os dos Pereiros, tiveram grande mérito para ultrapassar as dificuldades impostas pelas intempéries, o “pontão” não resistia às pressões das águas, e muitas foram as vezes em que os alunos tiveram de retirar as roupas para atravessar. Como já ultrapassa envio um abraço carinhoso para toda esta gente

Fátima Pereira Stocker disse...

Filinto

Tem muita razão: só o muito amor nos poderia fazer sentir tão felizes e ignorar que havia coisas a que deveríamos ter direito. Mas a noção de direito ainda tardaria muito a chegar.

Eu estudei, porque somos da mesma idade, com o mais novo do sr. "Arraul", que é o único que permanece por lá.

Beijos

Fátima Pereira Stocker disse...

Augusta

Acreditas que tenho saudades dos çocos? Não sei se este Natal não oferecerei uns a mim própria...

Lembro-me bem da nossa casa, sempre cheia de manhã, com os nossos companheiros de escola, embora me lembre de ver lá, sobretudo, os de Arufe e os da Quinta, com a nossa mãe a fazer vistoria geral às "pedras", a verificar os deveres feitos de cada um.

Mas o que queria, mesmo, lembrar, é de quem era o enterro que refiro e não se me "alembra"!

Beijos

Fátima Pereira Stocker disse...

Tonho

Carai, quanto bate-cu dei na poça do Espinheiro por causa de querer andar por lá a esbarar! Anda que me não queixava, mesmo que me ferisse a valer, que a minha mãe não era meiga com brincadeiras perigosas (a minha e todas as outras, suponho). Quanto candeolo comi, quanta bola de neve meio comida entrou nos caldeiros dos porcos à voz de "vem aí a mãe"!

Agora fizeste-me lembrar do meu primo Orlando. Certo dia, entrando em nossa casa exclamou enquanto punha no lume um valente tiçoeiro: "Tia Teresa, Rebordaínhos já não é Rebordaínhos - nem há tiçoeiro como deve ser em sua casa, nem candeolos na casa da Perpétua!"

Beijos

Elvira Carvalho disse...

Eram tempos muito duros, mas a nossa juventude aguentava tudo. Fátima o que são çocos? Uma espécie de calçado parecido com tamancos? Quando nós eramos criança não tinhamos sapatos. Meu pai fazia uns tamancos de madeira, que para durarem mais tempo ou para serem mais seguros não sei bem, ele punha na "sola" uns pedaços de pneu velho das rodas de bicicleta. Na parte da frente duas tiras em forma de ferradura, e um pedaço redondo no sítio do tacão.
De Verão andávamos quase sempre descalços, mas tinhamos umas sandálias, feitas de cartão grosso e tiras de tecido, que ele também fazia.
Amiga obrigada pelos comentários no Sexta. Aquela Joana sou eu com um final diferente, pois o meu final terminou há 33 anos com a adoção do Pedro, que já me fez avó há 4 anos. O final foi inspirado na minha afilhada cujo marido não aceita a adoção.
Um abraço

Fátima Pereira Stocker disse...

Elvira

Os çocos (çócos) distinguem-se dos tamancos porque são fechados. São uma espécie de botins em que a sola é de madeira (amieiro)e a parte de cima de couro. É calçado rústico. Os nossos tinham a desvantagem, em relação aos seus, de não terem a protecção do pneu, que evitava, de certeza, muitas escorregadelas. Andar descalço era também muito comum entre nós.

Obrigada, pela bondade com que escreveu o último parágrafo, partilhando episódios importantes da sua vida que, graças a Deus e à sua persistência tiveram um desenlace feliz.

Beijos

Olímpia disse...

Fátima,
há já algum tempo que não passava por aqui.
Este teu real e belíssimo texto, avivou-me muitas memórias. Entre elas uma sobressai: a da solidariedade e a do companheirismo.
Embora tivessem sido tempos dífíceis, não deixam de ter beleza pela simbologia dos atos e das ações.
Bjos

Olímpia

Anónimo disse...

Olá,amigos! Meus avós são de castelo branco e me falavam as mesmas coisa! J.gomes filho natal,brasil

Fátima Pereira Stocker disse...

José

Sela muito bem-vindo a esta casa.

Se os seus avós são de Castelo Branco, são beirões e conhecem muito bem a intensidade do frio.

Feliz ano novo para si e para os seus.